Saturday 30 April 2022

“O racismo religioso quer demonizar Exu”, diz autor de livro sobre intolerância religiosa

Agência Pública


“O racismo religioso quer demonizar Exu”, diz autor de livro sobre intolerância religiosa

https://apublica.org/2022/04/o-racismo-religioso-quer-demonizar-exu-diz-autor-de-livro-sobre-intolerancia-religiosa/

Fonte: Agência Pública

Resumo:

O babalorixá Sidnei Nogueira articula resposta jurídica aos ataques de fundamentalistas religiosos, depois da vitória de enredo sobre o orixá no Carnaval do Rio

Por Mariama Correia

Quando a escola de samba Acadêmicos da Grande Rio foi sagrada campeã do Carnaval do Rio de Janeiro com um enredo que exaltou Exu (em iorubá: Èṣù), um dos principais orixás do candomblé e da umbanda, o babalorixá Sidnei Nogueira celebrou com seus mais de 75 mil seguidores do Instagram. “O carnaval deste ano foi uma resposta contra o racismo religioso”, postou.

Não demorou muito para que os ataques de fundamentalistas religiosos começassem. “Evangélicos que não são meus seguidores vieram me atacar por mensagens privadas. ‘Tá repreendido em nome de Jesus’, ‘Você vai morrer’, disseram. Uma pessoa chegou a falar que eu tenho sangue nas mãos. Que eu matei a menina que morreu em um acidente com um carro alegórico. Como uma pessoa pode fazer essa associação?”, comentou em entrevista à Agência Pública poucos dias após o desfile. Assim como ele, outras lideranças de religiões de matriz africana relataram ataques virtuais desde o desfile da Grande Rio, que pretendia desmistificar a imagem da divindade africana, demonizada por grupos fundamentalistas cristãos no Brasil.

“Exu é vida. Não é o demônio,” explica Sidnei Nogueira, que também é professor e doutor em Semiótica pela USP (Universidade de São Paulo). Na conversa, ele também falou sobre racismo religioso, ataques a Exu e a lideranças de religiões de matriz africana. Ele diz que está articulando uma mobilização com lideranças de terreiro e juristas para responder ao racismo religioso. “Existem ataques de influencers, políticos e cantores gospel. Minha proposta é que essas pessoas com influência tem que ser penalizadas. No mínimo, elas têm que se retratar, porque isso é discurso de ódio.”

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.Sidnei Nogueira é coordenador e professor do Instituto Ilê Ará SP – Instituto Livre de Estudos Avançados em Religiões Afro-brasileiras

Por que demonizam Exu?

Quem que chega no Brasil para colonizá-lo? O Deus cristão e a lei europeia, portanto nós precisamos entender que o Brasil não é laico. O outro fator tem a ver com o projeto político de poder. Em toda a história do Brasil, a política sempre se serviu de um discurso maniqueísta, ou seja, do bem contra o mal. Sempre colocou qualquer coisa, qualquer manifestação cultural religiosa que viesse do continente africano e que fosse preta, no lugar do mal. A gente pode pensar que isso é do senso comum, mas não é, é uma estratégia política, sobretudo hoje.

Quando os colonizadores chegam no continente africano e não encontram o demônio deles, eles precisam substituir, eles precisam encontrar esse demônio cristão. Aí eles pegam aquela divindade, que é a liberdade, a palavra, a comunicação, o prazer, que é a criança que brinca no mercado. Eles pegam essa divindade e a revestem como se ela fosse o demônio.

Tem vários elementos. Tem elementos de um projeto político de poder, tem elementos da fé – porque a fé é um lugar de muita subjetividade, é muito pessoal – e tem um outro elemento que é você encontrar uma figura, um personagem ao qual você pode atribuir todos os males do mundo. O resumo é o seguinte: “Eu não encontrei o demônio no continente africano, eu preciso de um demônio. Exu vai ser esse demônio porque ele é preto, porque ele é a liberdade, porque ele é o prazer, porque ele é o senhor das trocas, porque ele é a diversidade, porque ele é a multiplicidade. Em alguma medida, ele assume tudo que os padrões cristãos não suportam.
“Exu não é europeu, ele é Yorubá, é uma divindade preta. Então, o racismo religioso quer demonizar Exu”, afirma Nogueira

Ou seja, essa visão do orixá tem relação com racismo? De que modo?

Diretamente. Toda essa perseguição é uma perseguição racista, em primeiro lugar. O racismo não é só ferramenta do capitalismo, o racismo é ferramenta das religiões hegemônicas. Para eles, o demônio não é branco, o demônio é preto. Não adianta. Veja que ninguém coloca Buda no lugar de demônio, ninguém coloca Hare Krishna no lugar de demônio. Por que só colocam uma divindade africana? Nem o coelhinho da páscoa assume o lugar de demônio, ele é branquinho. Os cristãos amam o Papai Noel. Veja que não tem a ver com figuras míticas populares. Exu é africano, é preto, não adianta, Exu não é europeu, ele é Yorubá, é uma divindade preta. Então, o racismo religioso quer demonizar Exu.

Quando nós de terreiro aparecemos no trabalho, por exemplo, com um três pontas [tridente que simboliza Exu], imediatamente nós somos hostilizados. Já começa o buxixo, “ai, macumbeiro, cuidado, olha Exu”. Se uma pessoa se comporta – até uma criança – mais livremente, a professora chama a criança de Exu. Porque a cultura brasileira odeia a liberdade, a diversidade, a encruzilhada. E a encruzilhada é um lugar de três pontas para onde você pode voltar e refazer as escolhas. Exu é a lei da mutabilidade, nós mudamos. Todos nós mudamos. Mudamos desejos, mudamos de casa, mudamos de território, mudamos o nosso corpo. Nós morremos e renascemos simbolicamente a cada dia. Odeiam porque sabem que a figura de Exu é subversiva. Ela balança a ordem que está posta. “O carnaval deste ano foi uma resposta contra o racismo religioso”, diz

Na sua percepção, a intolerância religiosa tem aumentado no Brasil com o avanço do conservadorismo e do fundamentalismo religioso, inclusive nos espaços da política institucional?

A nossa sociedade odeia a vida. Ela ama morte, porque ela ama encarcerar vidas. Porque se você só pode ser heteronormativo e você não é essa pessoa, isso é viver uma morte simbólica. Se você é uma mulher que quer assumir a sua liberdade, a sua potência, a sua liderança, mas já está reservada para um papel no casamento, na submissão ao patriarcado, que não é seu desejo, isso não é vida.

Exu é liberdade, o contrário de Exu é encarceramento. Exu é vida, Laroyê!

O senhor acompanhou as reações ao desfile da Grande Rio? Vimos alguns relatos de ataques e discurso de ódio nas redes. Aconteceu com você?

As reações estão sendo absurdas. Evangélicos que não são meus seguidores vieram me atacar por mensagens privadas. ‘Tá repreendido em nome de Jesus’, ‘Você vai morrer’, disseram. Uma pessoa chegou a falar que eu tenho sangue nas mãos. Que eu matei a menina que morreu em um acidente com um carro alegórico. Como uma pessoa pode fazer essa associação?

Nós já vivemos num país fundamentalista, e em um momento da história do Brasil em que odiar é imperativo. É preciso odiar sobretudo as coisas pretas, sobretudo o feminino, sobretudo os povos quilombolas, sobretudo os povos indígenas, os povos originários. Isso se potencializa com a colheita de likes na internet, porque é preciso produzir um conteúdo odioso. Quem, em sã consciência, pode acreditar na relação entre o acidente com a menina que morreu na avenida e o fato de uma escola de samba ter sido campeã? Por que essas pessoas cristãs não oferecem conforto a família dessa menina? Por que não pegam o seu Deus, o seu Jesus e oferecem para confortar os corações da família? Por que eles não pegam o seu Deus e o seu Jesus e começam uma batalha contra o estupro de uma menina de 12 anos indígena por um garimpeiro?

É preciso que o cristianismo no Brasil, que as religiões hegemônicas no Brasil, façam imediatamente uma autocrítica. Porque isso não pode continuar. Eu sou uma autoridade, uma liderança de terreiro, eu tenho legitimidade para falar: não conheço o demônio. Não faz parte da minha cultura religiosa. Exu não é o demônio, nem Cristão.
Desfile da Grande Rio, consagrada campeã do Carnaval do Rio de Janeiro com um enredo que exaltou Exu

Está sendo articulada alguma resposta para esses ataques?

Existem ataques de influencers, políticos e cantores gospel. Estou conversando com um grupo de juristas de São Paulo para mobilizar respostas ao racismo religioso. Minha proposta é que essas pessoas com influência tem que ser penalizadas. No mínimo, elas têm que se retratar, porque isso é discurso de ódio. Depois, esse discurso de ódio fomenta que venha um evangélico incendiar o meu terreiro porque nós somos produtores e produtos dos discursos que estão circulando no mundo.

Quem é Exu dentro da cosmovisão das religiões de matriz africana?

Exu é um orixá. Foi para a Avenida na Grande Rio um dos principais mitos de Exu, que nós levamos muito a sério no Candomblé. No terreiro, penso que ele define muito Exu. Um dia, Exu, filho de Iemanjá e de Orunmilá, nasceu. Ele é o preferido da força criadora, o preferido de Olodumare, de Olorum. A força criadora em Yorubá tem 16 nomes, não é Deus, a figura de Deus não contempla a força criadora. A força criadora não tem gênero, inclusive, não é patriarcal.


Exu nasceu com muita fome. Ele nasce falando “eu quero comer”. Yemanjá, a divindade nutridora, oferece os seios, ele mama, mas o leite acaba. Ela traz outras coisas para ele comer: frutas, carne, animais. Ele sai comendo tudo. O pai, Orunmilá, fica desesperado. Ele começa a devorar as casas, árvores, tudo, até a mãe. Então o pai fala “olha, mamãe, não, devolve sua mãe”. Aí Exu dá aquela gargalhada – ele nasceu gargalhando, gargalha da vida, de tudo, inclusive do sofrimento, tudo ele transforma. Orunmilá diz para ele devolver a mamãe e Exu fala para eles fazerem uma brincadeira de troca. Eles estavam no Orun, o mundo dos orixás, não era aqui no Aiyê, no nosso mundo. Orunmilá fala para ele devolver Yemanjá e ir para o Aiyê onde “será os olhos do papai e poderá habitar tudo que tem vida”. Orunmilá corta Exu e vão nascendo um, dois, três, ele vai cortando até 200 mais um. Aí nós dizemos que Exu habita em nós. Todos temos Exu.

Exu é então uma divindade bastante próxima do humano?

Exu diz: prove o mundo sem medo. Portanto Exu é a divindade que provou tudo primeiro para que nós pudéssemos provar depois. É a boca que tudo come, ele come tudo. Exu não tem preconceito, não tem racismo, não tem homofobia, não tem xenofobia, não tem transfobia. É a divindade do autoamor, da autoconfiança. Sim, ele também é a libido, também é prazer, é desejo, porque ele devorou tudo. Sem medo.

Exu nos ensina que romper é continuar. Para nós, Exu é um orixá primordial, que tem lições poderosas de cura, diversão, alegria, gargalhada, zombaria, é a criança que brinca no mercado. É homem e mulher ao mesmo tempo, é o tudo e o nada, é a dor e o prazer, é a vida em toda sua potência e possibilidade existencial.
Créditos de imagens
Reprodução redes sociais
Gabriel Monteiro/RioTur
Gabriel Monteiro/RioTur
Marco Antônio Teixeira/RioTur


*Colaborou Matheus Santino


Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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para CARLOS RODRIGUES BRANDÃO

 

de CARLOS RODRIGUES BRANDÃO

Campinas, 30 de abril de 2022

GENTE AMIGA DE PERTO E DE LONGE,

Não morri de novo (pelo menos por agora). 

Dois dias antes de retomar minhas viagens e meus encontros vivenciais, viajando ao Rio Grande do Sul, descobri que tenho uma leucemia mieloide aguda. 

Estive por quase um mês internado em um hospital sob tratamento intensivo. Estou em casa agora, em absoluto “estado de repouso, isolamento e tratamento": quimioterapia, antibióticos e outras medicinas. Será um tratamento intensivo ao longo de vários meses.

De outra parte, depois de décadas de uma vida peregrina, entre trilhas, mares e montanhas e encontros (foram infinitos ao longo de sete décadas) tudo indica que serei agora uma forçada “pessoa caseira”. Por agora todas as atividades, mesmo virtuais, estarão suspensas.

Fora os vários medicamentos e a quimioterapia (suave), tenho tomado transfusões de sangue. Desde este fato novo em minha vida, quando penso que agora sobrevivo às custas do sangue de pessoas que nem de longe conheço, reforço a velha e querida crença de que entre o sangue e os gestos da vida, nós dependemos uns dos outros bem mais do que podemos imaginar.

A morte, velha visitante desde o meu acidente em 1957, veio uma vez mais dialogar comigo se não estaria na hora de eu partir com ela. Pela quinta vez conversamos afetuosamente sobre este delicado assunto. Pela quinta vez ela se foi sozinha.

Já tão acostumado a superar acidentes graves e enfermidades-limite, uma vez mais sinto em mim mais esperança e energia do que pesar e medo.

A quem de perto e de longe me tem ajudado nestes dias, a minha gratidão.

Abraço vocês com carinho.

Carlos


PS.  Certa feita no Rio de Janeiro, doei sangue. Agora experimento no corpo e na vida o quanto este gesto simples é essencial. Se você puder, doe sangue!


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de MICHÈLE SATO




Wednesday 27 April 2022

Mais de cem mil famílias foram afetadas em uma década de conflitos no campo na Amazônia

Mais de cem mil famílias foram afetadas em uma década de conflitos no campo na Amazônia

https://apublica.org/2022/04/mais-de-cem-mil-familias-foram-afetadas-em-uma-decada-de-conflitos-no-campo-na-amazonia/

Fonte: Agência Pública


Resumo:

Mapa dos conflitos, ferramenta exclusiva lançada pela Agência Pública e CPT, mapeia conflitos e dados socioambientais de todos os municípios da Amazônia Legal

Por Bianca Muniz, Bruno Fonseca

O ano de 2020 marcou um triste recorde na Terra Indígena (TI) Kaxarari, localizada no oeste do município de Porto Velho, capital de Rondônia. De junho a agosto, houve três episódios conflituosos envolvendo madeireiros, empresários e o governo federal, que ocorreram após uma ação das Forças Armadas que patrulhou a TI, segundo o Ministério da Defesa, para tentar coibir o desmatamento e a extração ilegal de madeira na região.

A sequência de conflitos — a maior registrada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) na área da Kaxarari na década de 2011 a 2020 — ocorreu num ano em que a região, além de ser alvo de madeireiros ilegais, registrou diversos focos de incêndio das queimadas que avançaram pela Amazônia. Mais que um caso isolado, a realidade da Kaxarari dá a dimensão do que vem ocorrendo em Porto Velho como um todo: o município combina um grande número de conflitos em terras indígenas, assentamentos e propriedades rurais ao mesmo tempo que registra o avanço do desmatamento e o alto número de incêndios na floresta.Operação de fiscalização do Ibama em área desmatada na Terra Indígena Kaxarari



A conclusão é um dos resultados de meses de investigação inédita da Agência Pública com base em uma década de apuração de conflitos no campo pela CPT na Amazônia Legal brasileira. Além de mapear os conflitos em todos os municípios da região no período, a investigação levantou, a partir de bases públicas, dados socioambientais em todos eles. O resultado é a ferramenta Mapa dos Conflitos, que mostra os municípios da Amazônia sob diversas lentes, que, juntas, ajudam a entender o que vem ocorrendo na região.

Ao todo, o mapa traz um histórico de 7.818 conflitos, em 583 municípios dos nove estados da Amazônia Legal. Mais de 100 mil famílias foram afetadas, com 2.397 vítimas de ameaça, assassinato ou tentativa de assassinato. As agressões geraram 312 mortes.
Conflitos, desmatamento e queimadas avançam em áreas da Amazônia brasileira

Em Porto Velho, três índices têm caminhado juntos e com valores elevados: conflitos, desmatamento e queimadas. Em nove dos dez anos analisados, a quantidade de conflitos no município esteve na maior faixa — que registra onde houve mais ocorrências —, em comparação a todos os demais municípios da Amazônia Legal. Coincidentemente, nesses nove anos, Porto Velho registrou também o patamar mais alto de avanço do desmatamento, considerando sua área. E os incêndios não ficaram muito atrás: em seis dos dez anos, os focos de queimadas estiveram nos maiores níveis na Amazônia.

A realidade de Porto Velho reflete a de outros municípios em Rondônia: Nova Mamoré, vizinho à capital, e Seringueiras também registraram conflitos e desmatamento nas faixas mais altas em 2020, junto a índices de queimadas acima da média do ano. Já em 2019, ambos tiveram um número alto de conflitos enquanto figuravam no topo do desmatamento, junto a índices significativos de focos de queimadas.

Situação parecida ocorreu na capital do Acre, Rio Branco. Em vários anos, enquanto registrava o nível mais alto de conflitos, o município figurou também no topo do avanço do desmatamento. O cenário foi especialmente grave em 2019, quando a capital marcou o patamar mais alto nos dois índices: de queimadas e de aumento do desmatamento. Relatório do Centro Integrado de Geoprocessamento e Monitoramento Ambiental (Cigma) do governo do Acre sobre 2019 destacou que naquele ano 12% dos desmatamentos no estado se concentraram em Rio Branco.

Segundo Liana Anderson, pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta em Desastres Naturais (Cemaden), existe uma relação de consequência entre desmatamento e queimadas na Amazônia: em áreas onde houve desmatamento são comuns queimadas em seguida, utilizadas para “limpar” os restos da biomassa da floresta — troncos, folhas, galhos, raízes — que ficam para trás. “Você pode assumir que, absolutamente em todas as áreas que são desmatadas na Amazônia, queimam. Desmatou, é uma bomba relógio, ou naquele ano ou no ano seguinte vai acabar queimando”, comenta.Em áreas onde houve desmatamento são comuns queimadas em seguida



Antonio Oviedo, assessor do Instituto Socioambiental (ISA), explica que há uma lógica para que, na Amazônia, dados de queimadas e desmatamento andem juntos aos de conflitos por terra. “O desmatamento e as queimadas fazem parte de um processo de conversão da floresta para outros usos, como o agropecuário. Ou seja, o desmatamento na Amazônia está orientado para criar um banco de terras. Quando você tem indicadores econômicos favoráveis para expansão da fronteira agrícola, como o preço das commodities ou o baixo preço de insumos, você tem uma procura por terra, e aí grileiros se beneficiam, uma vez que já se disponibilizaram áreas desmatadas limpas”, explica.

Oviedo destaca que um dos motivos que podem levar à quantidade de registros de desmatamento e queimadas em Porto Velho é o fato de ser uma região que ainda possui áreas de floresta, mas que ao mesmo tempo conta com o acesso pela BR-364, que facilitaria o transporte de madeira, legal ou ilegal. “Você tem essa região antiga de ocupação, mas que ainda tem muito ativo florestal, muita floresta. Quando o governo começa a anunciar o interesse pela pavimentação dessa rodovia, gera toda uma migração de pessoas, porque eles têm a expectativa de que vai se abrir uma fronteira de desmatamento. E esse desmatamento sempre está atrelado com processos de grilagem e invasão”, diz.
Dados de conflitos revelam uso de agrotóxicos contra assentados

Ao todo, 323 municípios da Amazônia Legal registraram 1.376 intoxicações por agrotóxicos entre 2011 e 2020. O valor, contudo, é subestimado — estima-se que o número real seja cerca de 20 a 50 vezes superior ao reportado no sistema de saúde brasileiro — o que poderia elevar o dado a mais de 68 mil contaminações em dez anos.

Apesar de haver ocorrências de intoxicações por agrotóxicos em diversos municípios da Amazônia Legal, a combinação entre contaminações e conflitos foi especialmente alta em um local e ano: Nova Guarita, no Mato Grosso, em 2017.

Segundo os dados da CPT, foram oito episódios de conflitos entre janeiro e agosto, todos no assentamento Raimundo Vieira, envolvendo 12 famílias. De acordo com os registros, os assentados denunciaram invasões, intimidação, ameaça de expulsão e destruição de pertences pelos fazendeiros locais.

Em agosto, o Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso e a CPT publicaram nota denunciando as agressões e apontando, além de tortura, cárcere privado, destruição de casas e prática de pulverização aérea de agrotóxicos que teria envenenado assentados. Dados do Ministério da Saúde apontaram duas intoxicações no município naquele ano.

A “chuva de veneno” contra os assentados já havia sido revelada em reportagem do Estadão no ano anterior, que relatou que um fazendeiro contratara uma empresa aérea para lançar agrotóxico nas terras de famílias do assentamento.
Pará concentra combinação entre conflitos e pedidos para mineração

O estado do Pará é o líder absoluto em registros que pedem liberação para pesquisar ou garimpar substâncias minerais. Entre 2011 e 2020, 10.562 pedidos foram submetidos à Agência Nacional de Mineração (ANM).

O município recordista é bastante conhecido no noticiário: Itaituba. Situado nas margens do rio Tapajós, é um dos principais pontos de expansão da mineração na Amazônia brasileira e tem atraído garimpeiros e mineradoras que cobiçam as reservas de ouro e outros minerais na região. Para se ter uma ideia, a quantidade de processos minerários registrados anualmente saltou de 248 em 2011 para 413 em 2020. A média na década é de 311 pedidos de mineração por ano, mais de quatro vezes o número do segundo colocado no estado, Jacareacanga, que faz divisa com Itaituba e teve média de 67 pedidos.Itaituba lidera ranking de pedidos de mineração

Itaituba é também um município marcado por conflitos. Foram 35 na década, segundo a base da CPT, envolvendo famílias assentadas, ribeirinhos e indígenas. Quase metade desses conflitos ocorreu no último ano registrado no Mapa: 17, em 2020.

É em Itaituba que reportagem da Pública revelou a ocorrência de garimpo ilegal, dentro de área de conservação, e em locais requisitados à ANM por um empresário que, com o ex-presidente do ICMBio, atuava numa confederação. Além do garimpo em área de proteção, Itaituba é um dos municípios onde habita o povo Munduruku, que luta para homologar seus territórios, como o Sawré Muybu, localizado em Itaituba e Trairão. No início da década, os indígenas contestaram os planos do governo federal para a construção da hidrelétrica de São Luís do Tapajós, que afetaria a região. Eles denunciam também a invasão do seu território por equipes que tentam pesquisar minérios ou mesmo garimpar.

A mineração está ligada a outro eixo de violência registrado pela CPT: os conflitos pela água. É o caso de Marabá, também no Pará. Na Terra Indígena Xikrin do Cateté, os indígenas sofrem com a poluição dos rios causada pela mineração, situação que afeta cerca de 250 famílias da região.

As terras próximas do Cateté são alvo de grandes mineradoras, de acordo com relatório da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Em 2020, a Pública mostrou que a contaminação do rio por metais pesados é apontada como uma das causas de doenças no povo Xikrin, o que pode ter colaborado para a maior incidência de covid-19 entre os indígenas. Desde 2012, o Ministério Público Federal (MPF) processa a Vale pelos danos causados no território; de lá para cá associações indígenas também moveram ações contra a mineradora. No começo do ano, o MPF deu parecer favorável ao acordo entre indígenas e mineradoras na região.

No histórico do confronto entre indígenas e a Vale registrado pela CPT, houve 14 ocorrências na última década. Os registros apontam diferentes tipos de violência sofridos pelos indígenas, como omissão e conivência dos governos federal e municipal e contaminação e poluição da água pela mineradora.

Marabá é o município da Amazônia Legal com maior quantidade de outorgas para o uso de água publicadas pela Agência Nacional de Águas (ANA): na década analisada, foram 77, algumas autorizando a captação de mais de 200 bilhões de litros por ano.
Conflitos, violência e baixos índices de desenvolvimento social e humano

O cruzamento entre dados de internação por agressão, registrados pelo SUS, e conflitos colocam em destaque São Félix do Xingu, no Pará. O município, que em 2020 teve cerca de 100 internações por 100 mil habitantes, também vê nos conflitos fundiários o reflexo da violência.

É em São Félix do Xingu que ocorre a disputa pelo Complexo Divino Pai Eterno. A Pública esteve no acampamento Novo Oeste em 2016, que vive sob tensão desde 2008, com a pressão dos moradores para a criação de um projeto de assentamento em um território público de interesse para fazendeiros. O conflito afeta cerca de 150 famílias, e desde 2011 a CPT registrou 20 ameaças de morte, 11 tentativas de assassinato e 3 assassinatos. Entre as mortes, está a de Ronair José de Lima, em 2016, um dos líderes do acampamento.Moradores do acampamento Novo Oeste em 2016

A violência é observada também nos registros sobre Anapu, no Pará, município que se destaca pela alta ocorrência de conflitos e pela brutalidade deles. Anapu esteve cinco vezes na maior faixa de conflitos entre as medidas pela reportagem. A cidade onde a missionária Dorothy Stang foi assassinada em 2005 tem IDH-M de 0,552, considerado baixo pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).

Na década, foram 55 vítimas de violência contra a pessoa no município, sendo 33 ameaças de morte, 19 assassinatos e 3 tentativas de assassinato. Entre as vítimas de assassinato está o ex-vereador Paulo Anacleto, morto a tiros em dezembro de 2019, meses depois de sofrer ameaças de morte, de acordo com os registros da CPT. Sua morte ocorreu dias depois do assassinato de seu colega Márcio Rodrigues, uma das lideranças envolvidas na ocupação do Lote 44 da Gleba Bacajá e principal testemunha de defesa contra o padre Amaro. As mortes seguidas motivam a fuga de líderes rurais das regiões conflituosas, como o caso mostrado pela Pública em 2019, após os assassinatos de Anacleto e Rodrigues.


Créditos de imagens
Ditec_Ibama/AM
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Bianca Muniz e Bruno Fonseca/Agência Pública
Vinícius Mendonça/Ibama
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Bianca Muniz e Bruno Fonseca/Agência Pública
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José Cícero/Agência Pública
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Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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Tuesday 26 April 2022

Pressão de construtoras flexibilizou regras de proteção de rios e lagos em áreas urbanas



Pressão de construtoras flexibilizou regras de proteção de rios e lagos em áreas urbanas

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Fonte: Agência Pública

Resumo:

Sancionada no final do ano passado, a Lei 14.285 modifica o Código Florestal e deixa na mão dos municípios criar regras próprias de ocupação em APPs

Por Felipe Betim

Gerson Alecio Strossi está esperançoso. O gaúcho, de 58 anos, é dono da construtora Gabarito, em Joinville (SC), e proprietário de dois terrenos na cidade. Um deles, adquirido em 2003, está localizado na região central, perto do rio Princesinha. O outro, comprado pouco tempo depois, está no bairro residencial de Anita Garibaldi, nas margens do rio Jaguarão. Os dois cursos d’água são afluentes da Bacia Hidrográfica do Rio Cachoeira. A intenção de Strossi desde que adquiriu as áreas é erguer edifícios de porte pequeno ou médio, como os outros que construiu no município, onde vive há 32 anos. No entanto, a proximidade com os rios atrapalhou seus planos.

Agora é diferente. Desde que o presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.285/21, em 29 de dezembro do ano passado, o vento parece soprar a favor de Strossi. “Para quem considerava tudo perdido, renasceu uma esperança. Só esperamos que os poderes que nos representam deem agilidade ao processo”, afirma em entrevista à Agência Pública. A nova legislação — que tramitou no Congresso como Projeto de Lei 2.510/19 — alterou o Código Florestal para permitir que os municípios possam determinar em seus planos diretores os limites das Áreas de Preservação Permanente (APPs) marginais de qualquer curso d’água natural em área urbana.

A ideia é que os municípios possam criar suas próprias regras de ocupação em APPs urbanas nas faixas próximas a cursos d’água, driblando os limites impostos pelo Código Florestal para todo o território nacional. Para isso, precisarão ouvir os conselhos estaduais e municipais de meio ambiente, assim como estabelecer regras para a não ocupação de áreas com risco de desastres; a observância das diretrizes do plano de recursos hídricos, do plano de bacia, do plano de drenagem ou do plano de saneamento básico e a previsão de que as atividades ou os empreendimentos a serem instalados nas áreas de proteção ambiental (APPs) urbanas devem observar os casos de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental.

Cabe destacar que a exceção se aplica apenas para as APPs urbanas próximas a cursos d’água. No caso de outras áreas protegidas, como as próximas de encostas — e passíveis de deslizamentos —, a legislação permanece a mesma.

Conforme apurou a Pública, essa mudança foi fruto de um intenso lobby do setor da construção civil, sobretudo da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), entidade que representa pequenas e médias construtoras — como a de Strossi —, além de sindicatos locais da construção. Elas contaram com um forte apoio e articulação de deputados e senadores de Santa Catarina e do Amazonas, principalmente do vice-presidente da Câmara dos Deputados, Marcelo Ramos (PSD-AM), e do relator do projeto, o deputado Darci de Matos (PSD-SC) — cuja base eleitoral está em Joinville. Outdoor com a imagem do deputado Darci de Matos em Joinville após a aprovação da lei que mudou o Código Florestal
Decisão do STJ motivou urgência da mudança

O projeto que originou a nova legislação tramitou em regime de urgência após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisar um processo referente à construção de uma casa a uma distância inferior a 30 metros do rio Itajaí-Açu, em Santa Catarina. A corte deferiu o recurso do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) e decidiu, em 28 de abril do ano passado, que os parâmetros definidos no Código Florestal que delimitam as APPs deveriam guiar o tema.

De acordo com a legislação, a largura mínima das faixas marginais deve variar de 30 metros de largura (no caso de rios, lagos e córregos com menos de 10 metros de largura) a 500 metros (nos casos de cursos d’água com largura superior a 600 metros). Já a outra parte do processo — assim como a CBIC, que atuou como amicus curiae — argumentava que, nas cidades, a norma que deveria valer era a Lei 6.766/79, de Parcelamento do Solo Urbano. A legislação prevê um recuo mínimo de 15 metros da margem de qualquer curso d’água. Por causa da vigência das duas legislações, o tema sempre retornava aos tribunais.

Contudo, o STJ não se limitou ao caso concreto. Para encerrar o assunto definitivamente nas instâncias inferiores, fixou a tese (Tema 1.010/STJ) com repercussão geral de que o Código Florestal deve servir sempre como parâmetro tanto em áreas rurais como em áreas urbanas. O tribunal levou em consideração outras decisões da própria corte determinando que o Código Florestal deve ser aplicado no meio urbano, assim como o entendimento prévio de que se deve considerar a norma mais protetiva em detrimento da menos protetiva.

A Lei 14.285/21, que modificou o Código Florestal, não apagou essas metragens mínimas, mas abriu uma exceção a elas ao permitir que municípios decidam sobre o distanciamento mais adequado em áreas urbanas. Foi uma resposta assertiva à decisão do STJ. Trecho do rio Itajaí-Açu

E a resposta veio tão rápido que pegou os ambientalistas de surpresa, como conta a urbanista e advogada Suely Araújo. Consultora legislativa da Câmara dos Deputados entre 1991 e 2020, além de presidente do Ibama entre 2016 e 2018, ela conta que sempre houve lobby da construção civil para mudar a legislação e afastar a aplicação dos parâmetros das APPs hídricas nos perímetros urbanos. Defendiam que deveriam prevalecer os 15 metros de faixa sem edificação, independentemente da largura do rio, como consta na Lei de Parcelamento do Solo Urbano.

No entanto, conta Suely, os deputados que buscavam essa mudança nunca tiveram força no Congresso. Até agora. “O que me impressiona nesse caso é que sempre houve propostas de municipalizar os limites das APPs em área urbana. Foram muitas propostas desde que entrei na Câmara, mas nunca haviam conseguido mudar a lei”, explica ela, que hoje é especialista sênior em políticas públicas da ONG Observatório do Clima. “Como é que agora conseguem assim, de uma hora para outra?”, questiona.

No dia 18 de abril, PT, PSB, PSOL e Rede Sustentabilidade protocolaram no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Indireta de Constitucionalidade (ADI) para tentar reverter a mudança feita pelo Congresso. A ADI 7.146 também pede a suspensão imediata da nova legislação até que o tema seja julgado. O Observatório do Clima prestou apoio técnico na elaboração da petição inicial, segundo Suely.
Quem sai ganhando

Os principais beneficiados com a nova 14.285/21 são justamente as pequenas e médias construtoras que atuam no loteamento de terrenos e na construção de novos empreendimentos urbanos, como edifícios residenciais ou comerciais, condomínios ou hotéis. Uma das principais críticas do setor é que o Código Florestal usava os mesmos parâmetros tanto em área rural como em área urbana, sem se atentar para suas especificidades, e se aplicava inclusive em casos como os de rios poluídos que já não cumprem sua função ambiental, pequenos córregos e até cursos d’água tubulados. “É uma lei esdrúxula em uma cidade como Joinville, construída em cima de um mangue, com rios poluídos que não têm mais função ambiental”, explica o construtor Strossi.

Ele se diz a favor de conservar áreas em que ainda não se construiu, mas possui uma lógica bastante pragmática quando se trata de áreas urbanas habitadas. “Se você olha a região onde está meu terreno, 99% da área está ocupada. Não adianta eu não construir, não vai resolver nada.”

Suely rebate esses argumentos. “A proteção assegurada pelas APPs hídricas é importante tanto em áreas rurais quanto nas cidades. Essa proteção é antiga na nossa legislação, têm sua origem no instituto das florestas protetoras previstas no primeiro Código Florestal, de 1934, e existia referência à proteção de matas ao longo dos rios antes disso”, explica. Para ela, não há justificativas para afirmar que os parâmetros mínimos não podem ser os mesmos para áreas rurais ou urbanas. “Nas cidades, o cuidado deveria ser ainda maior, pois se colocam em risco mais vidas humanas”, acrescenta.

O biólogo João de Deus Medeiros, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acredita que, além do lobby da construção civil, um fator determinante para a aprovação da Lei 14.285/21 foi justamente a necessidade dos parlamentares envolvidos de prestar contas às suas bases eleitorais. “Aqui em Santa Catarina existe uma tendência majoritária dos prefeitos de quererem se sobrepor às regras nacionais através de leis municipais”, explica o acadêmico, que está envolvido no debate sobre a modificação de regras ambientais.

Os municípios de Santa Catarina estavam especialmente interessados na mudança legislativa porque a maioria foi construída em torno de afluentes de bacias hidrográficas. Na região do Alto Vale do Itajaí, que abrange dezenas de municípios banhados pelas águas da bacia hidrográfica do rio Itajaí-Açu, há uma tensão com a legislação ambiental. “Muitas prefeituras aprovam planos diretores com flagrante conflito com as regras nacionais, numa lógica de tensionar com essas ilegalidades para pressionar mudança nas regras nacionais”, explica Medeiros. “Então, ao invés de procurarem adequar os planos diretores, eles exercem essa pressão em cima dos parlamentares para mudar a lei nacional”, argumenta.

Não à toa o deputado Darci Matos, que foi o relator da Lei 14.285/21, apareceu em outdoors na cidade de Joinville — sua base eleitoral — se dizendo o responsável pela nova legislação. No final de janeiro, semanas depois da sanção presidencial, ele compareceu à Câmara Municipal e, diante do secretário municipal de Agricultura e Meio Ambiente e de empresários locais, afirmou que os congressistas aprovaram a nova lei sob os “berros do pessoal mais conservacionista, da esquerda xiita”. E garantiu: “Salvamos o Brasil, vamos gerar emprego e promover desenvolvimento sustentável”.

Esse “desenvolvimento” prometido por Matos impactará também a Amazônia, o que ajuda a explicar o interesse dos parlamentares da região. Nesse caso, estamos falando de cursos d’água mais largos onde as restrições para a construção são maiores, de acordo com o Código Florestal. O setor imobiliário tem interesse em áreas como o bairro da Ponta Negra, lugar de alto poder aquisitivo localizado às margens do rio Negro. Outro exemplo citado por especialistas é Alter do Chão, distrito turístico da cidade de Santarém (Pará) banhado pelo rio Tapajós. Flexibilizar essas restrições poderia levar a uma corrida do setor para adensar ainda mais as áreas próximas de rios. Alter do Chão, distrito turístico da cidade de Santarém (Pará) banhado pelo rio Tapajós

De acordo com o procurador de justiça Paulo Locatelli, do MPSC, há milhares de obras e imóveis autuados em todos os municípios catarinenses por não respeitarem os limites do Código Florestal para APPs. “Não temos números, mas essa é a realidade de todos os municípios. Só eu tenho dezenas de ações ajuizadas no ano passado e retrasado buscando a demolição ou desfazimento de obras que desrespeitam o Código Florestal”, explica ele, que durante seis anos foi coordenador do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente (CME) no MPSC. “Somente em Florianópolis temos mais de mil imóveis nessa situação”, completa. Ele ressalta, no entanto, que a nova legislação irá beneficiar somente as obras futuras, e só depois que os municípios fizerem suas normas próprias. “Se as leis municipais não existirem, o Código Florestal segue valendo.”

Ambientalistas temem, com isso, que municípios cedam à pressão dos poderes locais e editem regras mais brandas que a do Código Florestal, adensando ainda mais as áreas próximas de rios já ocupadas — legalmente ou não — ou fazendo com que as cidades cresçam em direção a locais até agora desocupados e protegidos. “Isso tende a gerar a eliminação das APPs por pressão do mercado imobiliário sobre as câmaras de vereadores”, afirma Suely Araújo, do Observatório do Clima. Levaria também a uma degradação dos biomas locais, aumentando o risco de enchentes e danos materiais às populações que vivem nessas regiões. “É uma irresponsabilidade, as APPs protegem os rios de assoreamento e atenuam os efeitos de inundações, em áreas rurais ou urbanas, além de cumprirem outras funções ecológicas importantes”, acrescenta a ex-presidente do Ibama.

É por ter sido construída ao redor de cursos d’água que, todos os anos, Joinville sofre com alagamentos nos períodos de chuva — em 1995, uma enchente histórica deixou três mortos e mais de 5 mil pessoas desabrigadas. O próprio construtor Strossi admite que seu terreno às margens do rio Jaguarão está localizado num bairro, o Anita Garibaldi, que sofre com enchentes recorrentes. “A rua alaga de qualquer jeito, mas não entra água no prédio”, afirma. E mais uma vez repete sua lógica pragmática: “Se a rua alaga e hoje 99% daquela área está ocupada, não adianta eu não construir no meu terreno. Não vai resolver o problema”. Ocupação de áreas urbanas próximas a rios pode impactar na degradação dos biomas locais e aumentar o risco de enchentes, segundo especialistas

As consequências dessas enchentes podem ser ainda mais fatais e causar ainda mais prejuízos. Somente em janeiro deste ano, o governo da Bahia decretou emergência em 165 municípios do sul do estado, onde 26 pessoas morreram por conta dos alagamentos, mais de 60 mil ficaram desalojadas e mais de 25 mil perderam suas casas. No mesmo período, Minas Gerais decretou emergência em 425 cidades. Outras 30 pessoas morreram, mais de 60 mil foram desalojadas pela água e mais de 9 mil perderam suas casas.

A ciência mostra que os eventos climáticos extremos, como as enxurradas deste ano, estão cada vez mais frequentes e intensos por conta do aquecimento global. Enquanto os cientistas sugerem um esforço de adaptar as cidades para mitigar o efeito das mudanças climáticas, o Brasil, dizem os ambientalistas, parece caminhar na direção contrária ao afrouxar suas regras ambientais.

A forma como a Lei 14.285/21 foi aprovada segue o mesmo padrão de outras legislações que afetam diretamente o meio ambiente. A Câmara dos Deputados vem aprovando uma série de projetos em regime de urgência de forma tão avassaladora que mal dá tempo de formar oposição ou debater contrapropostas.

Foram os casos, por exemplo, da Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 3.729/2004), que flexibiliza as normas hoje vigentes; do PL 191/2020, que regulamenta a mineração em terras indígenas; e do PL 6.299/02, que altera e flexibiliza as regras para registro de agrotóxicos. Esses projetos, ainda em tramitação no Senado, contam com o respaldo do Planalto, a articulação do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e a mobilização dos parlamentares do Centrão. Assim, a expressão “passar a boiada”, cunhada inicialmente pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles em 2020, ao se referir à possibilidade de alterar rapidamente questões normativas, resoluções ou portarias ambientais que não precisam passar pelo Congresso, ganhou outra dimensão desde que Lira assumiu a presidência da Casa. Com a Lei 14.285/21 não foi diferente.
Como foi a tramitação no Congresso

No dia 3 de maio do ano passado, cinco dias depois da decisão do STJ, a CBIC convocou de emergência uma reunião virtual com lideranças da construção civil para discutir a decisão tomada pelo STJ. O Plantão CBIC, disponível no YouTube, contou com a presença de José Carlos Martins, presidente da entidade, de Basílio Jafet, presidente da Secovi de São Paulo, a principal entidade do poderoso setor imobiliário paulista, além de outros patrocinadores da Lei 14.285/21. Também teve um convidado ilustre: o deputado federal Marcelo Ramos, vice-presidente da Câmara.

“Nós vamos propor, e isso já fazia parte da estratégia da CBIC, uma medida legislativa para resolvermos de vez esse assunto, porque nós vivemos eternamente reféns desse problema”, avisou Martins aos participantes. “Código Florestal é sobre floresta, ele foi deturpado”, reclamou o dirigente, afirmando que a legislação comete o erro de valer para o Brasil inteiro sem levar em conta análises geológicas, topográficas ou do regime de chuvas de cada local. “O problema é que essa discussão ficou entre ambientalista e ruralista, enquanto nós, das cidades, por mais que tentássemos ser protagonistas… Conseguimos muita coisa, mas muito menos do que desejaríamos ter feito”, concluiu o dirigente.

Quando recebeu a palavra, o deputado Marcelo Ramos destacou que era “absolutamente insustentável do ponto de vista jurídico a decisão do STJ”, uma vez que, no seu entendimento, “uma norma específica [neste caso, a Lei de Parcelamento do Solo Urbano] não pode ser revogada por uma norma geral”. Afirmou também que faltou bom senso ao tribunal e que, se a decisão fosse executada retroativamente, “precisaríamos demolir todos os 61 municípios do estado do Amazonas”.

Em Manaus, prosseguiu Ramos, “não precisaríamos demolir somente todos os prédios da praia da Ponta Negra, como também demolir a sede da prefeitura, do governo do Estado, do MP estadual, do Comando Militar da Amazônia…”. Os dirigentes acreditam, assim como Ramos, que a decisão do STJ “permite ao Ministério Público escolher o que vai mandar derrubar e o que vai tolerar”.

Ramos propõe resolver o assunto “no campo legislativo” com um projeto ambicioso: um código ambiental urbano, que regule a vida nas cidades. “Eu pedi ajuda ao CBIC e peço também à Secovi para preparar um texto, que obviamente precisa ser equilibrado do ponto de vista ambiental”, afirma ele, para em seguida dizer suas mais importantes palavras daquela reunião: “Eu assumo a responsabilidade de capitanear, de ser o propositor desse texto e me esforçar para que tenha uma tramitação célere e um debate racional dentro da Câmara dos Deputados”.Marcelo Ramos durante discurso sobre emendas do PL 2.510/19 na Câmara dos Deputados em agosto de 2021

Ramos, que está em seu primeiro mandato na Câmara pelo Amazonas, faz parte da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS) e se diz engajado com a causa ambiental. A Pública marcou uma entrevista com o deputado em diversas ocasiões, mas a conversa foi sucessivamente adiada ou desmarcada por conta de outros compromissos de agenda. Não está claro quais são os interesses concretos de Ramos no tema, ainda que ele tenha deixado claro na reunião com a CBIC suas preocupações com o setor da construção civil. Ele destaca a necessidade de “garantir que a gente possa desenvolver a construção civil de forma racional, com segurança jurídica e, acima de tudo, responsabilidade ambiental”. Isto é, as obras precisam “ser tão sustentáveis quanto seguras do ponto de vista jurídico”.

Ainda não foi possível apresentar e aprovar um código ambiental urbano, com toda a complexidade que o tema exige. A solução foi menos ambiciosa e pontual: resgatar um projeto apresentado por Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC) em abril de 2019 que tramitara na Comissão de Meio Ambiente até agosto daquele ano. Era o PL 2.510/19. Após quase dois anos parado, em 20 de maio de 2021, a deputada Ângela Amin (PP-SC) fez um pedido para que o projeto tramitasse com urgência. Aprovado o requerimento de urgência, Ramos apresentou seu projeto, que foi apensado ao de Peninha, municipalizando a demarcação de APPs. O deputado Darci de Matos foi escolhido como relator.

Paralelamente, o senador Jorginho de Mello (PL-SC) apresentou outro projeto tratando do mesmo tema do Senado. Era preciso agir em várias frentes. Acabou prevalecendo o projeto da Câmara. O texto-base foi aprovado em 25 de agosto por 314 votos a favor e 140 contrários. As bancadas de Santa Catarina e do Amazonas votaram em peso a favor da proposta.

Em seus discursos no plenário, deputados deixaram explícito que a intenção era reverter a decisão do STJ. “Foi uma decisão absurda, porque ela exigia aplicar o Código Florestal que vale para a floresta amazônica na área urbana de São Paulo e de Joinville”, afirma Matos, o relator da proposta na Câmara, em entrevista à Pública. “Você acha justo que para um córrego de um ou dois metros de largura poluído você tenha que dar um recuo de 30 metros de cada lado? É uma piada de mau gosto”, continua ele.

O deputado argumenta ainda que buscou colocar em prática o pacto federativo. “Eu dei competência para o prefeito e as câmaras municipais decidirem qual é o melhor critério para cada rio. O recuo pode ser 5, 10, 15, 30, 50, 100 metros”, explica. “Quem tem que decidir a vida no município não sou eu em Brasília”, completa.

Depois de aprovado na Câmara, o projeto seguiu para o Senado e foi parar nas mãos do relator Eduardo Braga (MDB-AM). Lá, em meio a audiências públicas e negociações com ambientalistas, aprovou-se uma importante emenda da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) estabelecendo que os municípios, ao fazerem suas normas locais, deveriam respeitar apenas uma distância mínima de 15 metros da margem do curso d’água, limite similar ao definido pela Lei de Parcelamento do Solo Urbano. Braga, que pertence ao mesmo estado que o deputado Ramos, argumentou que a nova legislação pacificaria as divergências sobre preservação em áreas urbanas, ao alinhar o Código Florestal e a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, e garantiria segurança jurídica ao setor da construção civil.

De volta à Câmara, os deputados derrubaram essa e outras emendas vindas do Senado e o texto foi encaminhado para sanção. Em 31 de dezembro, o presidente Bolsonaro se limitou a vetar um dispositivo que abria o caminho para regulamentar obras feitas à margem da lei até 28 de abril.

A Pública também tentou, sem sucesso, contatar os deputados Ângela Amin e Rogério Peninha Mendonça, além dos senadores Eduardo Braga e Esperidião Amin — este último, de Santa Catarina, também participou ativamente da articulação pela aprovação do projeto. Também não obteve resposta da CBIC e da Secovi de São Paulo.PL 2.510/19, projeto apresentado por Rogério Peninha, municipaliza a demarcação de APPs
O advogado a serviço da construção civil no Congresso

A Saes Advogados se apresenta como um escritório com “soluções jurídicas e estratégicas para questões ambientais”. Seu principal sócio, o advogado Marcos Saes, era outro dos presentes na reunião da CBIC. Foi apresentado pelo presidente da entidade como “nosso grande guardião dentro do Congresso na luta de nossas leis”.

Em conversa com a Pública, Saes admite que presta assessoria jurídica para a CBIC e que o seu papel dentro do Congresso é “conversar com lideranças partidárias” e com os parlamentares “mais envolvidos no assunto”. Sua atuação poderia ser descrita como a de um lobista. “Faço sugestões de redação de lei. Algumas são acatadas e outras não. É a maravilha do processo legislativo democrático”, explica ele, que conta ter atuado fortemente a favor da Lei Geral de Licenciamento Ambiental aprovada na Câmara no ano passado.

Saes confirma que o setor da construção civil se movimentou após a decisão do STJ e que o Congresso tratou de dar uma resposta ao tribunal. Também explica por que, em sua visão, parlamentares de Santa Catarina e do Amazonas lideraram a questão. “Tem uma questão muito interessante. O estado de Santa Catarina é completamente cortado por pequenos cursos d’água, com cidades que, se você respeitar os 30 metros de largura do rio, como determina o Código Florestal, dois terços de algumas cidades não existiriam”, explica ele. “No Amazonas é o contrário. Todos são grandes e você precisa de 500 metros de distância dos cursos d’água. Manaus não poderia existir”, afirma.

Ele repete o mesmo argumento do setor da construção civil de que os limites definidos pelo Código Florestal não podem valer tanto para o meio rural como o urbano. Também opina que os legisladores não levaram em conta “critérios técnicos” na hora de definir essas metragens. “Entre os anos 60 e 1986, as distâncias previstas pelo Código Florestal variavam de 5 a 150 metros. Depois, em 1986, o que era 5 virou 30 metros, e o que era 150 virou 500 metros”, explica ele, sobre ajustes dos parâmetros ao longo do tempo. “Em 2012, quando fizeram o novo Código Florestal, os legisladores apenas copiaram as mesmas distâncias”, continua. Foi nesse ano que o Código Florestal explicitou de forma clara que os parâmetros da área rural também valiam para área urbana.

Para ele, a Lei 14.285/21, ao permitir que municípios criem as próprias normas de ocupação em margens de curso d’água, abre as portas para dar um tratamento “técnico” à questão. “Com estudos, você vai ver a área de risco, a zona de inundação, a recorrência de chuva… E a partir de fundamentos técnicos você vai estabelecer qual é o distanciamento necessário. Pode ser 30 metros, pode ser até mais”, explica.
Possíveis impactos

O Brasil sofreu sua principal tragédia climática em 2011, na região serrana do Rio de Janeiro. A forte chuva que caiu no dia 11 de janeiro resultou em mais de 900 mortos e cerca de cem pessoas desaparecidas. Mais de 35 mil pessoas perderam suas casas. Os principais municípios afetados por enchentes e deslizamentos de terra foram Petrópolis — como neste ano —, Teresópolis e Nova Friburgo.

O Ministério do Meio Ambiente encomendou então um estudo para buscar a relação da ocupação irregular em APPs com a tragédia. Entre as muitas conclusões, o documento aponta que, se os limites determinados pelo Código Florestal nas margens de rios, lagos e córregos tivessem sido respeitados, o número de vítimas provavelmente teria sido menor.

Um dos coordenadores desse estudo, o ambientalista Wigold Bertoldo Schäffer, acredita que a Lei 14.285/21 abrirá “novos espaços para a especulação imobiliária, o que vai gerar muito desmatamento”. Ele teme que tragédias como as da região serrana voltem a se repetir. “Entre os muitos efeitos colaterais, vejo mais enchentes, inclusive em lugares onde antes não ocorriam, pelo estrangulamento que as novas ocupações vão provocar nos leitos dos rios”, explica. E continua: “Haverá mais mortes, mais prejuízos para o cidadão e para o poder público, que vai ter que resgatar e abrigar desabrigados, piora na qualidade de vida dos ambientes urbanos, piora da qualidade da água, eliminação de corredores de biodiversidade…”.

Conselheiro da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi), ONG que ajudou a criar em 1987, Schäffer conta que essas situações já são realidade na região do Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, onde a pressão imobiliária é forte. “Recentemente recebemos na Apremavi um grupo de 20 pessoas atingidas por uma enxurrada em dezembro de 2020 no município de Ibirama. A maioria delas teve suas casas arrastadas por deslizamentos de terra e pela enchente, com muitos prejuízos e mortes na região”, ele conta. Além de Ibirama, a tragédia atingiu as cidades de Rio do Sul e Presidente Getúlio, deixando 22 mortos e mais de R$ 100 milhões em prejuízos para os moradores e os cofres públicos, segundo explica. “Nós agora estamos ajudando esses moradores a restaurar as margens dos rios e orientando para que não construam novamente nessas áreas.” Rio Grande do Sul e Santa Catarina tem histórico de tragédias em decorrência de enchentes



Suely Araújo, do Observatório do Clima, destaca ainda que, ao contrário do que argumenta o setor da construção civil, o Código Florestal nunca impediu de se aprovarem obras em APPs nos casos de utilidade pública ou interesse social, como em casos de obras de infraestrutura relativas a sistema viário, saneamento, espaços de lazer e outras situações. Também ressalta que já existem regras para a regularização das ocupações urbanas nesses espaços, através da Lei 13.465/2017, sobre regularização fundiária rural e urbana. “Ou seja, a nova lei das APPs urbanas não está preocupada com legalizar ocupações antigas, mas sim com viabilizar novas ocupações em APPs. Quanto mais a ocupação de novas áreas urbanas se expandir, mais as regras poderão ser flexibilizadas pelos governos locais. Não há marco temporal no texto, é totalmente inaceitável”, argumenta

Todos esses argumentos encontram resistência no setor da construção civil. O construtor Strossi, que se diz “um cara revoltado com os absurdos do país”, concorda com a necessidade de conservar “lá na área rural ou dentro da cidade nos bairros mais distantes que ainda não foram construídos”. Ele afirma não ser um negacionista e se diz “totalmente a favor da natureza” e de proteger áreas com risco de deslizamento.

“Agora, tu imagina, Joinville, uma cidade de 600 mil habitantes construída em cima de mangue, com centenas de córregos de rios. Como é que tu vai vir depois de 150 anos e dizer ‘olha, a partir de hoje a distância é de 30 metros nos poucos terrenos que sobraram’. Qual é a finalidade? O meu terreno vai salvar o planeta?”, indaga. “Então, eu acho que, num universo de 600 mil habitantes, é totalmente injusto que esses poucos terrenos que ficaram paguem o preço por um erro do passado, entendeu?”

Strossi vê uma grande injustiça com pessoas que, como ele, possuem terrenos em áreas já ocupadas. Em muitos casos, ele diz, são os únicos bens de uma família e fruto do trabalho de toda uma vida. Dependendo do tamanho do terreno, o recuo exigido pelo Código Florestal, explica, acaba inviabilizando qualquer tipo de construção. É como se a pessoa perdesse um bem. “Os que nos representam do Ministério Público e dos órgãos ambientais foram insensíveis nessas situações. Existe uma lei que tem de ser seguida, mas, se a lei é esdrúxula, vamos ajudar a consertar essa aberração”, argumenta.

O advogado Saes, que representa a CBIC, acredita que existe muita “demagogia” ao tratar o assunto. Ele afirma que o Código Florestal não impediu o avanço das ocupações irregulares em APPs nem leva em conta o histórico de cidades que cresceram ao redor de rios. “É um código dissociado da realidade”, ele argumenta. Para ele, a legislação não impediu o avanço dessas ocupações porque não se trata de um problema ambiental, mas sim social, de acesso à moradia e de descaso do poder público.

“Eu trabalho com meio ambiente há 20 anos. Acredito que, auxiliando a fazer o licenciamento ambiental de forma correta, identificando e evitando os possíveis impactos, e compensando aqueles que não são passíveis de evitar, podemos ajudar os municípios a fazerem o estudo técnico correto”, insiste.

Suely Araújo, do Observatório do Clima, mais uma vez rebate: “O fato de haver dificuldades de aplicação das regras não significa que elas devem ser implodidas. Há dificuldades de punir a prática de corrupção e nem por isso se pode defender a revogação dos tipos penais relacionados ao tema”, argumenta. O esforço governamental, continua ela, necessita ser direcionado ao enfrentamento dessas dificuldades. “E não de optar pelo liberou geral, pelo desmantelamento das normas de proteção ambiental.”
Assunto não se encerra na Justiça

Apesar de a Lei 14.285/21 permitir que os municípios estabeleçam parâmetros distintos aos estabelecidos pelo Código Florestal em APPs urbanas ao longo de cursos d’água, algumas contradições persistem. O professor Medeiros, da UFSC, avalia que existe um risco de a lei ser inócua justamente porque as metragens mínimas nas APPs seguem as mesmas no Código Florestal. Isso não foi alterado. “A lei passa a dizer agora que os municípios podem definir faixas marginais distintas, mas isso nunca foi impedido. A regra geral nacional determina os parâmetros mínimos, mas municípios sempre puderam fazer regras, desde que mais restritivas”, ele argumenta.

É com essa contradição em vista que o assunto chegou ao STF. As normas de proteção ao meio ambiente, explica Suely Araújo, estão no âmbito da chamada legislação concorrente. “A União estabelece padrões gerais, mínimos, que em regra se aplicam a todo o país. Estados e municípios podem e devem complementar essas regras, mas necessitam ser mais protetivos, nunca mais flexíveis do que constante nas normas gerais estabelecidas nacionalmente”, explica ela. O legislador federal, continua, tampouco pode subverter a lógica da legislação concorrente, que é estruturante no direito ambiental.

A ex-presidente do Ibama opina, nesse sentido, que a Lei 14.285/21 é inconstitucional e deve ser derrubada na íntegra pelo STF, por colidir frontalmente com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado assegurado pelo artigo 225 da Constituição, e também com os princípios da vedação ao retrocesso e da vedação à proteção insuficiente em matéria ambiental. “Quando um município elimina a APP em seu território, estará causando danos não apenas a seu território, mas a toda a região. Os prejuízos ao rio e ao equilíbrio ecológico, bem como às comunidades humanas, não ficarão restritos àquele local”, explica a especialista. “Eles não têm o direito de agir nesse sentido, a Constituição impõe deveres claros de proteção ambiental ao poder público, e isso está longe de ser concretizado a partir da aprovação da Lei 14.285/21.”

E se o STF não derrubar a lei? O procurador Locatelli, do MPSC, explica que o poder dado aos municípios não é absoluto. “Ficou muito amarradinho, complexo, rígido, burocrático, difícil. Os municípios vão precisar fazer um estudo técnico muito difícil”, explica. Ele conta que, em conversa com prefeitos da região do Alto Vale do Itajaí, um deles reclamou que “era para ser um negócio fácil e, agora, complicou para o nosso lado”.

E qual será o papel do Ministério Público nisso? “O de fiscal da lei, no sentido de se as regras municipais vão ter vícios formais ou materiais. O município quer legislar? Ótimo, mas vai ter que cumprir à risca o que está na lei.” Isso significa que não só os ritos formais previstos precisarão ser respeitados, como também, em caso de indícios de irregularidade, as decisões técnicas poderão ser confrontadas.

No entanto, Locatelli é otimista e acredita que haverá cautela por parte das autoridades locais. “Imagina se o município fixa uma metragem menor e, na primeira enxurrada, as casas são levadas? Uma coisa é tratar de tragédia quando as ocupações foram clandestinas, outra é tratar de um desastre com obras autorizadas. Nesse caso, a responsabilidade é total do poder público”, explica. “Eu espero que todos os municípios, tanto os prefeitos como as câmaras municipais, sejam muito prudentes e ajam com cautela para aplicar essa flexibilidade legislativa.”


O que diz o Código Florestal sobre as APPs em faixas marginais

Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:

I – as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).

a) 30 (trinta) metros, para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura;

b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura;

c) 100 (cem) metros, para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura;

d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;

e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros;

II – as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais, em faixa com largura mínima de:

a) 100 (cem) metros, em zonas rurais, exceto para o corpo d’água com até 20 (vinte) hectares de superfície, cuja faixa marginal será de 50 (cinquenta) metros;

b) 30 (trinta) metros, em zonas urbanas.
Créditos de imagens
Reprodução/Redes Sociais
digitearte/Flickr
Richard N Horne/ Wikimedia Commons
Defesa Civil de Joinville/Divulgação
Cleia Viana/Câmara dos Deputados
Najara Araujo/Câmara dos Deputados
James Tavares / Secom Gov SC
James Tavares / Secom Gov SC







*Esta reportagem faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.



Reportagem originalmente publicada na Agência Pública



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