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ilustração de Adão Pinheiro
O mito da invenção da noite, em ilustração de Adão Pinheiro
Quem foram os criadores do mundo? Como surgiram as primeiras pessoas? Foram mulheres ou homens? Como a humanidade conquistou o fogo e, ao aprender a arte da cozinha, cessou de limitar-se a alimentos crus? Foi o acaso ou foram estilhaços do sol? O fogo foi roubado de um dono primordial? De onde vêm os animais, serão eles gente que foi virando bicho? E as plantas, milho, mandioca, amendoim, feijão, como foram incorporados ao nosso sustento?
Essas e infinitas outras questões irrompem dos mitos dos nossos 200 povos indígenas, com enredos e respostas muito diferentes para cada uma. São contados em quase duas centenas de línguas, sendo apenas uma pequena parte escrita em português. A origem da anatomia humana, da sexualidade, das estrelas, da luz e da escuridão, da morte, do sol, da lua.
Leia atividade didática de Língua Portuguesa inspirada neste texto
Expectativas de aprendizagem: Comparar textos ou versões quanto ao tratamento estilístico ou temático; ler em voz alta ou recontar os mitos de maneira a suscitar o interesse de outros interlocutores; encenar narrativas
A ameaça de visagens e monstros, a cabeça decepada que voa em busca de comida ou aventura, nenês que nascem da barriga da perna ou do dedão do pé, ficam adultos e voltam a ser de colo; crianças que fazem cocô de amendoim (um mito que os pequenos adoram); os perigos e obstáculos que os que já morreram devem enfrentar na passagem ao além. São todos exemplos de um repertório que causa estranheza e fascínio.
Adultos não índios costumam procurar uma ordem e uma vereda nesse universo, analisando, relacionando temas, explicando comportamentos. Teorizam. As crianças, sem preconceito, deixam-se levar e sorvem as iguarias narrativas. Para os educadores, a tarefa não é fácil, a menos que conservem o frescor infantil e se abram para o novo.
Os livros de mitos são numerosos, documentados por cronistas, viajantes, antropólogos, hoje em dia escritos por professores e autores índios. Os dons literários e a habilidade com as palavras variam, assim como a fidelidade ao que foi contado – pois a tradição indígena, até há pouco, era unicamente oral. A bibliografia é extensa, bem como filmes e música elaborados por índios e artistas.
O jeito é cada curioso ir se soltando, sem o desespero de entender ou arrumar demais, mas com o impulso de mergulhar e prestar atenção. Os mitos, como a ficção e os livros, estendem a consciência que temos do mundo, dos seres humanos e sua diversidade, fazem viajar por plagas distantes, países, línguas e novos significados para a existência. Com eles, entramos no âmago de outras vidas.
A melhor forma de aproveitar mitos é abandonar-se. Ler muito com os alunos, contar em voz alta, estimular relatos, representações, comentários. Quanto mais histórias, e mais variadas, melhor, para encontrar o que desperta interesse. Perceber as reações, as risadas, o prazer com os enredos, sem medo de eles serem terríveis ou impróprios.
Evitar a censura ou a preocupação em classificar, explicar demais, ou mesmo comparar com outras mitologias, embora às vezes isso seja um bom caminho. A compreensão vem por si, para cada um de um jeito.
Os índios não dividem o que é infantil do que é do mundo adulto, nem mesmo quanto à sexualidade – o que é um problema para educadores, pois em nosso sistema reprimimos fases da sexualidade e termos considerados inconvenientes para crianças. Caberá a cada professor medir o que é possível.
Voltando às perguntas iniciais, em muitos povos os criadores costumam ser dois irmãos ou companheiros, um mais inteligente e preguiçoso, outro arteiro, mas muito inventivo. São os deuses criadores, mas nem sempre são quem fez gente: descobrem uma humanidade que já existia – não queiram vocês, leitores, saber onde e como ela apareceu… Por vezes, debaixo da terra, como nos Djeoromiti de Rondônia.
Nos Aruá, do mesmo estado, os seres humanos resultam da união de um dos criadores com a terra, que engravida. Os dois irmãos abrem uma rocha para libertar as pessoas. Nos Suruí Paiter, também de Rondônia, os quatro primeiros entes divinos nasceram de si mesmos, brotaram.
Um deles é Palop, “Nosso Pai”, que fez seu irmão, Palop Leregu, “Nosso Pai de Roupa”, mais ligado aos não índios. Palop criou gente. As mulheres não existiam, mas um homem sozinho, Iabeap, namorou uma árvore rachada e avisou a mãe que prestasse atenção, pois ia viajar. Essa mãe (vejam só, era mulher. Como, se elas não existiam? Assim são os mistérios míticos…) ouviu bulha no oco da árvore e, quando foi ver, eram duas nenezinhas, Kabeud e Samsam: assim nasceu o outro sexo.
O dono do fogo, nos Djeoromiti ou Jabuti de Rondônia, era o Pica-Pau Velho.
Os dois companheiros criadores, Kawewé e Karupshi, viviam andando, não dormiam, não tinham fogo. Mas roubaram fogo e machado do Pica-Pau: transformaram-se em formiga, mutuca, abelha, morderam o velho, que, ao tentar se livrar dos insetos, largou o machado em cima dos dois. Fugiram muito satisfeitos, de posse do fogo. Precisavam do machado porque, em sua terra, havia uma árvore de pedra que ameaçava cair e matar a humanidade. Com o machado, conseguiram derrubá-la. Machado e fogo, novos dons, aparecem associados em muitos mitos.
Nos Suruí Paiter, os donos do fogo eram as onças. Palop, “Nosso Pai”, um dos deuses, pediu ao pássaro Orobab, de rabo comprido, que fosse roubar o fogo para dar a seus filhos, os homens. Orobab foi, encostou as longas plumas nas brasas quando as onças se distraíram e voou. Sentou-se num galho de urucum, depois nos de uma árvore chamada itoá e, por último, no pau-brasil, transferindo para a madeira as qualidades do fogo, para depois voltar para Palop com a missão cumprida. Os índios hoje fazem fogo friccionando galhos dessas três árvores.
Nos Huni Kui, denominados Kaxinauá pelos não índios, ficamos sabendo, por intermédio de um belo livro bilíngue escrito por professores indígenas do Acre, que foi a curica que roubou o fogo de um homem muito sovina, que também tinha o monopólio do milho e de outros produtos do roçado, enquanto a humanidade passava fome. Como ela fez? Irritou tanto o sovina que ele, com raiva, atirou-lhe um pedaço de lenha em brasa na cabeça – que ela pôs no bico e levou para os homens.
Os Sateré Mawé contam que antigamente não existiam fogo nem comida gostosa. Só havia um homem, que era feito de fogo – não podia andar descuidado para não queimar os outros. Um dia, um caçador o encontra e o homem de fogo se oferece para assar a carne, mas sem que o outro veja como. O caçador adora o novo sabor e pede para levar um tição para casa. O outro consente, mas a mulher do caçador cospe saliva no fogo recém-adquirido e o apaga. O caçador volta ao Homem de Fogo, que dessa vez lhe dá labaredas de outra forma, para não queimar demais: limpa o traseiro com um pauzinho que entrega ao amigo – ele não era todo feito de chamas, mesmo ao defecar? E foi assim que os Sateré passaram a ter fogo em suas casas.
E assim poderíamos continuar por muitas páginas, pois o fogo, indispensável como é, parece ser roubado em muitos cantos do globo.
* Betty Mindlin é antropóloga e autora, em conjunto com narradores indígenas de Moqueca de Maridos
Saiba mais
Livros
Shenipabu Miyui. História dos antigos, de autoria coletiva da Organização dos Professores Indígenas do Acre, segunda edição revista, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000, 168 págs.
+ Betty Mindlin
Vozes da Origem, Rio de Janeiro: Record, 2007.
Diários da Floresta. São Paulo: Terceiro Nome, 2006.
O Primeiro Homem e Outros Mitos dos Índios Brasileiros. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
Terra Grávida. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Ventos/RECORD, 1999.
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