Thursday 30 April 2020

Em três meses, desinformação sobre Covid-19 foi de cura milagrosa à politização do isolamento

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Em três meses, desinformação sobre Covid-19 foi de cura milagrosa à politização do isolamento

Por Amanda Ribeiro
30 de abril de 2020, 11h38

Desde o início da pandemia, a desinformação nas redes sociais sobre a Covid-19 passou de falsas promessas de cura a ataques ao distanciamento social adotado pelos estados para conter o novo coronavírus, concluiu o Aos Fatos ao analisar as 82 checagens que já publicou sobre o tema. O teor político das postagens enganosas verificadas acentuou-se a partir de abril, em meio à evolução de casos e mortes pela doença no Brasil.
Para fazer a análise, Aos Fatos organizou as checagens sobre Covid-19 publicadas entre 28 de janeiro e 28 de abril em duas categorias básicas: saúde e política. Até o dia 16 de março, informações falsas vinculadas a aspectos sanitários predominaram (57% de todas as verificações sobre o novo coronavírus no período). Mas, a partir de 1º de abril, ganham maior espaço peças de desinformação inseridas na disputa política gerada pela pandemia no Brasil (92% das checagens publicadas neste intervalo).
A seleção do conteúdo a ser checado por Aos Fatos segue critérios como relevância, alcance e repercussão da desinformação nas redes. As publicações potencialmente enganosas são detectadas por meio de monitoramento sistemático de Facebook, Instagram, WhatsApp e Twitter. Saiba mais sobre o nosso método de checagem aqui.
Falsas recomendações de prevenção e promessas de cura contra a Covid-19 (94%) predominaram entre as peças de desinformação checadas relacionadas à saúde. Essas publicações checadas traziam, em sua maioria, receitas caseiras que supostamente seriam eficazes contra a doença, como alimentos alcalinos, ou ingestão diária de vitamina C e água quente com limão.
Já a desinformação sobre medidas de isolamento adotadas para conter o vírus, espalhada nas redes com fins ideológicos, predominou entre os temas mais associados ao universo político (21%). Entre elas, destaca-se a notícia falsa de que a OMS (Organização Mundial da Saúde) teria recuado das recomendações de isolamento social, adotando uma linha de defesa da economia similar à apoiada pelo presidente Jair Bolsonaro.
Foram igualmente frequentes nessa categoria as checagens de peças desinformativas que falseavam fatos sobre a pandemia em outros países para reforçar narrativas políticas (21%). Destacam-se, nesse segmento, vídeos usados fora de contexto para sustentar a acusação xenófoba de que chineses estão propagando de propósito o novo coronavírus pelo mundo e posts com dados inexistentes de mortes de crianças na Itália difundidos para defender a manutenção das escolas fechadas.
Na seara política, os personagens mais atacados pelas peças de desinformação foram os governadores, responsáveis pela adoção das medidas de restrição de circulação. Em abril, nomes como João Doria (PSDB-SP), Wilson Witzel (PSC-RJ), Camilo Santana (PT-CE) e Rui Costa (PT-BA) figuraram como foco de seis peças checadas por Aos Fatos sobre a pandemia até o momento.
Conspiração. A primeira informação falsa checada pelo Aos Fatos sobre o novo coronavírus ganhou tração nas redes em janeiro: uma teoria da conspiração afirmava que o vírus havia sido patenteado em 2015 por um instituto de pesquisa britânico financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates. A partir daí, passaram a predominar receitas falsas de cura ou prevenção contra a Covid-19 (40% das peças de desinformação checadas, ou duas de um total de cinco) e teorias da conspiração sobre a origem da doença (também 40% do conteúdo checado).
É importante ressaltar que, nessa época, a Covid-19 se concentrava principalmente na China e ainda não havia casos confirmados no Brasil. Talvez por conta disso, grande parte das peças desmentidas em janeiro tenha sido “importada” de outros países. Das cinco publicações verificadas naquele mês, quatro haviam circulado anteriormente em outras línguas e, então, adaptadas para português.
Em fevereiro, ainda sem casos da doença confirmados no país, o assunto saiu do foco da desinformação. Naquele mês, foram apenas duas checagens de conteúdos enganosos relacionados à Covid-19. Destas, uma já circulava em redes de outros países antes de desembarcar por aqui: o vídeo de um mercado de animais exóticos na Indonésia, apontado em publicações como o mercado de Wuhan que teria sido o epicentro inicial de disseminação do Sars-Cov-2 na China.
Em março, com a confirmação dos primeiros casos no Brasil, o número de publicações com informações enganosas sobre a Covid-19 cresceu gradativamente ao ponto de tomar toda a pauta do Aos Fatos. Das 50 checagens publicadas naquele mês, 36 eram diretamente relacionadas ao novo coronavírus -- 72% do total de verificações.
No início de março, predominaram nas redes postagens que anunciavam ingredientes milagrosos para curar ou prevenir a Covid-19: foram cinco checagens do tipo até o dia 18. Houve quem indicasse vinagre para assepsia das mãos e vitamina C e água quente com limão como forma de se proteger contra a infecção, ou ainda quem anunciasse a descoberta de vacinas por países como Cuba e Israel.
No entanto, à medida que Bolsonaro subiu o tom contra medidas de isolamento e propagar eficácia da cloroquina, ainda não comprovada, as o volume de postagens enganosas ganhou contornos políticos na segunda metade do mês. Entre 16 e 31 de março, Aos Fatos verificou 16 peças de desinformação que falseavam informações para criticar o isolamento socialalertar para uma suposta supernotificação de casos, apontar a China como criadora do coronavírus e subestimar a gravidade do surto no país.
Conteúdo nacional. A partir desse momento, passam a predominar publicações falsas essencialmente brasileiras: dentre as 36 checagens publicadas sobre coronavírus em março, apenas duas eram importadas, pois já haviam circulado em outros países. Uma delas mostrava a capa editada de um filme supostamente chamado “Coronavírus”, lançado na China em 2013. Aos Fatos verificou que se tratava, na verdade, da obra “Flu” (ou gripe, em tradução literal), lançada na Coreia do Sul em 2013.
Por fim, as postagens verificadas por Aos Fatos no mês de abril demonstraram a intensificação da politização da pandemia, com 7 das 41 peças de desinformação checadas naquele mês com ataques a políticos vistos como adversários pelo bolsonarismo.
Os principais alvos das críticas, como já demonstrado, foram os governadores. Desafeto do presidente Jair Bolsonaro, João Doria, de São Paulo, é, até o momento, o mais atacado, tendo sido alvo de duas peças de desinformação.
Exemplo disso é uma postagem desmentida no dia 20 de abril, que afirma que Doria teria desrespeitado medidas de isolamento para comparecer a uma festa no interior de São Paulo. A publicação compartilhava uma foto do governador em momento anterior à decretação da pandemia com a legenda: “Governador Doria em festa aqui em Araçatuba! Assim é fácil mandar o povo ficar em casa e você em festa”.
Vetor. O presidente Jair Bolsonaro amplificou duas peças de desinformação checadas em abril. A primeira foi um vídeo no qual um homem mostra a Ceasa de Contagem (MG) fechada para sugerir que haveria problemas de abastecimento no centro comercial devido às medidas de isolamento social adotadas em Minas Gerais. Na segunda, são apresentados trechos fora de contexto de uma fala do diretor-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde), Tedros Ghebreyesus, que dão a entender que o executivo seria contrário ao isolamento social.
Também predominaram dentre as checagens do mês de abril postagens críticas ao isolamento social (sete matérias) e com falsos alertas de supernotificação de casos de Covid-19 (oito reportagens).
Redes. Das 82 peças de desinformação checadas por Aos Fatos ao longo dos últimos três meses, 54 tiveram maior repercussão no Facebook. Isso se tornou especialmente evidente a partir do mês de março, quando 23 das 36 publicações checadas (63,8%) haviam sido publicadas na rede social. Em abril, o número saltou para 31 (75,6% do total).
Ao menos no início da pandemia, no entanto, a desinformação verificada vinha principalmente do WhatsApp. Correntes com falsos tratamentos e métodos de prevenção foram 3 das 5 (60%) postagens checadas em janeiro e 1 das 2 (50%) verificadas em fevereiro. Em março e abril, os números, apesar de crescerem em termos absolutos, diminuíram em termos proporcionais: foram oito peças checadas no primeiro mês (22,8%) e cinco no segundo (12,2%).
Colaborou Luiz Fernando Menezes.
Referências:
1. Aos Fatos (Fontes 12345678910111213141516 e 17)
2. Estado de Minas

Entrevista especial com Alexandre Araújo Costa

http://www.ihu.unisinos.br/598495-a-disputa-pelo-futuro-e-hoje-entrevista-especial-com-alexandre-araujo-costa

A disputa pelo futuro é hoje. Entrevista especial com Alexandre Araújo Costa

Trazer à tona a inter-relação entre as crises sanitária e climática é fundamental para que possamos não voltar à antiga “normalidade”

Por: Ricardo Machado | Edição: Patricia Fachin e João Vitor Santos | 30 Abril 2020
Uma das principais diferenças entre as crises climática e sanitária é a escala de tempo, mais curta nesta última e, apesar de mais longa, de impactos absolutamente nocivos e mais profundos na primeira. Ambas, contudo, estão interligadas. “A pandemia atual, assim como outros surtos virais recentes, está intrinsecamente ligada à crise ecológica, à degradação ambiental, à destruição de florestas e ao consumo de carne (e tudo isso, óbvio, se relaciona ao aquecimento global)”, avalia o professor doutor e pesquisador Alexandre Araújo Costa, em entrevista por telefone à IHU On-Line.
O pior cenário, no entanto, seria aquele em que houvesse, ao mesmo tempo, o cruzamento das crises. “Nesse caso, precisamos estar preparados para catástrofes bem piores, porque imagine que seremos obrigados a enviar sinais completamente contraditórios. No caso de um furacão ou evento extremo parecido, a recomendação vai ser ‘evacuem suas casas’ e no caso de uma crise similar à da pandemia de SARS-CoV-2, a orientação vai ser ‘fiquem em casa’. Como lidar com uma situação como essa quando, para salvar a vida das pessoas de um extremo climático, aglomerações são inevitáveis e, ao mesmo tempo, vão ser justamente as medidas que favoreceriam o contágio por um vírus, eventualmente tão ou mais letal do que o SARS-CoV-2”, questiona o entrevistado.
Estar atentos a estes sinais é fundamental para que possamos, a tempo de salvar vidas, desarmar as armadilhas criadas por nós mesmos. Além disso, para que haja possibilidade de um futuro em uma terra habitável, é necessário não voltar à antiga “normalidade”. A questão que se impõe é “se, de fato, aprendemos minimamente as lições, achatamos esse conjunto de curvas exponenciais e voltamos a ser seres que cabem na biosfera à qual pertencemos ou se vamos seguir nessa rota suicida e genocida”, provoca Costa. “É isso, justamente, que está em jogo. As analogias que fizemos entre pandemia e crise climática precisam ser levadas a sério. A disputa pelo futuro é hoje”, conclui.

Alexandre Araújo Costa (Foto: Reprodução Youtube)
Alexandre Araújo Costa é professor da Universidade Estadual do Ceará. Formado em Física, Ph.D. em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Estado do Colorado, com pós-doutorado na Universidade de Yale. Foi um dos autores principais do primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Militante ecossocialista e ativista climático, edita o blog “O Que Você Faria se Soubesse o Que Eu Sei”, assim como o canal no YouTube de mesmo nome. É um dos coordenadores do fórum de articulação Ceará no Clima.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre o aquecimento global e o surgimento de pandemias como da covid-19? É possível estabelecer conexões?
Alexandre Araújo Costa – Embora sejam duas crises distintas, elas guardam diversos pontos de contato. A pandemia atual, assim como outros surtos virais recentes, está intrinsecamente ligada à crise ecológica, à degradação ambiental, à destruição de florestas e ao consumo de carne (e tudo isso, óbvio, se relaciona ao aquecimento global). Ao mesmo tempo, não teria sido possível a rápida disseminação do vírus sem a hipermobilidade, que permite que quaisquer duas cidades grandes do mundo hoje estejam conectadas em no máximo 48 horas (e é justamente o uso intensivo de energias fósseis que sustenta essa hipermobilidade). A crise climática segue se agravando justamente em função de um modo de vida intensivo em carbono, desde a demanda de energia para produção de bens de consumo, passando pelo transporte, até chegar num sistema de produção alimentar altamente predatório, com desmatamento para expansão da fronteira agrícola e consumo de carne em uma quantidade cada vez mais insustentável. Então as causas, embora não sejam exatamente as mesmas, guardam ligação entre si.
As duas crises são também semelhantes em vários aspectos. Em ambos os casos, trata-se de uma emergência, e o entendimento da gravidade do problema e o tempo de ação fazem toda a diferença. Em vários países, a recusa e/ou a demora em agir na pandemia levaram ao colapso do sistema de saúde e à multiplicação das mortes. No que diz respeito ao clima, a recusa e a demora em agir estão cada vez mais nos levando a uma condição de desestabilização irreversível do sistema climático. Em ambos os casos é preciso "achatar a curva", seja o gráfico de contágio do coronavírus, seja a concentração de CO2 atmosférico. As principais diferenças estão na escala de tempo (que é obviamente mais longa no caso da crise climática) e na escala dos impactos (que, no caso do clima, têm tudo para fazer a pandemia parecer um problema menor e de fácil resolução).
IHU On-Line – Como os cuidados com a covid-19, com quarentena forçada em várias partes do mundo, podem impactar o clima global?
Alexandre Araújo Costa – É verdade que a quarentena interrompeu ou reduziu diversas atividades que, além de produzirem poluentes de vida curta, como óxidos de nitrogênio ou material particulado, também implicam emissões de CO2 ou outros gases de efeito estufa. Mas é preciso reconhecer que, no que diz respeito a poluentes de vida longa, cujo efeito é cumulativo, como é o caso do CO2, a quarentena apenas arranha a superfície do problema. A analogia que gosto de fazer é com um muro: imagine que cada tijolo represente um bilhão de toneladas de CO2. Se imaginarmos que acumulamos de emissão, desde o início do período industrial, 2,4 trilhões de CO2 ou que construímos um muro com 2.400 tijolos, o que acontece na pandemia é que ao invés de colocarmos os 43 tijolos que temos colocado todo ano, colocaremos somente 40 e, portanto, não só o muro continua lá, como não diminui. Ele apenas cresce mais devagar do que vinha crescendo; não podemos ter ilusão quanto a isso.
O que é fundamental entender é que a queda projetada este ano de 6 a 7% nas emissões de CO2 é justamente aquilo que precisamos fazer ano após ano para resolver a questão do aquecimento global, ou seja, manter uma trajetória compatível com limitar o aquecimento global a 1,5 grau. Nesse caso, portanto, assim como o problema é cumulativo de longas datas, a solução também vai ser cumulativa e não vai emergir de algo episódico como a pandemia. Precisamos ter políticas para garantir que ano após ano cortemos de 6 a 7% as emissões globais para chegarmos com essas emissões reduzidas à metade em 2030 e mantermos o ritmo a fim de descarbonizarmos completamente a economia global em meados do século. Fora isso não tem salvação, e não dá para terceirizar o que cabe à nossa sociedade, de maneira organizada e consciente, para um vírus.
IHU On-Line – Qual a possibilidade de termos uma desaceleração no aquecimento global em 2020, devido à diminuição de circulação de pessoas nas ruas, especialmente em países como a China e, até mesmo, o Brasil?
Alexandre Araújo Costa – Exatamente porque as emissões são cumulativas e o CO2 permanece lá, a redução delas em 2020 não vai trazer efeito apreciável sobre o aquecimento global. Nós vamos chegar ao final do ano com uma média, provavelmente, de 414 partes por milhão de CO2 na atmosfera em contraste com a previsão inicial do UK Met Office, que era de 414,2, e projeções como a feita pelo doutor Gavin Schmidt, do NASA Goddard Institute for Space Studies, segundo as quais, 2020 pode até mesmo quebrar recorde de temperatura. Então, a desaceleração é necessária, mas é apenas um início que precisa ser feito de maneira consistente e articulada com a transformação radical do sistema energético em escala global e do sistema de produção de alimentos também em escala global. Fora isso não teremos, de fato, impacto climático significativo, mesmo que a pandemia se estenda até o final de 2020 ou além.
IHU On-Line – O discurso da necessidade de retomada do crescimento é muito forte por parte de governos e de empresários dos grandes setores comerciais. Quais as consequências para o planeta de uma retomada muito intensa de atividades econômicas que são agressivas ao planeta?
Alexandre Araújo Costa – É evidente que o sonho dos executivos das corporações capitalistas e dos políticos e economistas que lhes dão suporte é a retomada da “normalidade”. Mas essa “normalidade” é tudo aquilo a que não podemos voltar. Primeiro, porque o pouco benefício ambiental que podemos de fato falar que se obteve a partir da redução das atividades econômicas na pandemia, que é a redução na concentração de poluentes de vida curta, como óxido de nitrogênio e material particulado, especialmente nos grandes centros urbanos, vai para o brejo.
Basicamente o que acontece é que uma vez retomadas as atividades de produção industrial a todo vapor, a circulação de automóveis e outros veículos nos centros urbanos, os níveis de poluição vão retornar e teremos de volta a mesma situação que perdurava antes em locais como Nova DeliBeijing e outras cidades da China, e nos centros urbanos do nosso país, como São Paulo. Além disso, essa retomada nos tira da rota de redução das emissões de CO2 em que, por este evento fortuito, nós entramos. Nesse sentido, a lógica de retorno à “normalidade” é tudo aquilo que não podemos querer. Deveríamos estar, justamente, nesse contexto de pandemia, impulsionando as bandeiras de uma retomada de outra economia, em que a garantia da vida, do emprego e respeito ao ambiente fossem os parâmetros fundamentais e em que houvesse um giro radical no que produzimos e como produzimos.
IHU On-Line – Dentre as muitas consequências do aquecimento global, o derretimento das calotas polares é uma delas. Há o risco de os seres humanos entrarem em contato com vírus da era glacial aos quais nossa espécie não está imune? Do ponto de vista geológico, o que pode acontecer?
Alexandre Araújo Costa – O eventual despertar de bactérias e vírus adormecidos há milhares de anos por conta do derretimento de geleiras e do permafrost é apenas uma das facetas através da qual nós conectamos a possibilidade de aquecimento global com o risco de novas pandemias. Há outros fatores aí em jogo: um deles é o fato de que o aquecimento global impulsiona a migração de espécies. Por que isso é grave? Porque hoje espécies que não tinham contato no passado, passam a ter, por conta dessa migração. Aí os vírus podem saltar de uma espécie para outra, algo que não era possível na condição anterior. O que isso significa? Que podemos passar a ter um fluxo viral entre espécies cada vez maior e, eventualmente, isso abre e aumenta a possibilidade de transmissão para a própria espécie humana. Esse é um aspecto. O outro, como sabemos, é a mudança ou expansão da área de atuação de vetores de doenças infecciosas, como o caso do Aedes aegypti e da dengue, que cada vez mais penetram em latitudes médias.
Outro aspecto ainda é o risco de cruzamento das duas crises. Nesse caso, precisamos estar preparados para catástrofes bem piores, porque imagine que seremos obrigados a enviar sinais completamente contraditórios diante de uma crise ao mesmo tempo sanitária e climática. No caso de um furacão ou evento extremo parecido, a recomendação vai ser ‘evacuem suas casas’ e no caso de uma crise similar à da pandemia de SARS-CoV-2, a orientação vai ser ‘fiquem em casa’. Como lidar com uma situação como essa quando, para salvar a vida das pessoas de um extremo climático, aglomerações são inevitáveis e, ao mesmo tempo, vão ser justamente as medidas que favoreceriam o contágio por um vírus, eventualmente tão ou mais letal do que o SARS-CoV-2?
É esse tipo de pergunta que fica em aberto quando a sociedade se recusa a enfrentar, de fato, com a devida profundidade, os dois tipos de crises que vão ameaçar a nossa própria existência enquanto civilização ao longo do século XXI.
IHU On-Line – O senhor costuma dizer, em suas entrevistas e conferências, que não há “Plano B” em relação ao clima do planeta? Por quê?
Alexandre Araújo Costa – Não há Plano B porque é impossível negociar com as leis físicas que regem o clima planetário. Não podemos chegar na natureza e pedir um desconto na “constante de Stephan-Boltzmann” ou implorar para que as moléculas de CO2 absorvam menos radiação infravermelha do que o fazem. Exatamente por isso, nós precisamos seguir a única rota compatível com aquilo que as leis da Física nos impõem, que é a de que justamente não há como resolver a crise climática sem primeiro reduzir as emissões de gases de efeito estufa e, depois, iniciar uma longa batalha – por conta das futuras gerações – de remoção do excedente de dióxido de carbono da atmosfera.
Isso implica, portanto, que a nossa tarefa imediata seja a do plano “A”, que é o único: reduzir drasticamente essas emissões. A fim de que, pegando o embalo, as gerações futuras possam herdar o planeta com outro sistema energético, muito menos intensivo em carbono e muito mais reduzido, enxuto e destinado apenas para demandas de fato essenciais, para que se possa seguir num rumo de avanço da agroecologia, da recuperação de biomas, de reflorestamento com ou sem ajuda de soluções tecnológicas para a remoção de carbono. Fora disso, não dá para esperar uma solução mágica.
De novo, existe uma analogia com a pandemia. Como não há vacina disponível, medicamento disponível no momento, o que podemos fazer? A única maneira, de fato, é garantir o isolamento social até achatar a curva. Como não há solução mágica, não existe “cloroclima”, nós não podemos simplesmente seguir como seguíamos antes com relação às emissões de gases de efeito estufa. É preciso achatar a curva, ou as curvas, sejam elas as da concentração de CO2 ou de aumento de temperatura global. Isso para assegurar que as gerações futuras não arquem com todo o ônus da sobrecarga sobre o sistema climático.
IHU On-Line – Que lição a covid-19 pode nos ensinar? Em suma, qual a importância de não voltarmos às formas de exploração ambiental e humana antes da covid-19?
Alexandre Araújo Costa – A pandemia deixa diversas lições que deveriam ser de fato apreendidas pela nossa sociedade. Uma delas é o fato de que boa parte da produção e circulação de mercadorias e boa parte da demanda de energia associada a elas é absolutamente predatória, perdulária e supérflua, podendo ser naturalmente dispensada. Mostra, também, que a hipermobilidade humana é um risco imenso e que é um desastre a conjunção de degradação ambiental, desmatamento (que nos expõe ao contato com os vírus abrigados em outras espécies) e – não no caso da covid-19, mas de outras pandemias como as de H1N1H5N1H7N9 etc. – o boom de pandemias ligadas à indústria da carne. Essa é a primeira lição, precisamos pensar que atividades econômicas de fato precisam subsistir e que atividades econômicas precisam desaparecer para garantir a segurança à humanidade.
Outra lição evidente é que boa parte dos combustíveis fósseis efetivamente pode ficar no subsolo. A crise do petróleo com preços negativos, com navios petroleiros estacionados ao redor do mundo e estruturas de armazenamento de petróleo em terra saturadas demonstra o quanto esse combustível poderia ter permanecido justamente no chão. Nós temos que seguir o que a ciência revela: 88% do carbono fóssil precisa permanecer exatamente onde está se quisermos preservar o estoque de carbono para que não ultrapassemos o aquecimento de um grau e meio.
Outro ponto é que a pandemia nos trouxe evidências de que é possível haver políticas públicas que incidam diretamente nas condições de subsistência e sustento das famílias de trabalhadores e trabalhadoras que ficaram sem emprego. Surgiu quase um consenso, com exceção dos “pensadores” ultraliberais, de que a renda universal mínima – no caso, emergencial – é uma necessidade e uma possibilidade real. E por que não usar desse expediente para garantir a dignidade, o sustento de famílias de trabalhadores e trabalhadoras num processo de transição, para não desaparecer a possibilidade de futuro? Falamos, claro, de mineiros, de petroleiros, de trabalhadores de frigoríficos. Por que não garantir que essas famílias tenham a sua dignidade assegurada enquanto nós convertemos a indústria suja dos combustíveis fósseis em indústrias de energia limpa, enquanto os petroleiros são retreinados para deixar de lidar com venenos fósseis e passem a produzir e instalar painéis solares, para que os trabalhadores que lidam com a carnificina de 70 bilhões de animais todos os anos para dar vazão à nossa fome enlouquecida de carne possam aprender outras atividades como, por exemplo, agroecologia, agricultura urbana e periurbana, garantindo a produção e circulação de alimentos saudáveis e sustentáveis? Há várias lições nesse sentido.
Outra questão que nós precisamos imediatamente abordar é a reconversão e adaptação das estruturas industriais para produzir bens que não sejam bens supérfluosIndústria de armas, por exemplo. Não vamos querer essa produção de armas. Então, vamos ter que falar que essas indústrias terão que reconverter suas estruturas para produzir outras coisas. Ao invés de produzirem revólveres, que produzam camas, leitos de UTI. Ao invés de produzirem morte, salvem vidas. Ao invés de indústrias que produzam uma multiplicidade de aparelhos eletrônicos supérfluos, sempre sujeitos à obsolescência programada e ao descarte rápido, que estejam voltadas para a produção de equipamentos como respiradores, monitores de sinais vitais e outros tantos bens essenciais, além de equipamentos duráveis. Que nós possamos falar de indústrias como a automobilística, que ao invés de continuar colocando carcaças de uma tonelada de aço nas ruas para transportar uma ou duas pessoas, possam estar voltadas à produção de bens que de fato sejam necessários, incluindo transporte público eletrificado.
Que possamos falar muito diretamente que a maioria do trabalho realizado hoje na sociedade é perdulário e dispensável! Além de emitir muito menos, podemos ainda trabalhar muito menos. Por que não falar de jornadas de trabalho bem mais curtas, até por conta da produtividade do trabalho que nós temos hoje? Por que não falar de jornadas de trabalho semanais de 20 horas, fim de semana de três dias, dois períodos de férias de 45 dias no ano? Isso é perfeitamente viável, mantendo, ao mesmo tempo, todo mundo empregado e produzindo de fato os bens necessários à nossa sociedade. É fundamental que, portanto, para desarmar as bombas-relógio de novas pandemias e da crise climática e ambiental, nós não voltemos à normalidade de antes. Isso é tudo que não pode acontecer e essa disputa precisa ser travada desde já.
IHU On-Line – Há mundo por vir? Que mundo?
Alexandre Araújo Costa – Todo crescimento exponencial produz crise, instabilidade e ruptura. É por isso que o contágio em progressão geométrica dentro da pandemia nos trouxe esse quadro tão alarmante. Isso vale para todas as outras crises de crescimento exponencial que estão sendo impulsionadas pela sede expansionista do modo de produção do sistema econômico vigente, seja o aumento acelerado da concentração dos gases de efeito estufa, seja a curva de extinção de espécies, sejam os demais processos de degradação ambiental.
Dito isto, há, sim, um mundo por vir, cujas características estão em aberto. Certamente será um mundo com uma biosfera mais empobrecida em relação àquela que tivemos acesso durante todo o Holoceno, será um mundo com temperaturas mais altas – o quanto ainda é uma questão em aberto –, será um mundo em que nós teremos menos bens naturais à nossa disposição.
O que está muito mais em aberto, no entanto, além desses aspectos objetivos, será a nossa maneira de existir neste mundo. Se, de fato, aprendemos minimamente as lições e achatamos esse conjunto de curvas exponenciais e voltamos a ser seres que cabem na biosfera à qual pertencemos ou se vamos seguir nessa rota suicida e genocida, dado que a desigualdade de nossa sociedade impõe que os impactos de qualquer pandemia sejam sempre desiguais. É isso, justamente, que está em jogo. As analogias que fizemos entre pandemia e crise climática precisam ser levadas a sério. A disputa pelo futuro é hoje.