Pressionados pelo público, gigantes como Google, Apple e Facebook começam a recuar da vigilância individual. É pouco: eles já têm outros meios de controle. Luta pelo futuro da rede precisa inspirar-se na Wikipedia e dar um passo adiante
Publicado 26/05/2021 às 18:55 - Atualizado 26/05/2021 às 20:43
Por Evgeny Morozov, no The Guardian | Tradução: Simone Paz
Para os ativistas que defendem a privacidade, 2021 traz, na aparência, uma grande vitória após a outra. Primeiro lugar, a Alphabet, empresa que controla o Google, anunciou em março que iria parar de rastrear usuários individuais quando eles se deslocam de um site a outro. Esta decisão faz parte da ampla campanha da Alphabet para acabar gradualmente com o uso de cookies de terceiros — uma tecnologia antiga, porém controversa, cada vez mais culpada pela cultura permissiva de compartilhamento de dados hoje em vigor.
Em vez de rastrear usuários individuais por meio de cookies, a Alphabet planeja usar a aprendizagem de máquina para agrupar usuários em grupos formados a partir de semelhanças comportamentais. Os anúncios serão direcionados a esses grupos, não a indivíduos. A Alphabet ainda precisará de alguns dados para colocar cada usuário no grupo certo, mas os anunciantes não precisarão mais invadir o navegador do usuário.
E vem aí o segundo capítulo desse amplo reposicionamento do setor. No início do mês, a Apple apresentou uma importante atualização em seu sistema operacional, que agiliza a forma como os desenvolvedores de aplicativos externos, como o Facebook, rastreiam os usuários da Apple. Agora, esses usuários devem concordar explicitamente em ter seus dados coletados. Embora o Facebook se opusesse à mudança no início, passou a moderar sua visão, prometendo até desenvolver tecnologias de publicidade para “aumentar a privacidade”, com menor dependência dos dados sobre os usuários.
Ainda assim, me pergunto se essas vitórias tão surpreendentes para o movimento pela privacidade não se tornarão pírricas no fim das contas — pelo menos do ponto de vista de uma agenda democrática mais ampla. Em vez de enfrentar o grande poder político da indústria de tecnologia, os mais sinceros críticos da tecnologia têm tradicionalmente se concentrado em responsabilizar a indústria tecnológica por inúmeras violações das leis de privacidade e de proteção de dados existentes.
Essa estratégia presumia que tais transgressões legais continuassem para sempre. Agora que a Alphabet — e em breve, talvez, o Facebook — apressam-se para aprimorar a aprendizagem de máquina e, assim, criar anúncios personalizados que também preservem a privacidade, começamos a nos perguntar se ter colocado tantos ovos na cesta de privacidade foi uma escolha sábia. Aterrorizados pela onipresença e eternidade do “capitalismo de vigilância”, será que facilitamos demais as coisas para as empresas de tecnologia, a ponto de não atendermos às nossas próprias expectativas? E será que perdemos uma década de ativismo, que deveria ter sido focada no desenvolvimento narrativas sobre por que nos opomos ao oligopólio dos gigantes tecnológicos?
É provável que algo semelhante aconteça em outros territórios marcados por pânico moral diante das tecnologias digitais. O setor de tecnologia responderá ao crescente incômodo do público em relação às “fake news” e ao vício em redes sociais, dobrando aquilo que eu chamo de “solucionismo”, As plataformas digitais introduzirão novas tecnologias para oferecer a seus usuários uma experiência sob medida, segura e completamente controlável.
A Apple, como de costume, lidera nesse aspecto, oferecendo aos usuários uma série de notícias e ferramentas selecionadas para medir sua produtividade e bem-estar digital. Em fevereiro, o Facebook também lançou um experimento — por enquanto, apenas no Reino Unido — onde anexa, a postagens sobre mudanças climáticas, um banner que direciona as pessoas ao portal da empresa dedicado ao clima. Pode ser que até mesmo o desafio das fake news se torne mais fácil de lidar do que supúnhamos.
O recente, e provavelmente bem-intencionado, movimento pela “tecnologia humana” está prestes a sucumbir a outra vitória de Pirro. Os gigantes da tecnologia certamente encontrarão uma maneira de ser ao mesmo tempo “humanos” e altamente lucrativos. Ironicamente, quanto mais o oligopólio de tecnologia é pintado como anti-privacidade ou anti-humano, mais legitimidade pública ele pode ganhar só por mostrar sua capacidade de cumprir determinados valores que são caros a seus críticos.
Isso sugere que precisamos de uma crítica diferente e muito mais profunda ao oligopólio de tecnologia. Existem caminhos para desvelar o peso que sua lógica solucionista impõe à sociedade? Sim. Penso que buscamos críticas potentes a este setor nos lugares errados. Presumimos que vigilância e as fake news são o que os economistas chamam de “externalidades” — subprodutos de práticas empresariais que, de outra forma, seriam úteis, progressivas e inovadoras.
Mas essa suposição é válida? É hora de observarmos com mais atenção o setor de tecnologia para a inovação e nos perguntarmos quem tem permissão para inovar — e em que condições — no sistema atual. Apesar de toda a “destruição criativa” que seus líderes nos prometem, a Big Tech oferece um prato muito insosso, que tem sempre o mesmo conjunto de ingredientes: usuários, plataformas, anunciantes e desenvolvedores de aplicativos.
A imaginação institucional da indústria de tecnologia não admite que outros atores possam desempenhar um papel na definição dos usos socialmente benéficos das infraestruturas digitais. Tirando o caso da Wikipedia — que surgiu três anos antes do Facebook — não há equivalentes digitais para as instituições diversas e altamente inovadoras que existem para atender às necessidades de comunicação e educação da humanidade: a biblioteca, o museu e os correios.
Quem sabe que outros tipos de instituições seriam possíveis no ambiente digital de hoje? Em vez de ir atrás disso, os legisladores entregaram esse processo inteiro ao setor de tecnologia. Em vez de construir infraestruturas que possam facilitar essa experimentação em larga escala, eles se contentam com as infraestruturas existentes que são operadas (frequentemente como serviços pagos) pelas gigantes de tecnologia.
Naturalmente, os principais agentes do setor querem garantir que qualquer nova instituição digital nasça como uma startup ou, pelo menos, como um aplicativo — para ser inserida e monetizada por meio de suas plataformas e sistemas operacionais. Como resultado, o meio digital de hoje não é tão pró-inovação quanto parece: ele abomina ativamente instituições e associações que não obedeçam às regras de seus principais intermediários. Ele se destaca na criação de aplicativos engenhosos para museus e bibliotecas, mas é péssimo em descobrir qual seria o equivalente digital real do museu ou da biblioteca.
Pelo que sabemos, isto poderia ser, por definição, a startup — a resposta institucional padrão que o solucionismo produz para cada problema. Mas por que aprisionar toda ideia boa e nova na camisa de força de uma startup? Na maioria dos casos, essa camisa de força impõe seus próprios imperativos: os usuários precisam ser monetizados; os dados precisam ser coletados; as assinaturas precisam ser vendidas. Por que nos limitarmos a esses poucos caminhos?
Queremos algo genuinamente novo: uma instituição que saiba quais partes das leis e regulamentos deixar em suspenso — o que a biblioteca faz com a lei de propriedade intelectual, por exemplo — a fim de aproveitar totalmente o potencial inerente às tecnologias digitais em nome do Comum.
Esse respeito recente dos gigantes da tecnologia pela privacidade não deve nos enganar. Afinal, é o seu controle monopolístico sobre nossa imaginação — tornando-nos incapazes de ver a tecnologia não como mera ciência aplicada, mas como uma potente instituição política para transformar outras instituições — que constitui o maior problema para a democracia. E é apenas recuperando essa imaginação — e não nos valendo de uma overdose de solucionismo agradável — que poderemos aspirar a controlar os gigantes.
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Comentário sobre o filme clássico do cineasta italiano
Por Roberto Schwarz
19/05/2021 10:49
Créditos da foto: (Reprodução/bit.ly/3v6YvDy)
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1.
É fácil gostar de 8½, e mais difícil dizer por quê. Presa à psicologia de Guido e da criação artística, a discussão tende a perder-se em banalidades sobre a persistência infeliz mas feliz do menino no quarentão. O alcance do filme é maior, transcende a psicologia. Fosse psicológico o seu eixo, não haveria prejuízo essencial em transformar o cineasta num músico ou escritor, pois a distância entre a experiência infantil e a realização artística ou pessoal permaneceria a mesma. Lembrado o filme, entretanto, sabemos que o prejuízo seria enorme. A profissão de Guido é o contexto indispensável de 8½: em contato com a indústria do cinema os problemas tradicionais do artista e intelectual tomam feição nova e piorada.
Acionado pela indústria, sem a qual não nasce, o cinema atinge grande parte da população nacional. Pelo dinheiro e pela fama que movimenta, é o sonho comum: todos querem registrar-se nele. É a primeira forma de arte a ter circulação forçada, análoga, em penetração, à expansão da economia moderna. Essa força, Fellini faz senti-la ao mostrar como tudo sorri, se arruma e curva quando passa Guido, o diretor: todos querem ser personagens suas. Ao alcance total corresponde, é claro, uma responsabilidade também total. Se querem todos mostrar-se, é preciso fazer justiça a todos.
A concepção artística de Guido, entretanto, é burguesa; o seu anseio é de objetivar uma visão pessoal, idiossincrática, uma fixação infantil de que assim ficaria liberto. Este o problema psicológico explícito no filme. O alcance maior do tema, entretanto, implícito, está na articulação de sua banalidade com a indústria, que lhe dá potência. Fosse escritor, Guido poderia atrapalhar, com as suas fixações, a vida de três, quatro, cinco mulheres. Muito mais é impossível, para quem corteja com recursos pessoais. Mas Guido é diretor de cinema: tem as mulheres da nação a seu dispor, ao dispor de suas manias, e irá atormentá-las segundo a sua semelhança maior ou menor com os mitos infantis.
Há descompasso entre as forças sociais desencadeadas e o particularismo que as reage. Diante da máquina social, do poder criado pelo desenvolvimento burguês, é a própria concepção e glorificação burguesa do indivíduo – partícula sagrada, valor máximo – que prova grotesca. Valer-se da indústria e atordoar o país para objetivar uma fixação infantil é possível, mas absurdo: se a personalidade triunfante é livre e caprichosa, é que todos lhe devem o salário de que vivem. Como bem demonstra a figura de Guido, crueldade e fraquezas de si pequenas são monumentalizadas pela posse privada da engrenagem social. O cinema põe em xeque a concepção individualista das artes: a busca da garantia subjetiva de autenticidade – o ator deve corresponder à visão prévia do diretor – prova ser tirania.
A obra não é feita para o bem do mundo, mas é o mundo que existe para a subsistência da visão. Esta frase, que para os estetas do século XIX era metafórica e exprimia repulsa em face da comercialização filistina da vida, ganha sentido prático e real quando associada ao cinema e ao seu poder econômico. Aliada ao poder industrial, a delicada exigência de autenticidade subjetiva põe à mostra o seu lado prepotente, a fúria de impor aos outros a própria visão; fúria que é simbólica da violência diariamente realizada na vida competitiva. Uma idiossincrasia quer ser melhor que a outra. O cinema, pelas exigências práticas de sua linguagem, explicita o que fica implícito nas outras artes: há violência social no impulso que leva à elaboração de mitologias pessoais, mesmo nas filigranas de um poema hermético.
2.
Acusa-se 8½ de ampliar desmesuradamente uma angústia pequena. Mostramos, já, que esta ampliação é tema do filme, e não seu defeito. O engano vem da identificação de Guido e Fellini, autorizada pelos colunistas de mexerico, pelo próprio diretor, talvez, mas não pelo filme. Se Fellini é Guido, os conflitos deste campeiam idênticos no peito daquele, que seria o bobo de suas próprias limitações, um pequeno-burguês nostálgico e fantasioso, incapaz de fazer coisa que preste. Para defender 8½ é preciso mostrar em Guido a personagem, explicitar a diferença entre o seu modo de ver e o nosso de vê-lo vendo. Quanto mais idiossincráticos os seus propósitos, maior o significado social de sua figura, que resta expor.
Guido saúda a atriz francesa dizendo que tem cara de lumachina, “caracol”; a semelhança é mesmo surpreendente. É de supor que o diálogo esteja ajustado às personagens, de modo a fazê-lo exato; basta imaginar a dificuldade, caso o texto precedesse os atores, de encontrar uma atriz com cara de escargot. Na realização do filme o diretor parte dos atores que tem, e não das personagens imaginárias. O processo não será privativo de Fellini, mas tem importância especial para 8½, cujo tema é o procedimento inverso: Guido parte de suas obsessões, e procura nos atores a semelhança com elas; mas entre visão e ator há um hiato insuperável.
Não se deve esquecer, entretanto, que as visões de Guido – as visões e experiências belíssimas, ricas e naturais, que seus atores só conseguem estragar – foram elas mesmas filmadas, por Fellini. Há dois filmes: um bom, da vida real e imaginária de Guido, e um ruim, em que Guido procura recriar a sua experiência. Correspondem às duas maneiras de filmar que descrevemos. Para exemplificar, imaginemos Fellini com um arsenal de dez bruxas mais ou menos parecidas. Tomará uma delas, e tentará captar, em detalhe, as possibilidades de bruxa da bruxa que tem; esta será a Saraghina extraordinária das visões de Guido. Para fazer o filme feito por sua personagem, entretanto, Fellini procederá de maneira diversa: manda que as outras nove imitem a primeira, já transformada, agora, em vida real, fora do alcance de Guido, que gostaria de reproduzi-la.
A diferença no resultado é nítida. Filmadas segundo as suas naturezas individuais, as novas poderiam ser interessantes; forçadas a imitar a Saraghina original, tornam-se todas cópias baratas, interpretam seus papéis. As duas maneiras de filmar correspondem, respectivamente, a 8½ e à sua personagem; a de Guido sai batida. São também transposição técnica do antagonismo social que expusemos a princípio: o anseio burguês, de impor e assim salvar uma visão apenas pessoal, é contrário ao compromisso coletivo, e por isso mesmo objetivo, do cinema. Para Guido as imagens valem quando biograficamente saturadas; o seu critério é a memória, a sua tarefa a recriação. Para 8½, as imagens valem quando plenamente realizadas; o critério é a significação objetiva, a tarefa é a revelação de possibilidades do objeto.
O frescor inalcançável da visão imediata, miragem de Guido, é alcançado e fabricado por Fellini. Fabricado o infabricável, mediado o imediato, deslocam-se os problemas. Fica sem justificativa a obsessão de Guido, que identificava a pesquisa da beleza à objetivação de suas fixações infantis e de seus ecos adultos. Será presunção sustentar a sua identidade, uma vez demonstrado que se podem separar. O filme teria um tema que ele próprio declara ultrapassado, e estaria certo dizer, como disseram críticos de esquerda, que ele não interessa.
Entretanto: não basta saber que uma aberração é aberrante para tirá-la do mundo; não basta, para dissolvê-la, saber que a posse privada da engrenagem social é um contrassenso; o casamento é contraditório, pretende fixar a espontaneidade? não é por saber disso que as pessoas se amolam menos. Em efígie, a consciência racionalista já enterrou o mundo burguês, que entretanto persiste e lhe dita as regras de existência. Esta reprise continuada e compulsória de mentiras gastas é o chão histórico, e atual, de 8½. A persistência meramente prática de costumes e instituições, que racionalmente já são anacronismo, dá justeza à mistura de ridículo e desespero no filme, exige a investigação sustentada e mesmo maníaca das origens, das razões que dão sete fôlegos ao cadáver. A técnica de 8½ torna caduca a de Guido, mas a ordem vigente, à qual se aplica, repõe os problemas de Guido em circulação, na qualidade, agora, de ultrapassados.
3.
As contradições da realidade social, mesmo se criticadas em teoria, impõem a existência contraditória: a cada impasse corresponde uma crispação na consciência individual, obrigada a fazer sua uma dificuldade que despreza. A concessão, entretanto, não dissolve o impasse social, que perdura e volta a cobrar submissão logo adiante.[1] Favorecido pela força do cinema, Guido não procura o mundo; o mundo é que o procura e desfila na sua frente, uma procissão oferecida de empresários, empregados, atrizes, amigos velhos, jornalistas, todos rapidamente consumidos e dispensados. A contradição entre o alcance coletivo e o horizonte personalista, em Guido, desgastará de maneira sempre análoga todas as relações pessoais.
O mel se despreza na voracidade das moscas; espera por uma que não seja voraz, que entretanto não virá, pois se vier não será a esperada. Ao impasse social corresponde uma coleção de conflitos individuais, imagens suas, em cuja variedade transparece a constância da impossibilidade fundamental. É a própria realidade que está fixada. Este contexto faz reconsiderar a fixação psicológica, a qual poderá não ser apenas mania contingente, sem sentido generalizável. Pode corresponder à estrutura do mundo real. Na obsessão que vê o mesmo em tudo pode haver loucura, mas também senso, senso de que a multiplicidade do mundo não é renovação, mas variação de uma dificuldade insuperada.
Na perspectiva biográfica, de Guido e da memória, este traço maníaco da realidade é ligado à primeira experiência pessoal do impasse, que seria matriz e causa de suas versões posteriores. Entretanto: sem prejuízo de ser indelével para a biografia individual, o detalhe da primeira experiência é contingente em face do impasse objetivo, que pesaria de uma ou de outra forma. Embora o antagonismo entre sexualidade e vida normativa, para Guido, seja mera repetição do conflito entre Saraghina e sua mãe, o conflito, por sua vez, é a confirmação do antagonismo, que tem alcance coletivo. Está-se vendo que a pesquisa da infância, tida por chave das dificuldades adultas, leva a substituir ao impasse objetivo uma sua manifestação contingente – essa a banalidade das preocupações de Guido.
Mas vê-se também que nos seus achados vive em detalhe a contradição social – este o horizonte de 8½. Fixações pessoais são a cifra traumática da violência que sustenta uma ordem de convívio. Não sã simbólicas para Guido; são mesmo fixações, e devem ser remidas como tais: são tortura e promessa de prazer, recuperá-las em sua peculiaridade seria uma libertação. Na perspectiva do filme, entretanto, elas têm grande generalidade: a igreja de um lado e as perdidas do outro, a infância na província, na casa grande, cheia de mulheres serviçais, e a vida na cidade grande, das mulheres independentes – estes contrastes compõem um padrão típico, de alcance ocidental.
Guido circula ativamente entre presente, memória e fantasia. As senhas de passagem sã geralmente detalhes visuais, e a origem do movimento é o instante do adulto. A matriz dos significados, entretanto, está nas imagens da infância, cuja força e anterioridade lógica faz delas como que o lastro real da inquietação de Guido. Os dilemas do adulto aparecem como variação mais ou menos disfarçada de contradições antigas, de uma ambiguidade fundamental: a Saraghina é o mal mas é o bem; e a mãe e os padres são o bem mas são o mal. A bruxa, uma espécie de hipopótamo leonino, enxotado para as praias abandonadas da povoação é feroz: mas é cúmplice, também, de todos os anseios, pois em sua ferocidade acuada preservou-se a vindicação sensual da felicidade que o povoado expulsou e reprimiu.
Se a Saraghina existe, tudo é permitido. É assombrosa de poder libertário a cena em que o monstro humilhado se transfigura pela dança e pelo aplauso dos meninos, transformando-se em leoa e finalmente em felicidade turbulenta. Mas o que é bom dura pouco: os padres chegam logo e arrastam o menino para o outro campo, da religião, da família, da escola. A mãe de Guido, uma santa senhora, é limpinha, magra e virtuosa. Implora ao filho que se comporte. Vista em close, entretanto, tem o olho rancoroso. Enquanto enxuga as lágrimas sentidas da pálpebra esquerda, o seu olho direito espia, duro e acusador.
Em seguida o sentimento e o lenço passam para a face direita, trocam de lado com a virtude ultrajada. As imagens do bem são contraditórias mesmo visualmente; a decadência é a face hipócrita, mas transparente da autoridade: assim na composição simétrica de sentimento e tirania sobre um rosto, na silhueta frágil da figurinha materna, desmentida pela dureza dos detalhes fisionômicos, no gesto ungido dos padres, que vistos de perto têm cara de mulher.
O antagonismo entre Luisa, esposa de Guido, e Carla, a sua amante, reproduz o conflito da infância. A duplicação faz o esquema e o interesse psicológico do enredo. No brio civilizado e ressentido de Luisa ecoam os brados de vergogna dos padres e da mãe, como no gesto rocambolesco e pequeno-burguês de Carla, obsequiosamente desfrutável, ecoa minguada a liberdade prometida pela Saraghina. A correspondência entre os pares é bem explícita: durante um beijo sonhado, Guido transforma a mãe na sua mulher, e no quarto de hotel transforma Carla em Saraghina, ao pintar-lhe as sobrancelhas e pedindo que faça uma faccia da porca. O real é o presente, a infância é imaginária; mas a nitidez está na infância, de que o real, presente, é reflexo intrincado.
O presente visual é poroso, centelha para memória e fantasia; deixa transparecer a matriz irresolvida, e por isso constante, da infância. A matriz clarifica, ordena a confusão da experiência, é capaz de sustentar a identidade pessoal através da voragem das solicitações. A unidade da pessoa está baseada, portanto, na permanência de impasses, na fraqueza. Há prazer na recorrência, autoconstatação; a vida ganha, assim, sentido, embora injustificável, pois ligado meramente à repetição. Daí a felicidade ambígua que acompanha os inúmeros déjà vus; muda o mundo mas não mudo eu, que sou sempre o mesmo procrastinador; o que me confirma me piora, o que me salva me dissolve, é hostil. Esta é a experiência que anima ou desanima a pesquisa de Guido, e a torna tão contraditória.[2]
Tudo o que os olhos veem, pode ser sinal do que viram e querem modelar na imaginação. Os joelhos da lavadeira, nas termas, levam às pernas da Saraghina dançando; Carlo no quarto, versão de Saraghina, traz a imagem da mãe; a senha infantil, asa nisi masa, evoca a hora do banho e o dormitório da infância. As imagens fazem eco: no harém, Guido abana as mãos cruzadas à volta do pescoço como fazia a menina Claudia antes de dormir, para conjurar espíritos; e Claudia será o nome da grande vedete; Guido é carregado em toalhas por suas servas imaginárias, como na infância, quando era embrulhado em fraldas para sair do banho; a mulher imperiosa, que sobe e desce as escadarias do hotel, tem o sorriso da estátua da Virgem que Guido vira ao sair do confessionário, quando criança. Por força das repetições e variações, as imagens passam a reverberar. Exigem e suscitam uma atitude peculiar, de atenção visual, empenhada em vislumbrar o que viu no que vê; um tipo de atenção sensorial, disponível, habitualmente reservado à música, pouco afim de decisões morais.
Não importa firmar posição diante de Luisa ou Carla; importa redescobrir nelas a infância, o que é uma posição também. A postura estritamente visual não toma partido; constata e associa. Através dela Guido fruta-se aos conflitos em que se meteu; busca em tudo a memória e a felicidade, e basta. Recria assim o privilégio da meninice, quando corria ver a Saraghina sem saber ou ocupar-se do pecado. A pureza do mundo infantil, entretanto, que é a fascinação de Guido, não está na ausência de contradição – a mãe e a rumbeira se excluíam desde sempre – mas na ignorância dela. Embora a contradição existisse no plano objetivo, pois existiam a praia e a escola, não fora ainda interiorizada, em forma de consciência e compromisso.
O adulto não vê Carla sem pressentir o desgosto de Luisa, e não vê Luisa sem sentir, em sua leveza um pouco antisséptica, a exclusão de Carla. A plenitude das imagens da infância corresponde à plenitude com que o menino esteve na praia como no casarão, antes de saber que um custava o outro. A comparativa palidez das imagens da vida adulta, por outro lado, corresponde ao senso, presente a cada passo, do oposto negado e perdido. A identidade entre as pesquisas autobiográfica e estética tem o seu fundamento aqui: se as imagens da criança são as mais fortes, é a pesquisa delas que irá produzir a obra melhor.
Guido não busca, pois, um mundo em que esteja superado o seu conflito; basta-se com procurar uma fase de sua vida, ou uma postura, em que não seja atingido pela contradição, que entretanto deve ser nítida e vigorosa, e deve lambisca-lo sempre. Busca a repetição inofensiva, mas não a superação. A possibilidade infantil de alinhar com os dois lados da contradição, de não optar entre os queridos, é a sua inveja. É o que tenta recuperar pela redução do mundo à dimensão visual: reduzido, o mundo volta a ser pleno; menos é mais, pois imagens não se negam ativamente, mesmo se contraditórias podem coexistir. A destruição está no nível dos feitos vivos, da lógica das situações.
Guido prefere ver apenas. Ora, a isenção em meio de contradições é coisa de eremita ou é privilégio. Em princípio, o mundo poderia deixar de lado quem não se ocupa dele. Guido, entretanto, se abstém a partir de uma posição de força, de cineasta. O mundo vem a sua procura em lugar de abandoná-lo. Há privilégio, mesmo que o privilégio fino de não respeitar, ao menos visualmente, privilégios sociais ou normas repressivas. A postura contemplativa – os olhos buscam seu prazer onde ele esteja – pressupõe uma república satisfatória, que não existe.
Prova é que ao corpo não se permite a poligamia ativa e farta permitida aos olhos, cujo democratismo natural, cuja capacidade imediata de interesse e simpatia não derrubam, por sua vez, as diferenças sociais. Os olhos são progressistas enquanto o corpo obedece ainda a uma legislação retrógrada. A postura de Guido é ambígua; vacila entre crítica e complacência, pois se nasceu de uma retirada, no retiro passa mais ou menos bem e gosta do espetáculo de que se retirou. A evasão nada resolve, mas assinala um impasse e um anseio que são reais. É resistência simbólica, embora tortuosa e humorística; uma consciência misturada, ciente de que seus conflitos insuperáveis não são insuperáveis, além de não contarem muito.
4.
A busca da imagem justa é central ao filme, é preciso interpretá-la. É tema através das obsessões visuais de Guido, e pressuposto técnico do enredo, já que se deve criar a ilusão de uma experiência imediata e rica, inacessível à reprodução artística. 8½ é de uma beleza visual assombrosa. As imagens que apresenta, perseguidas por Guido, irradiam felicidade e melancolia de mistura – a sua riqueza é a presença mais imediata para quem vê, mas é, também, a mais intangível ao conceito, pois não se liga diretamente à trama e ao diálogo, embora seja o seu contexto essencial. A imagem feliz é uma utopia cifrada.
Guido e 8½, cada um a seu modo, convergem na busca daquela: fazer que as pessoas apareçam segundo a sua natureza; dar-lhes razão até que floresçam desinibidas. As imagens tocadas de poesia são empostadas, as figuras parecem ser propositalmente o que são. Essa a chave de seu alento. Em suas visões, Guido como que bolina as figuras, para suscitá-las a desabrochar. Lembramos a cena de Carla, no terraço do balneário. Quando nota a esposa ao pé de Guido, a amante suburbana se amplia em intuições de cosmopolitismo, encena um esplendoroso ritual de discrição; família apesar das peles excessivas, atemorizada pela situação, mas envaidecida também, um pouco alucinada pelo balneário grã-fino e sobretudo achando sublime o sacrifício de ser uma senhora sozinha no parque, esconde-se bem visível a um canto.
A cena prossegue na fantasia de Guido, que atrás de seus óculos escuros visualiza Carla cantando, generosa, esticada e comovida como uma girafa que uivasse à lua, infeliz mas feliz porque amada a distância, solitária e fustigada como um violinista de opereta. A visão realiza o que a realidade suscita. Pela empostação acentuada, o que seria temos irrefletido é transformado em estratégia consciente. Encenando a si mesma, Carla não é mais o seu próprio limite vulgar; a sua vulgaridade é uma estilização graciosa que ela houve por bem escolher. O romantismo de radionovela, exaltado, mas prudente, de Margarida Gauthier dentro dos limites do praticável, torna-se ironia em meio das dificuldades dominadas. A euforia da imagem, sua desenvoltura utópica, vem da facilidade ostensiva no interior dos envolvimentos sociais.
A imaginação de Guido põe Carla a salvo das contradições reais e das limitações do bom senso, é um palco em que ela não responde pelo que faz. Nesse contexto o sentimentalismo imbecil da imagem – de que adianta a cantoria modesta e maravilhosa, quando em frente está a esposa, bufando? – passa por uma transformação surpreendente: no mundo irreal, onde não se torna abjeta pela humilhação a que corresponde, a vontade de agradar traduz apenas vontade de ser e de fazer feliz. Liberados de sua consequência prática pela fantasia, os dois lados da contradição se tornam positivos, não pedem a mútua exclusão.
Carla sente-se sublime e escusa simultaneamente, o que em imagem é duas vezes bom: uma porque é justo satisfazer-se, e outra porque é divertido burlar instituições hostis. Numa como noutra agitam-se veleidades válidas. Na realidade, entretanto, que é da esposa, e das leis, e forçosa, dá-se o inverso: porque satisfaz os caprichos seus e de Guido, Carla será mais puta do que sublime; e também na discrição haveria menos cumplicidade feliz que receio e ferida. Luisa, a esposa, fulmina Carla, a amante. Os anseios contraditórios, que eram felizes um a um, compõem a pessoa machucada quando se enfeixam na sua consequência prática. Dar a Carla o que é de Carla, ainda que ela não o possa sustentar – reside nisso a beleza da imagem –, e não dar a Luisa o que é dela; e vice-versa. Não é possível dar razão às duas, salvo em imagem, pois alimenta-se da mútua negação. Já se vê que a felicidade está nas visões isoladas, boas por si, e que no enredo, na dimensão das consequências e da responsabilidade, está o desastre.
Guido tem um fraco pela fraqueza. Vê nela o desejo que não será remido, que só não é força por força das circunstâncias. O amor do instante é o temor da sua continuação. A imagem abriga possibilidades que o enredo desconhece, e resiste a ser enquadrada nele; está para ele, que dispõe dela, como a veleidade pessoal para a marcha da sociedade: é uma célula subversiva, cuja riqueza, sem préstimo para a trama, respira lamento e protesto contra a simplicidade compulsória do que lhe sucederá. Poderia ser o ponto de partida de um entrecho novo, de um mundo que fizesse justiça ao que o entrecho velho descartava.
Construída contra o enredo hostil, a imagem feliz é o germe imaginário de outra ordem de coisas. A perfeição reflui sobre a existência, e incita à esperança; na atmosfera fantástica do filme, a felicidade poderia alastrar como uma coceira. Daí a força espantosa dessas imagens. Guido, entretanto, não quer revolucionar o mundo, nem imaginariamente. Quer curar certas dores, mas não para sempre nem por completo, pois perderia o prazer da cura. Daí a melancolia patife que acompanha as suas revoluçõezinhas visuais; não são coisa séria.
E há outra tristeza, também, essa irremissível e pesada: Guido quer felizes as suas personagens, mas aqui e agora, sem que se transformem, pois transformadas não seriam mais as que quer bem. Não quer revolução, quer redenção. Quer que as personagens sejam, mas não sejam como são: felizes, estariam livres de sua contradição, e não seriam quem são agora; sendo como são, não seriam felizes. O percurso é contraditório: para dar felicidade é preciso suspender a contradição que infelicita, o que suspende, entanto, a individualidade por amor da qual fora suspensa a contradição. Na perspectiva de Guido a imagem feliz não é verdadeira, e a imagem verdadeira é infeliz.
Em termos de lógica dramática: não é Luisa inteira quem escorraça Carla, nem seria o contrário. Para combater, as rivais deveriam especializar-se uma em ser amante e a outra em ser esposa, com prejuízo do mais que pudessem dar. O impasse institucional pesa sobre a imagem, as figuras não podem coexistir com plenitude se respeitam o seu contexto social. Retidas pela contemplação, entretanto, transbordam. Transbordando, sugerem novos enredos ou destinos mais ricos. Mas Guido acolhe as sugestões só pela metade; para o diretor personalista, o papel da fantasia é ambíguo: deve recuperar a integridade que a vida prejudica, mas não importa se além ou se aquém do conflito.
O anseio de plenitude é menor que a fobia pela tristeza da imperfeição visual. O critério não está nas exigências do mundo, mas na serenidade do cineasta. Há duas vias, portanto, na composição da imagem feliz: uma, triunfal, em que a personagem supera o que a limita, chegando à inteireza; na outra, humilhante para o objeto, a veleidade pessoal é ajustada à situação real de modo a não diferir dela; anulada portanto. Nos dois casos, antagônicos, resulta harmônio para a contemplação. No retiro visual a benevolência mais generosa e a crueldade não se excluem.
A felicidade e o acerto das imagens provêm de sua irrealidade. Negam, sublimam, superam conflitos reais, deixam entrever a liberdade no corpo mesmo de quem está preso. A realidade infeliz é a sua referência, fora da qual não têm sentido. Não têm autonomia. Para desespero de Guido não compõem uma história, embora sejam parte da história de um diretor que por meio delas não consegue compor uma história. O melhor exemplo é Claudia. Ao criticar o roteiro de Guido, o literato magriço afirma que ela é o mais bolorento dos clichês bolorentos que perfazem o filme futuro; e tem razão. Entretanto, ela é das imagens belíssimas do filme presente. Como explicar? Tomada por si só, de fato, ela seria uma fada boba. Mas o seu contexto é a fantasia de Guido, levemente combalido e canastrão, recuperando o fígado nas termas.
Vista através de nervos cansados, a sua imagem branca de enfermeira das almas e do corpo é medicinal. O copo d’água, vindo de suas mãos, é como a fonte da vida nova. Seu passo é leve e constante como a doçura estática de seu sorriso. Ah, constância sem esforço. O corpo é cheio, mas os pés são suaves, descalços sobre a relva. Oh, peso que não fere. Claudia avança como quem bebe a brisa, as mãos um pouco atrasadas deixam supor que irá voar. Ah, sonho, não voe já. Precisa ser vista duas vezes: como a garça alvinitente e chocha, ragazza crescida entre objetos de antica beleza, pureza e solução no filme de Guido, e como a contra-imagem silenciosa e lenitiva da desordem, das olheiras, do ruído. É a presença de Guido que dá vida ao chavão. Claudia não pode contracenar, não tem continuidade no mundo imaginário; a sua substância é o instante de Guido. Ela é como um poema seu. Mas poemas não compõem um romance.
Tomar o partido da incoerência, da imagem contra o enredo, do instante contra a sua consequência, é tomar o lado da irresponsabilidade; mas é o lado, também, das veleidades inibidas ou espezinhadas pela coerência que esteja no poder. Esta ambiguidade é o limite de Guido, seu fracasso como diretor, seu interesse como personagem. Não há realismo em sua atitude, pois a coerência irá prevalecer; mas há sentido em sua derrota. Resulta uma atmosfera elegíaca, de lamentação das felicidades possíveis, das possibilidades que a situação deixa, mas não deixa medrar. Paradoxalmente, a impotência de Guido transmite, pela irritação que nos causa, o senso preciso de que a ordenação da vida está obsoleta; consciência e meios materiais, parece tudo à mão para modificá-la.
5.
A imagem feliz, construída para curativo pessoal, nasce de uma operação simples: transforma em opção o que é destino, em disfarce o que é cicatriz, e faz que desapareça, assim, a marca da coerção social. Anula a diferença entre o propósito e a existência. Cria um mundo feliz e fraterno, cuja finalidade é fazer bem a Guido, não incomodá-lo. É como uma república socialista de que ele fosse o rei. As imagens de paz são imagens de violência, pois cancelam o próximo para pacificá-lo. A fantasia da dança reconciliada entre a esposa e a amante é um exemplo; dá prazer a Guido, mas é possível somente porque Luisa foi esvaziada.
A generosidade de Guido é generosa com ele mesmo, e brutal com as personagens. A disparidade entre carinho e impertinência culmina quando Guido transforma a mulher numa linda criadinha azafamada, que prepara o seu banho e escova o chão de seu harém. As conciliações todas são mandadas, obra da onipotência imaginária de Guido; não solucionam nada, não passam pelo interior das personagens e de seus conflitos. Não é à toa que a grande pacificação final se faz numa ciranda. Os pais e o filho os padres e a rumbeira, a mulher e a amante, os atores e seu diretor, todos dão as mãos numa dança fraterna, sem que, entanto, se resolvesse, entre eles, uma só diferença.
A imagem da farândola pacificada tem três lados: para Guido ela é feliz, pois suspende as suas contradições mais doídas e permite uma conciliação, ilusória, pelo transbordamento sentimental; para as personagens é um ultraje, pois o próprio de cada qual é posto de lado, a bem da paz de Guido; para o espectador é comovente e irritante, pois embora atenda a uma dor real, não leva para além dela – pela ilusão que cria fecha um círculo de reincidência. Guido passa pelo que passa sem aprender, no final está no mesmo ponto em que começou. Quer, por força, tomar contradições como se fossem harmonia, reter o mundo tal e qual; para nada perder nada supera, para não mentir a si mesmo, ou mesmo a Carla e Luisa, mente aos três.
Guido anda em círculo. O horizonte de 8½ e do espectador, entretanto, não é o seu, é maior. Daí não ser trágico o conflito, que tem mais de inércia que de necessidade. A inércia de Guido, contudo, desperta uma reação muito forte, aparentemente desproporcional. Também Carla é casada, também Luisa tem um flerte. Não obstante, a situação das duas é incomparável à de Guido, cuja complacência dos atinge e escandaliza como coisa decisiva. Por que razão? Habitualmente, encontrar uma solução privada e secreta para impasses coletivos, por isso mesmo inevitáveis, é sinal de saber viver. Salvo quando a solução pessoal pode ter alcance público, suspendendo o impasse que tornava necessário o engenho e o segredo individuais. Deixar de publicá-la passa então a conformismo, e mais, passa a ridículo, pois produz uma prudência já desnecessária.
Embora seja palpável à experiência, o anacronismo nos impasses de Guido é difícil de localizar. Por que não serão válidas as obsessões de um homem, os seus compromissos entre a mulher e a amante? Qual o contexto que lhes tira o peso? Guido não é simplesmente um homem; é um cineasta. O cinema, com a atmosfera que o envolve, introduz uma constelação prática para a qual os conflitos burgueses são letra morta. Por forte que seja o senso disso, isso não é fácil de comprovar, pois trata-se do horizonte efetivo, mas nunca explicitado, de 8½ e de nossa cultura. Os indícios do mundo novo mal e mal se entreveem, embora sempre o bastante para tornar pungente e obsoleta a permanência do mundo velho.
Não nos interessa, aqui, o argumento abstrato contra a sociedade individualista; procuramos as imagens e situações cuja meta presença, no filme, bastou para tingir de caducos os empenhos de Guido. Em seu passeio pelas termas, o cineasta vê uma sucessão vertiginosa de faces extraordinárias, imperiosas e originais. A sequência não se deve apenas à perspicácia de seu olhar treinado, que sabe ver, mas ao exibicionismo que a sua profissão suscita. Daí a ida se acelerar e empostar à sua volta.
Vislumbrada por todos na atenção do diretor, a câmera de cinema representa um estágio novo da técnica, faz pressentir modalidades novas de convívio. Mobiliza impulsos como aquele que faz um torcedor saltar, para que os telespectadores da cidade tomem conhecimento de sua cara. Não que ele se ache bonito, mas quer ser visto. A câmera de cinema tem um poder curioso, que é preciso interpretar: desperta orgulho nas pessoas, de serem quem são.[3] Diante do olho impessoal, ao mesmo tempo que universal pelo alcance, mostram-se trejeitos e intimidades que normalmente se escondem com cuidado.
O que é vergonha ou handicap visto por poucos, ganha dignidade de patrimônio nacional quando o público somos todos. O que é flanco exposto numa perspectiva particularista e antagônica, é peculiaridade pessoal, ousadia, traço curioso no acervo humano tão logo o ponto de vista seja coletivo. É como se as pessoas dissessem: vejam que verruga mais interessante essa minha; ou, espiem como é feio o meu pé; ou, olhem só como sou gordo ou magricelo. Já se vê que o cinema atiça, em escala total, a liberação que Guido empreende com requinte, como prova de talento pessoal e em favor de quem lhe é caro. O alcance da técnica escapa a Guido, que dispensa como benevolência suas virtualidades que são da cultura. Está nisso a convergência como a divergência entre 8½ e Guido.
Há gestos que só se fazem quando sozinho – as criancices de Guido, no banheiro e no corredor – ou diante da câmera, que mostrará o gesto a todos. Neste paradoxo está cifrado o alento utópico do cinema. O filme, por sua imparcialidade mecânica e pela circulação social que tem, cria ou ajuda a criar uma universalidade que não é teórica apenas, mas é prática; pode haver publicidade total de tudo. Representa num estágio técnico em que os segredos e, portanto, o antagonismo organizado só artificiosamente se mantém.
Libera o indivíduo de sua posição particular na sociedade, de seu convívio restrito e restritivo, para dar-lhe como esfera o conjunto da vida social. Não se trata apenas de uma ampliação. É o próprio eixo do convívio que se desloca. A referência coletiva suscita as faculdades que o conflito imediatista abafa. O olho cinematográfico é um confessionário especial: quem ouve não é um padre autoritário, mas é a nação em seus momentos de curiosidade e lazer; tudo o que diverte e não atrapalha merece absolvição, isto é, licença.
Diante do olho universal da ciência, diante do universalizador concreto que são os mass media, as peculiaridades pessoais deixam de ser fraqueza secreta e sinal de inumanidade – o que sempre foram no inteiro do contexto competitivo – como as contradições sociais deixam de ser fato natural e insuperável. O cinema, a psicanálise, a sociologia, o convívio cerrado na cidade grande, essas perspectivas tornam insustentável a ficção burguesa da natureza humana, da sociedade composta de bichos proprietários, competitivos e monogâmicos. Nestas circunstâncias, que são as do filme, a persistência da ordem tradicional de vida é particularmente penosa. Leva à generalização da má-fé, e ao nascimento de novas formas dela.
Luisa, vendo Carla no parque, diz a Guido: “O que mais me enfurece é pensar que aquela vaca sabe tudo de nós”. Em seguida explode, em voz baixa porque é civilizada: “Puta!”. Logo depois desculpa-se de estar fazendo a burguesa. A sua fúria é complexa: “saber tudo”, no caso, será saber coisas extraordinárias? De modo algum. A violência de Luisa mais finge do que defende uma intimidade preciosa, em boa parte é indignação pela inexistência do que pretende resguardar. Na ferocidade dolorosa com que afirma a sua diferença está implícito o reconhecimento da igualdade. Luisa sabe da variedade dos desejos e não reconhece mais autoridade às proibições tradicionais; intelectualmente não tem por que se revoltar.
A crítica teórica, entretanto, não afasta a contradição prática. A coexistência prolongada das duas, por sua vez, queima os nervos. Luisa diz a Guido que ele “mente como respira”, o que vale também para ela e para todos os que vivem a sua situação – se for incluído entre as mentiras mentir a si mesmo. Nasce um tipo novo de fisionomia, correspondente específico desta constelação: a fisionomia do intelectual, do homem cônscio e cioso de suas contradições. Tanto quanto sei, foi posta na tela por Fellini e Antonioni pela primeira vez. O rosto é desgastado, mas não pelo esforço físico, de modo que guarda traços juvenis, que não são felizes; é livre e expressivo por instantes, embora em geral pareça preso, não pela estupidez, mas pela consciência logo maníaca de suas próprias contradições; há fraqueza, mas não apodrecimento, pois o esforço de buscar a verdade, de viver a vida mais ou menos certa, é constante.
Dirigida contra Guido, mas também contra si mesmo, a mistura tensa de desprezo, piedade e fúria forma um ríctus espantoso à volta da boca de Luisa o seu rosto doído, consciente e destrutivo é um emblema, tão verdadeiro para o filme quanto o sorriso de Guido, generoso, complacente e depressivo. O mundo tem as caras que pode ter.
Guido vê, mas não ouve, escondido atrás de seus óculos escuros. Alheio à conversação e aos problemas que aparecem nela, compõe o seu mundo feliz. Os outros ouvem, mas não veem: metidos em suas questões, não admitem que haja mundo fora delas. Este é o contexto que dá riqueza e verdade ao esquematismo das grandes cenas finais. A ciranda da felicidade, em que se recuperam a fraternidade universal e a pureza das figuras brancas, seria sentimentalismo se fosse real, se fosse apresentada como solução. Sendo irreal, entretanto, apenas visão, é justo que seja triunfal, pois concilia contradições dolorosas. Sendo triunfal e sem realidade, tinge-se de melancolia e é de uma beleza tocada pelo improvável. A sua mentira é a sua verdade, euforia e garganta cerrada: a apoteose torna-se sinal de sua própria ausência.
Roberto Schwarz é professor aposentado de teoria literária na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Seja como for (Editora 34).
Publicado originalmente, sob o título “O menino perdido e a indústria”, no Suplemento literário do jornal O Estado de S. Paulo, em 1964.
[1] Em seu ensaio sobre As afinidades eletivas, Walter Benjamin comenta a resistência de Goethe ao casamento: “Ao perceber quanto é tremenda a exigência das forças do mito, conciliáveis somente pela constância do sacrifício, Goethe se rebelou”, em Schriften, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1955, p. 99.
[2] “Ele sente que ao viver impede o seu próprio caminho. Mas nesse impedimento, por outro lado, encontra a prova de que vive”, F. Kafka, “Ele”, in Descrição de uma luta.
[3] “A industrialização capitalista do cinema barra o direito que tem o homem contemporâneo de se ver reproduzido”, Walter Benjamin, A obra de arte ao tempo de sua reprodução técnica.
Comentário sobre o filme clássico do cineasta italiano
Por Roberto Schwarz
19/05/2021 10:49
Créditos da foto: (Reprodução/bit.ly/3v6YvDy)
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1.
É fácil gostar de 8½, e mais difícil dizer por quê. Presa à psicologia de Guido e da criação artística, a discussão tende a perder-se em banalidades sobre a persistência infeliz mas feliz do menino no quarentão. O alcance do filme é maior, transcende a psicologia. Fosse psicológico o seu eixo, não haveria prejuízo essencial em transformar o cineasta num músico ou escritor, pois a distância entre a experiência infantil e a realização artística ou pessoal permaneceria a mesma. Lembrado o filme, entretanto, sabemos que o prejuízo seria enorme. A profissão de Guido é o contexto indispensável de 8½: em contato com a indústria do cinema os problemas tradicionais do artista e intelectual tomam feição nova e piorada.
Acionado pela indústria, sem a qual não nasce, o cinema atinge grande parte da população nacional. Pelo dinheiro e pela fama que movimenta, é o sonho comum: todos querem registrar-se nele. É a primeira forma de arte a ter circulação forçada, análoga, em penetração, à expansão da economia moderna. Essa força, Fellini faz senti-la ao mostrar como tudo sorri, se arruma e curva quando passa Guido, o diretor: todos querem ser personagens suas. Ao alcance total corresponde, é claro, uma responsabilidade também total. Se querem todos mostrar-se, é preciso fazer justiça a todos.
A concepção artística de Guido, entretanto, é burguesa; o seu anseio é de objetivar uma visão pessoal, idiossincrática, uma fixação infantil de que assim ficaria liberto. Este o problema psicológico explícito no filme. O alcance maior do tema, entretanto, implícito, está na articulação de sua banalidade com a indústria, que lhe dá potência. Fosse escritor, Guido poderia atrapalhar, com as suas fixações, a vida de três, quatro, cinco mulheres. Muito mais é impossível, para quem corteja com recursos pessoais. Mas Guido é diretor de cinema: tem as mulheres da nação a seu dispor, ao dispor de suas manias, e irá atormentá-las segundo a sua semelhança maior ou menor com os mitos infantis.
Há descompasso entre as forças sociais desencadeadas e o particularismo que as reage. Diante da máquina social, do poder criado pelo desenvolvimento burguês, é a própria concepção e glorificação burguesa do indivíduo – partícula sagrada, valor máximo – que prova grotesca. Valer-se da indústria e atordoar o país para objetivar uma fixação infantil é possível, mas absurdo: se a personalidade triunfante é livre e caprichosa, é que todos lhe devem o salário de que vivem. Como bem demonstra a figura de Guido, crueldade e fraquezas de si pequenas são monumentalizadas pela posse privada da engrenagem social. O cinema põe em xeque a concepção individualista das artes: a busca da garantia subjetiva de autenticidade – o ator deve corresponder à visão prévia do diretor – prova ser tirania.
A obra não é feita para o bem do mundo, mas é o mundo que existe para a subsistência da visão. Esta frase, que para os estetas do século XIX era metafórica e exprimia repulsa em face da comercialização filistina da vida, ganha sentido prático e real quando associada ao cinema e ao seu poder econômico. Aliada ao poder industrial, a delicada exigência de autenticidade subjetiva põe à mostra o seu lado prepotente, a fúria de impor aos outros a própria visão; fúria que é simbólica da violência diariamente realizada na vida competitiva. Uma idiossincrasia quer ser melhor que a outra. O cinema, pelas exigências práticas de sua linguagem, explicita o que fica implícito nas outras artes: há violência social no impulso que leva à elaboração de mitologias pessoais, mesmo nas filigranas de um poema hermético.
2.
Acusa-se 8½ de ampliar desmesuradamente uma angústia pequena. Mostramos, já, que esta ampliação é tema do filme, e não seu defeito. O engano vem da identificação de Guido e Fellini, autorizada pelos colunistas de mexerico, pelo próprio diretor, talvez, mas não pelo filme. Se Fellini é Guido, os conflitos deste campeiam idênticos no peito daquele, que seria o bobo de suas próprias limitações, um pequeno-burguês nostálgico e fantasioso, incapaz de fazer coisa que preste. Para defender 8½ é preciso mostrar em Guido a personagem, explicitar a diferença entre o seu modo de ver e o nosso de vê-lo vendo. Quanto mais idiossincráticos os seus propósitos, maior o significado social de sua figura, que resta expor.
Guido saúda a atriz francesa dizendo que tem cara de lumachina, “caracol”; a semelhança é mesmo surpreendente. É de supor que o diálogo esteja ajustado às personagens, de modo a fazê-lo exato; basta imaginar a dificuldade, caso o texto precedesse os atores, de encontrar uma atriz com cara de escargot. Na realização do filme o diretor parte dos atores que tem, e não das personagens imaginárias. O processo não será privativo de Fellini, mas tem importância especial para 8½, cujo tema é o procedimento inverso: Guido parte de suas obsessões, e procura nos atores a semelhança com elas; mas entre visão e ator há um hiato insuperável.
Não se deve esquecer, entretanto, que as visões de Guido – as visões e experiências belíssimas, ricas e naturais, que seus atores só conseguem estragar – foram elas mesmas filmadas, por Fellini. Há dois filmes: um bom, da vida real e imaginária de Guido, e um ruim, em que Guido procura recriar a sua experiência. Correspondem às duas maneiras de filmar que descrevemos. Para exemplificar, imaginemos Fellini com um arsenal de dez bruxas mais ou menos parecidas. Tomará uma delas, e tentará captar, em detalhe, as possibilidades de bruxa da bruxa que tem; esta será a Saraghina extraordinária das visões de Guido. Para fazer o filme feito por sua personagem, entretanto, Fellini procederá de maneira diversa: manda que as outras nove imitem a primeira, já transformada, agora, em vida real, fora do alcance de Guido, que gostaria de reproduzi-la.
A diferença no resultado é nítida. Filmadas segundo as suas naturezas individuais, as novas poderiam ser interessantes; forçadas a imitar a Saraghina original, tornam-se todas cópias baratas, interpretam seus papéis. As duas maneiras de filmar correspondem, respectivamente, a 8½ e à sua personagem; a de Guido sai batida. São também transposição técnica do antagonismo social que expusemos a princípio: o anseio burguês, de impor e assim salvar uma visão apenas pessoal, é contrário ao compromisso coletivo, e por isso mesmo objetivo, do cinema. Para Guido as imagens valem quando biograficamente saturadas; o seu critério é a memória, a sua tarefa a recriação. Para 8½, as imagens valem quando plenamente realizadas; o critério é a significação objetiva, a tarefa é a revelação de possibilidades do objeto.
O frescor inalcançável da visão imediata, miragem de Guido, é alcançado e fabricado por Fellini. Fabricado o infabricável, mediado o imediato, deslocam-se os problemas. Fica sem justificativa a obsessão de Guido, que identificava a pesquisa da beleza à objetivação de suas fixações infantis e de seus ecos adultos. Será presunção sustentar a sua identidade, uma vez demonstrado que se podem separar. O filme teria um tema que ele próprio declara ultrapassado, e estaria certo dizer, como disseram críticos de esquerda, que ele não interessa.
Entretanto: não basta saber que uma aberração é aberrante para tirá-la do mundo; não basta, para dissolvê-la, saber que a posse privada da engrenagem social é um contrassenso; o casamento é contraditório, pretende fixar a espontaneidade? não é por saber disso que as pessoas se amolam menos. Em efígie, a consciência racionalista já enterrou o mundo burguês, que entretanto persiste e lhe dita as regras de existência. Esta reprise continuada e compulsória de mentiras gastas é o chão histórico, e atual, de 8½. A persistência meramente prática de costumes e instituições, que racionalmente já são anacronismo, dá justeza à mistura de ridículo e desespero no filme, exige a investigação sustentada e mesmo maníaca das origens, das razões que dão sete fôlegos ao cadáver. A técnica de 8½ torna caduca a de Guido, mas a ordem vigente, à qual se aplica, repõe os problemas de Guido em circulação, na qualidade, agora, de ultrapassados.
3.
As contradições da realidade social, mesmo se criticadas em teoria, impõem a existência contraditória: a cada impasse corresponde uma crispação na consciência individual, obrigada a fazer sua uma dificuldade que despreza. A concessão, entretanto, não dissolve o impasse social, que perdura e volta a cobrar submissão logo adiante.[1] Favorecido pela força do cinema, Guido não procura o mundo; o mundo é que o procura e desfila na sua frente, uma procissão oferecida de empresários, empregados, atrizes, amigos velhos, jornalistas, todos rapidamente consumidos e dispensados. A contradição entre o alcance coletivo e o horizonte personalista, em Guido, desgastará de maneira sempre análoga todas as relações pessoais.
O mel se despreza na voracidade das moscas; espera por uma que não seja voraz, que entretanto não virá, pois se vier não será a esperada. Ao impasse social corresponde uma coleção de conflitos individuais, imagens suas, em cuja variedade transparece a constância da impossibilidade fundamental. É a própria realidade que está fixada. Este contexto faz reconsiderar a fixação psicológica, a qual poderá não ser apenas mania contingente, sem sentido generalizável. Pode corresponder à estrutura do mundo real. Na obsessão que vê o mesmo em tudo pode haver loucura, mas também senso, senso de que a multiplicidade do mundo não é renovação, mas variação de uma dificuldade insuperada.
Na perspectiva biográfica, de Guido e da memória, este traço maníaco da realidade é ligado à primeira experiência pessoal do impasse, que seria matriz e causa de suas versões posteriores. Entretanto: sem prejuízo de ser indelével para a biografia individual, o detalhe da primeira experiência é contingente em face do impasse objetivo, que pesaria de uma ou de outra forma. Embora o antagonismo entre sexualidade e vida normativa, para Guido, seja mera repetição do conflito entre Saraghina e sua mãe, o conflito, por sua vez, é a confirmação do antagonismo, que tem alcance coletivo. Está-se vendo que a pesquisa da infância, tida por chave das dificuldades adultas, leva a substituir ao impasse objetivo uma sua manifestação contingente – essa a banalidade das preocupações de Guido.
Mas vê-se também que nos seus achados vive em detalhe a contradição social – este o horizonte de 8½. Fixações pessoais são a cifra traumática da violência que sustenta uma ordem de convívio. Não sã simbólicas para Guido; são mesmo fixações, e devem ser remidas como tais: são tortura e promessa de prazer, recuperá-las em sua peculiaridade seria uma libertação. Na perspectiva do filme, entretanto, elas têm grande generalidade: a igreja de um lado e as perdidas do outro, a infância na província, na casa grande, cheia de mulheres serviçais, e a vida na cidade grande, das mulheres independentes – estes contrastes compõem um padrão típico, de alcance ocidental.
Guido circula ativamente entre presente, memória e fantasia. As senhas de passagem sã geralmente detalhes visuais, e a origem do movimento é o instante do adulto. A matriz dos significados, entretanto, está nas imagens da infância, cuja força e anterioridade lógica faz delas como que o lastro real da inquietação de Guido. Os dilemas do adulto aparecem como variação mais ou menos disfarçada de contradições antigas, de uma ambiguidade fundamental: a Saraghina é o mal mas é o bem; e a mãe e os padres são o bem mas são o mal. A bruxa, uma espécie de hipopótamo leonino, enxotado para as praias abandonadas da povoação é feroz: mas é cúmplice, também, de todos os anseios, pois em sua ferocidade acuada preservou-se a vindicação sensual da felicidade que o povoado expulsou e reprimiu.
Se a Saraghina existe, tudo é permitido. É assombrosa de poder libertário a cena em que o monstro humilhado se transfigura pela dança e pelo aplauso dos meninos, transformando-se em leoa e finalmente em felicidade turbulenta. Mas o que é bom dura pouco: os padres chegam logo e arrastam o menino para o outro campo, da religião, da família, da escola. A mãe de Guido, uma santa senhora, é limpinha, magra e virtuosa. Implora ao filho que se comporte. Vista em close, entretanto, tem o olho rancoroso. Enquanto enxuga as lágrimas sentidas da pálpebra esquerda, o seu olho direito espia, duro e acusador.
Em seguida o sentimento e o lenço passam para a face direita, trocam de lado com a virtude ultrajada. As imagens do bem são contraditórias mesmo visualmente; a decadência é a face hipócrita, mas transparente da autoridade: assim na composição simétrica de sentimento e tirania sobre um rosto, na silhueta frágil da figurinha materna, desmentida pela dureza dos detalhes fisionômicos, no gesto ungido dos padres, que vistos de perto têm cara de mulher.
O antagonismo entre Luisa, esposa de Guido, e Carla, a sua amante, reproduz o conflito da infância. A duplicação faz o esquema e o interesse psicológico do enredo. No brio civilizado e ressentido de Luisa ecoam os brados de vergogna dos padres e da mãe, como no gesto rocambolesco e pequeno-burguês de Carla, obsequiosamente desfrutável, ecoa minguada a liberdade prometida pela Saraghina. A correspondência entre os pares é bem explícita: durante um beijo sonhado, Guido transforma a mãe na sua mulher, e no quarto de hotel transforma Carla em Saraghina, ao pintar-lhe as sobrancelhas e pedindo que faça uma faccia da porca. O real é o presente, a infância é imaginária; mas a nitidez está na infância, de que o real, presente, é reflexo intrincado.
O presente visual é poroso, centelha para memória e fantasia; deixa transparecer a matriz irresolvida, e por isso constante, da infância. A matriz clarifica, ordena a confusão da experiência, é capaz de sustentar a identidade pessoal através da voragem das solicitações. A unidade da pessoa está baseada, portanto, na permanência de impasses, na fraqueza. Há prazer na recorrência, autoconstatação; a vida ganha, assim, sentido, embora injustificável, pois ligado meramente à repetição. Daí a felicidade ambígua que acompanha os inúmeros déjà vus; muda o mundo mas não mudo eu, que sou sempre o mesmo procrastinador; o que me confirma me piora, o que me salva me dissolve, é hostil. Esta é a experiência que anima ou desanima a pesquisa de Guido, e a torna tão contraditória.[2]
Tudo o que os olhos veem, pode ser sinal do que viram e querem modelar na imaginação. Os joelhos da lavadeira, nas termas, levam às pernas da Saraghina dançando; Carlo no quarto, versão de Saraghina, traz a imagem da mãe; a senha infantil, asa nisi masa, evoca a hora do banho e o dormitório da infância. As imagens fazem eco: no harém, Guido abana as mãos cruzadas à volta do pescoço como fazia a menina Claudia antes de dormir, para conjurar espíritos; e Claudia será o nome da grande vedete; Guido é carregado em toalhas por suas servas imaginárias, como na infância, quando era embrulhado em fraldas para sair do banho; a mulher imperiosa, que sobe e desce as escadarias do hotel, tem o sorriso da estátua da Virgem que Guido vira ao sair do confessionário, quando criança. Por força das repetições e variações, as imagens passam a reverberar. Exigem e suscitam uma atitude peculiar, de atenção visual, empenhada em vislumbrar o que viu no que vê; um tipo de atenção sensorial, disponível, habitualmente reservado à música, pouco afim de decisões morais.
Não importa firmar posição diante de Luisa ou Carla; importa redescobrir nelas a infância, o que é uma posição também. A postura estritamente visual não toma partido; constata e associa. Através dela Guido fruta-se aos conflitos em que se meteu; busca em tudo a memória e a felicidade, e basta. Recria assim o privilégio da meninice, quando corria ver a Saraghina sem saber ou ocupar-se do pecado. A pureza do mundo infantil, entretanto, que é a fascinação de Guido, não está na ausência de contradição – a mãe e a rumbeira se excluíam desde sempre – mas na ignorância dela. Embora a contradição existisse no plano objetivo, pois existiam a praia e a escola, não fora ainda interiorizada, em forma de consciência e compromisso.
O adulto não vê Carla sem pressentir o desgosto de Luisa, e não vê Luisa sem sentir, em sua leveza um pouco antisséptica, a exclusão de Carla. A plenitude das imagens da infância corresponde à plenitude com que o menino esteve na praia como no casarão, antes de saber que um custava o outro. A comparativa palidez das imagens da vida adulta, por outro lado, corresponde ao senso, presente a cada passo, do oposto negado e perdido. A identidade entre as pesquisas autobiográfica e estética tem o seu fundamento aqui: se as imagens da criança são as mais fortes, é a pesquisa delas que irá produzir a obra melhor.
Guido não busca, pois, um mundo em que esteja superado o seu conflito; basta-se com procurar uma fase de sua vida, ou uma postura, em que não seja atingido pela contradição, que entretanto deve ser nítida e vigorosa, e deve lambisca-lo sempre. Busca a repetição inofensiva, mas não a superação. A possibilidade infantil de alinhar com os dois lados da contradição, de não optar entre os queridos, é a sua inveja. É o que tenta recuperar pela redução do mundo à dimensão visual: reduzido, o mundo volta a ser pleno; menos é mais, pois imagens não se negam ativamente, mesmo se contraditórias podem coexistir. A destruição está no nível dos feitos vivos, da lógica das situações.
Guido prefere ver apenas. Ora, a isenção em meio de contradições é coisa de eremita ou é privilégio. Em princípio, o mundo poderia deixar de lado quem não se ocupa dele. Guido, entretanto, se abstém a partir de uma posição de força, de cineasta. O mundo vem a sua procura em lugar de abandoná-lo. Há privilégio, mesmo que o privilégio fino de não respeitar, ao menos visualmente, privilégios sociais ou normas repressivas. A postura contemplativa – os olhos buscam seu prazer onde ele esteja – pressupõe uma república satisfatória, que não existe.
Prova é que ao corpo não se permite a poligamia ativa e farta permitida aos olhos, cujo democratismo natural, cuja capacidade imediata de interesse e simpatia não derrubam, por sua vez, as diferenças sociais. Os olhos são progressistas enquanto o corpo obedece ainda a uma legislação retrógrada. A postura de Guido é ambígua; vacila entre crítica e complacência, pois se nasceu de uma retirada, no retiro passa mais ou menos bem e gosta do espetáculo de que se retirou. A evasão nada resolve, mas assinala um impasse e um anseio que são reais. É resistência simbólica, embora tortuosa e humorística; uma consciência misturada, ciente de que seus conflitos insuperáveis não são insuperáveis, além de não contarem muito.
4.
A busca da imagem justa é central ao filme, é preciso interpretá-la. É tema através das obsessões visuais de Guido, e pressuposto técnico do enredo, já que se deve criar a ilusão de uma experiência imediata e rica, inacessível à reprodução artística. 8½ é de uma beleza visual assombrosa. As imagens que apresenta, perseguidas por Guido, irradiam felicidade e melancolia de mistura – a sua riqueza é a presença mais imediata para quem vê, mas é, também, a mais intangível ao conceito, pois não se liga diretamente à trama e ao diálogo, embora seja o seu contexto essencial. A imagem feliz é uma utopia cifrada.
Guido e 8½, cada um a seu modo, convergem na busca daquela: fazer que as pessoas apareçam segundo a sua natureza; dar-lhes razão até que floresçam desinibidas. As imagens tocadas de poesia são empostadas, as figuras parecem ser propositalmente o que são. Essa a chave de seu alento. Em suas visões, Guido como que bolina as figuras, para suscitá-las a desabrochar. Lembramos a cena de Carla, no terraço do balneário. Quando nota a esposa ao pé de Guido, a amante suburbana se amplia em intuições de cosmopolitismo, encena um esplendoroso ritual de discrição; família apesar das peles excessivas, atemorizada pela situação, mas envaidecida também, um pouco alucinada pelo balneário grã-fino e sobretudo achando sublime o sacrifício de ser uma senhora sozinha no parque, esconde-se bem visível a um canto.
A cena prossegue na fantasia de Guido, que atrás de seus óculos escuros visualiza Carla cantando, generosa, esticada e comovida como uma girafa que uivasse à lua, infeliz mas feliz porque amada a distância, solitária e fustigada como um violinista de opereta. A visão realiza o que a realidade suscita. Pela empostação acentuada, o que seria temos irrefletido é transformado em estratégia consciente. Encenando a si mesma, Carla não é mais o seu próprio limite vulgar; a sua vulgaridade é uma estilização graciosa que ela houve por bem escolher. O romantismo de radionovela, exaltado, mas prudente, de Margarida Gauthier dentro dos limites do praticável, torna-se ironia em meio das dificuldades dominadas. A euforia da imagem, sua desenvoltura utópica, vem da facilidade ostensiva no interior dos envolvimentos sociais.
A imaginação de Guido põe Carla a salvo das contradições reais e das limitações do bom senso, é um palco em que ela não responde pelo que faz. Nesse contexto o sentimentalismo imbecil da imagem – de que adianta a cantoria modesta e maravilhosa, quando em frente está a esposa, bufando? – passa por uma transformação surpreendente: no mundo irreal, onde não se torna abjeta pela humilhação a que corresponde, a vontade de agradar traduz apenas vontade de ser e de fazer feliz. Liberados de sua consequência prática pela fantasia, os dois lados da contradição se tornam positivos, não pedem a mútua exclusão.
Carla sente-se sublime e escusa simultaneamente, o que em imagem é duas vezes bom: uma porque é justo satisfazer-se, e outra porque é divertido burlar instituições hostis. Numa como noutra agitam-se veleidades válidas. Na realidade, entretanto, que é da esposa, e das leis, e forçosa, dá-se o inverso: porque satisfaz os caprichos seus e de Guido, Carla será mais puta do que sublime; e também na discrição haveria menos cumplicidade feliz que receio e ferida. Luisa, a esposa, fulmina Carla, a amante. Os anseios contraditórios, que eram felizes um a um, compõem a pessoa machucada quando se enfeixam na sua consequência prática. Dar a Carla o que é de Carla, ainda que ela não o possa sustentar – reside nisso a beleza da imagem –, e não dar a Luisa o que é dela; e vice-versa. Não é possível dar razão às duas, salvo em imagem, pois alimenta-se da mútua negação. Já se vê que a felicidade está nas visões isoladas, boas por si, e que no enredo, na dimensão das consequências e da responsabilidade, está o desastre.
Guido tem um fraco pela fraqueza. Vê nela o desejo que não será remido, que só não é força por força das circunstâncias. O amor do instante é o temor da sua continuação. A imagem abriga possibilidades que o enredo desconhece, e resiste a ser enquadrada nele; está para ele, que dispõe dela, como a veleidade pessoal para a marcha da sociedade: é uma célula subversiva, cuja riqueza, sem préstimo para a trama, respira lamento e protesto contra a simplicidade compulsória do que lhe sucederá. Poderia ser o ponto de partida de um entrecho novo, de um mundo que fizesse justiça ao que o entrecho velho descartava.
Construída contra o enredo hostil, a imagem feliz é o germe imaginário de outra ordem de coisas. A perfeição reflui sobre a existência, e incita à esperança; na atmosfera fantástica do filme, a felicidade poderia alastrar como uma coceira. Daí a força espantosa dessas imagens. Guido, entretanto, não quer revolucionar o mundo, nem imaginariamente. Quer curar certas dores, mas não para sempre nem por completo, pois perderia o prazer da cura. Daí a melancolia patife que acompanha as suas revoluçõezinhas visuais; não são coisa séria.
E há outra tristeza, também, essa irremissível e pesada: Guido quer felizes as suas personagens, mas aqui e agora, sem que se transformem, pois transformadas não seriam mais as que quer bem. Não quer revolução, quer redenção. Quer que as personagens sejam, mas não sejam como são: felizes, estariam livres de sua contradição, e não seriam quem são agora; sendo como são, não seriam felizes. O percurso é contraditório: para dar felicidade é preciso suspender a contradição que infelicita, o que suspende, entanto, a individualidade por amor da qual fora suspensa a contradição. Na perspectiva de Guido a imagem feliz não é verdadeira, e a imagem verdadeira é infeliz.
Em termos de lógica dramática: não é Luisa inteira quem escorraça Carla, nem seria o contrário. Para combater, as rivais deveriam especializar-se uma em ser amante e a outra em ser esposa, com prejuízo do mais que pudessem dar. O impasse institucional pesa sobre a imagem, as figuras não podem coexistir com plenitude se respeitam o seu contexto social. Retidas pela contemplação, entretanto, transbordam. Transbordando, sugerem novos enredos ou destinos mais ricos. Mas Guido acolhe as sugestões só pela metade; para o diretor personalista, o papel da fantasia é ambíguo: deve recuperar a integridade que a vida prejudica, mas não importa se além ou se aquém do conflito.
O anseio de plenitude é menor que a fobia pela tristeza da imperfeição visual. O critério não está nas exigências do mundo, mas na serenidade do cineasta. Há duas vias, portanto, na composição da imagem feliz: uma, triunfal, em que a personagem supera o que a limita, chegando à inteireza; na outra, humilhante para o objeto, a veleidade pessoal é ajustada à situação real de modo a não diferir dela; anulada portanto. Nos dois casos, antagônicos, resulta harmônio para a contemplação. No retiro visual a benevolência mais generosa e a crueldade não se excluem.
A felicidade e o acerto das imagens provêm de sua irrealidade. Negam, sublimam, superam conflitos reais, deixam entrever a liberdade no corpo mesmo de quem está preso. A realidade infeliz é a sua referência, fora da qual não têm sentido. Não têm autonomia. Para desespero de Guido não compõem uma história, embora sejam parte da história de um diretor que por meio delas não consegue compor uma história. O melhor exemplo é Claudia. Ao criticar o roteiro de Guido, o literato magriço afirma que ela é o mais bolorento dos clichês bolorentos que perfazem o filme futuro; e tem razão. Entretanto, ela é das imagens belíssimas do filme presente. Como explicar? Tomada por si só, de fato, ela seria uma fada boba. Mas o seu contexto é a fantasia de Guido, levemente combalido e canastrão, recuperando o fígado nas termas.
Vista através de nervos cansados, a sua imagem branca de enfermeira das almas e do corpo é medicinal. O copo d’água, vindo de suas mãos, é como a fonte da vida nova. Seu passo é leve e constante como a doçura estática de seu sorriso. Ah, constância sem esforço. O corpo é cheio, mas os pés são suaves, descalços sobre a relva. Oh, peso que não fere. Claudia avança como quem bebe a brisa, as mãos um pouco atrasadas deixam supor que irá voar. Ah, sonho, não voe já. Precisa ser vista duas vezes: como a garça alvinitente e chocha, ragazza crescida entre objetos de antica beleza, pureza e solução no filme de Guido, e como a contra-imagem silenciosa e lenitiva da desordem, das olheiras, do ruído. É a presença de Guido que dá vida ao chavão. Claudia não pode contracenar, não tem continuidade no mundo imaginário; a sua substância é o instante de Guido. Ela é como um poema seu. Mas poemas não compõem um romance.
Tomar o partido da incoerência, da imagem contra o enredo, do instante contra a sua consequência, é tomar o lado da irresponsabilidade; mas é o lado, também, das veleidades inibidas ou espezinhadas pela coerência que esteja no poder. Esta ambiguidade é o limite de Guido, seu fracasso como diretor, seu interesse como personagem. Não há realismo em sua atitude, pois a coerência irá prevalecer; mas há sentido em sua derrota. Resulta uma atmosfera elegíaca, de lamentação das felicidades possíveis, das possibilidades que a situação deixa, mas não deixa medrar. Paradoxalmente, a impotência de Guido transmite, pela irritação que nos causa, o senso preciso de que a ordenação da vida está obsoleta; consciência e meios materiais, parece tudo à mão para modificá-la.
5.
A imagem feliz, construída para curativo pessoal, nasce de uma operação simples: transforma em opção o que é destino, em disfarce o que é cicatriz, e faz que desapareça, assim, a marca da coerção social. Anula a diferença entre o propósito e a existência. Cria um mundo feliz e fraterno, cuja finalidade é fazer bem a Guido, não incomodá-lo. É como uma república socialista de que ele fosse o rei. As imagens de paz são imagens de violência, pois cancelam o próximo para pacificá-lo. A fantasia da dança reconciliada entre a esposa e a amante é um exemplo; dá prazer a Guido, mas é possível somente porque Luisa foi esvaziada.
A generosidade de Guido é generosa com ele mesmo, e brutal com as personagens. A disparidade entre carinho e impertinência culmina quando Guido transforma a mulher numa linda criadinha azafamada, que prepara o seu banho e escova o chão de seu harém. As conciliações todas são mandadas, obra da onipotência imaginária de Guido; não solucionam nada, não passam pelo interior das personagens e de seus conflitos. Não é à toa que a grande pacificação final se faz numa ciranda. Os pais e o filho os padres e a rumbeira, a mulher e a amante, os atores e seu diretor, todos dão as mãos numa dança fraterna, sem que, entanto, se resolvesse, entre eles, uma só diferença.
A imagem da farândola pacificada tem três lados: para Guido ela é feliz, pois suspende as suas contradições mais doídas e permite uma conciliação, ilusória, pelo transbordamento sentimental; para as personagens é um ultraje, pois o próprio de cada qual é posto de lado, a bem da paz de Guido; para o espectador é comovente e irritante, pois embora atenda a uma dor real, não leva para além dela – pela ilusão que cria fecha um círculo de reincidência. Guido passa pelo que passa sem aprender, no final está no mesmo ponto em que começou. Quer, por força, tomar contradições como se fossem harmonia, reter o mundo tal e qual; para nada perder nada supera, para não mentir a si mesmo, ou mesmo a Carla e Luisa, mente aos três.
Guido anda em círculo. O horizonte de 8½ e do espectador, entretanto, não é o seu, é maior. Daí não ser trágico o conflito, que tem mais de inércia que de necessidade. A inércia de Guido, contudo, desperta uma reação muito forte, aparentemente desproporcional. Também Carla é casada, também Luisa tem um flerte. Não obstante, a situação das duas é incomparável à de Guido, cuja complacência dos atinge e escandaliza como coisa decisiva. Por que razão? Habitualmente, encontrar uma solução privada e secreta para impasses coletivos, por isso mesmo inevitáveis, é sinal de saber viver. Salvo quando a solução pessoal pode ter alcance público, suspendendo o impasse que tornava necessário o engenho e o segredo individuais. Deixar de publicá-la passa então a conformismo, e mais, passa a ridículo, pois produz uma prudência já desnecessária.
Embora seja palpável à experiência, o anacronismo nos impasses de Guido é difícil de localizar. Por que não serão válidas as obsessões de um homem, os seus compromissos entre a mulher e a amante? Qual o contexto que lhes tira o peso? Guido não é simplesmente um homem; é um cineasta. O cinema, com a atmosfera que o envolve, introduz uma constelação prática para a qual os conflitos burgueses são letra morta. Por forte que seja o senso disso, isso não é fácil de comprovar, pois trata-se do horizonte efetivo, mas nunca explicitado, de 8½ e de nossa cultura. Os indícios do mundo novo mal e mal se entreveem, embora sempre o bastante para tornar pungente e obsoleta a permanência do mundo velho.
Não nos interessa, aqui, o argumento abstrato contra a sociedade individualista; procuramos as imagens e situações cuja meta presença, no filme, bastou para tingir de caducos os empenhos de Guido. Em seu passeio pelas termas, o cineasta vê uma sucessão vertiginosa de faces extraordinárias, imperiosas e originais. A sequência não se deve apenas à perspicácia de seu olhar treinado, que sabe ver, mas ao exibicionismo que a sua profissão suscita. Daí a ida se acelerar e empostar à sua volta.
Vislumbrada por todos na atenção do diretor, a câmera de cinema representa um estágio novo da técnica, faz pressentir modalidades novas de convívio. Mobiliza impulsos como aquele que faz um torcedor saltar, para que os telespectadores da cidade tomem conhecimento de sua cara. Não que ele se ache bonito, mas quer ser visto. A câmera de cinema tem um poder curioso, que é preciso interpretar: desperta orgulho nas pessoas, de serem quem são.[3] Diante do olho impessoal, ao mesmo tempo que universal pelo alcance, mostram-se trejeitos e intimidades que normalmente se escondem com cuidado.
O que é vergonha ou handicap visto por poucos, ganha dignidade de patrimônio nacional quando o público somos todos. O que é flanco exposto numa perspectiva particularista e antagônica, é peculiaridade pessoal, ousadia, traço curioso no acervo humano tão logo o ponto de vista seja coletivo. É como se as pessoas dissessem: vejam que verruga mais interessante essa minha; ou, espiem como é feio o meu pé; ou, olhem só como sou gordo ou magricelo. Já se vê que o cinema atiça, em escala total, a liberação que Guido empreende com requinte, como prova de talento pessoal e em favor de quem lhe é caro. O alcance da técnica escapa a Guido, que dispensa como benevolência suas virtualidades que são da cultura. Está nisso a convergência como a divergência entre 8½ e Guido.
Há gestos que só se fazem quando sozinho – as criancices de Guido, no banheiro e no corredor – ou diante da câmera, que mostrará o gesto a todos. Neste paradoxo está cifrado o alento utópico do cinema. O filme, por sua imparcialidade mecânica e pela circulação social que tem, cria ou ajuda a criar uma universalidade que não é teórica apenas, mas é prática; pode haver publicidade total de tudo. Representa num estágio técnico em que os segredos e, portanto, o antagonismo organizado só artificiosamente se mantém.
Libera o indivíduo de sua posição particular na sociedade, de seu convívio restrito e restritivo, para dar-lhe como esfera o conjunto da vida social. Não se trata apenas de uma ampliação. É o próprio eixo do convívio que se desloca. A referência coletiva suscita as faculdades que o conflito imediatista abafa. O olho cinematográfico é um confessionário especial: quem ouve não é um padre autoritário, mas é a nação em seus momentos de curiosidade e lazer; tudo o que diverte e não atrapalha merece absolvição, isto é, licença.
Diante do olho universal da ciência, diante do universalizador concreto que são os mass media, as peculiaridades pessoais deixam de ser fraqueza secreta e sinal de inumanidade – o que sempre foram no inteiro do contexto competitivo – como as contradições sociais deixam de ser fato natural e insuperável. O cinema, a psicanálise, a sociologia, o convívio cerrado na cidade grande, essas perspectivas tornam insustentável a ficção burguesa da natureza humana, da sociedade composta de bichos proprietários, competitivos e monogâmicos. Nestas circunstâncias, que são as do filme, a persistência da ordem tradicional de vida é particularmente penosa. Leva à generalização da má-fé, e ao nascimento de novas formas dela.
Luisa, vendo Carla no parque, diz a Guido: “O que mais me enfurece é pensar que aquela vaca sabe tudo de nós”. Em seguida explode, em voz baixa porque é civilizada: “Puta!”. Logo depois desculpa-se de estar fazendo a burguesa. A sua fúria é complexa: “saber tudo”, no caso, será saber coisas extraordinárias? De modo algum. A violência de Luisa mais finge do que defende uma intimidade preciosa, em boa parte é indignação pela inexistência do que pretende resguardar. Na ferocidade dolorosa com que afirma a sua diferença está implícito o reconhecimento da igualdade. Luisa sabe da variedade dos desejos e não reconhece mais autoridade às proibições tradicionais; intelectualmente não tem por que se revoltar.
A crítica teórica, entretanto, não afasta a contradição prática. A coexistência prolongada das duas, por sua vez, queima os nervos. Luisa diz a Guido que ele “mente como respira”, o que vale também para ela e para todos os que vivem a sua situação – se for incluído entre as mentiras mentir a si mesmo. Nasce um tipo novo de fisionomia, correspondente específico desta constelação: a fisionomia do intelectual, do homem cônscio e cioso de suas contradições. Tanto quanto sei, foi posta na tela por Fellini e Antonioni pela primeira vez. O rosto é desgastado, mas não pelo esforço físico, de modo que guarda traços juvenis, que não são felizes; é livre e expressivo por instantes, embora em geral pareça preso, não pela estupidez, mas pela consciência logo maníaca de suas próprias contradições; há fraqueza, mas não apodrecimento, pois o esforço de buscar a verdade, de viver a vida mais ou menos certa, é constante.
Dirigida contra Guido, mas também contra si mesmo, a mistura tensa de desprezo, piedade e fúria forma um ríctus espantoso à volta da boca de Luisa o seu rosto doído, consciente e destrutivo é um emblema, tão verdadeiro para o filme quanto o sorriso de Guido, generoso, complacente e depressivo. O mundo tem as caras que pode ter.
Guido vê, mas não ouve, escondido atrás de seus óculos escuros. Alheio à conversação e aos problemas que aparecem nela, compõe o seu mundo feliz. Os outros ouvem, mas não veem: metidos em suas questões, não admitem que haja mundo fora delas. Este é o contexto que dá riqueza e verdade ao esquematismo das grandes cenas finais. A ciranda da felicidade, em que se recuperam a fraternidade universal e a pureza das figuras brancas, seria sentimentalismo se fosse real, se fosse apresentada como solução. Sendo irreal, entretanto, apenas visão, é justo que seja triunfal, pois concilia contradições dolorosas. Sendo triunfal e sem realidade, tinge-se de melancolia e é de uma beleza tocada pelo improvável. A sua mentira é a sua verdade, euforia e garganta cerrada: a apoteose torna-se sinal de sua própria ausência.
Roberto Schwarz é professor aposentado de teoria literária na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Seja como for (Editora 34).
Publicado originalmente, sob o título “O menino perdido e a indústria”, no Suplemento literário do jornal O Estado de S. Paulo, em 1964.
[1] Em seu ensaio sobre As afinidades eletivas, Walter Benjamin comenta a resistência de Goethe ao casamento: “Ao perceber quanto é tremenda a exigência das forças do mito, conciliáveis somente pela constância do sacrifício, Goethe se rebelou”, em Schriften, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1955, p. 99.
[2] “Ele sente que ao viver impede o seu próprio caminho. Mas nesse impedimento, por outro lado, encontra a prova de que vive”, F. Kafka, “Ele”, in Descrição de uma luta.
[3] “A industrialização capitalista do cinema barra o direito que tem o homem contemporâneo de se ver reproduzido”, Walter Benjamin, A obra de arte ao tempo de sua reprodução técnica.