Tuesday 11 September 2012

Para além do homem

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Para além do homem

Foucault insiste na necessidade de acordar daquilo que chama de “sono antropológico”
O filósofo Michel Foucault
VLADIMIR SAFATLE
Vivemos em um tempo de redefinição. Há fortes sinais de que nos falta, no entanto, algo para que acontecimentos com forte poder de ruptura ocorram. Na verdade, nos falta aprender a pensar de outra forma. Pois acontecimentos verdadeiros estão sempre associados à força de se reorientar no pensamento. Neste sentido, poderíamos dizer que nosso tempo precisa saber recuperar experiências que insistiram na necessidade de “aprender a pensar de outra forma”, criticando aquilo que, em nossas formas de vida, parecia completamente naturalizado.
Um exemplo ilustrativo deste ponto encontra-se na experiência intelectual de Michel Foucault. Um dos eixos de tal experiência parte da reflexão sobre os pressupostos implícitos na pergunta kantiana “Was ist der Mensch?” [O que é o homem?]. Responder tal pergunta, nos lembra Foucault, implica assumir regimes de saberes que impõem modos disciplinares de relação a si. Saber o que o homem é não é uma mera questão de descrição de atributos previamente determinados e essencialmente assentados em uma natureza. Saber o que o homem é implica produzir uma antropologia de forte teor normativo disciplinar. Esta antropologia está pressuposta, por mais que filósofos não queiram, no fundo de toda consideração sobre o que teria validade incondicional, categórica e universal no interior do pensamento. Em outras palavras, há sempre uma antropologia a limitar as possibilidades do questionamento transcendental. Pensar de outra forma aparece então como necessidade de denunciar a antropologia que serve de fundamento mudo para o questionamento transcendental.
Nesse sentido, quando Foucault insiste na necessidade de acordar daquilo que ele chama de “sono antropológico”, devemos entender isso como signo da procura de um modo de relação a si que não se submeta ao modelo “jurídico” de relação a si que parece derivar-se de todas as formas de questionamento transcendental. Tal modelo jurídico está presente nas temáticas da Lei moral, do tribunal da razão, no regime de universalidade categórica, na temática das condições normativas de possibilidade etc.
Para além desta relação jurídica a si, Foucault procura uma forma de cuidado de si que viria diretamente das práticas de cuidado presente nos gregos e romanos. Tais práticas seriam caracterizadas por formas singulares de ajustes entre exigências sociais e “disposições” particulares que constituem, para um sujeito, algo como uma dimensão de verdade. No entanto, os termos desse ajuste são fluidos. Foucault fala, na maioria das vezes, de “intensificação da relação a si” [“intensificação”, já que se trata de uma questão de capacidade de escapar tanto do excesso quanto da passividade], de “atenção ao corpo” ou, ainda, de “soberania” do indivíduo sobre si mesmo.
Note-se, no entanto, que essa constituição soberana de si passa por um deslocamento de si mesmo, da autonomia individual à reconciliação com o corpo. Esta é uma ideia interessante, já que se trata de dizer que não se trata simplesmente de abandonar toda e qualquer reflexão sobre o espaço das individualidades, mas de criticar uma certa figura do indivíduo – assentada no paradigma jurídico do proprietário de si – que nos parece, atualmente, completamente natural.
Assim, quando Foucault tentar definir tal regime renovado de soberania, ele não terá outra possibilidade que defini-la como: “Conjunto de práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não simplesmente definem para si regras de conduta, mas procuram se transformar, se modificar em seu ser singular e fazer de suas vidas uma obra que porta certos valores estéticos e respondem a certos critérios de estilo”.
Notem, no entanto, que ao aproximar soberania e trabalho estético, Foucault precisa redefinir o que ele entende aqui por “prática refletida e voluntária”. Pois devemos nos lembrar desta ideia de Adorno, para quem o uso estético da língua só é possível quando não procuramos mais dominar a língua, mas nos deixamos dominar por ela. Ou seja, essa soberania pressupõe uma negociação com “disposições” que não nos aparecem como algo “voluntário”. Tais disposições são as marcas das contingências em nós. Contingências que não se submetem à figura normatizada do homem.

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