Monday 26 December 2022

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A retórica neutra dos desastres da ciência

Edição do mês
A retórica neutra dos desastres da ciência
O químico Fritz Haber, os matemáticos Alexander Grothendieck e Shinichi Mochizuki e os físicos Erwin Schrödinger, Werner Karl Heisenberg e Albert Einstein (Fotos: Reprodução)

 

Quando deixamos de entender o mundo (Todavia, 2022), de Benjamin Labatut, foi finalista do Booker Prize de 2021 e seu lançamento no Brasil causou a mesma admiração que produziu internacionalmente, levando o escritor chileno (nascido na Holanda) a ser convidado para a edição de 2022 da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

O livro reúne quatro narrativas sobre cientistas que ou foram responsáveis por experimentos com desdobramentos dramáticos, ou resolveram enigmas físico-matemáticos tão perturbadores que tiveram consequências nefastas na vida deles. Entre os primeiros, está Fritz Haber – químico judeu cujas pesquisas estão na origem do Zyklon B, o inseticida utilizado nas câmaras de gás nazistas e cuja história é narrada no capítulo “Azul da Prússia”. Entre os segundos casos, dois matemáticos – o japonês Shinichi Mochizuki e o alemão (naturalizado francês) Alexander Grothendieck – que, após terem formulado e supostamente resolvido conjecturas consideradas indemonstráveis por seus pares, caíram no mutismo e passaram a viver como eremitas.

No final do livro, Labatut escreve um epílogo, “O jardineiro noturno”, conectando suas próprias vivências a essa obsessão com enredos científico-biográficos. Nos agradecimentos, ele não só dá as fontes de suas narrativas como também expõe, de forma tão discreta quanto insidiosa, as liberdades ficcionais que tomou ao penetrar nos meandros da mente e dos acontecimentos cotidianos de suas personagens, todas elas reais.

O procedimento lembra as bibliotecas imaginárias que o argentino Jorge Luis Borges construía com rigor de geômetra e cujo acervo esquadrinhava de modo metódico, estabelecendo relações profundas entre clássicos, raridades bibliográficas e obras puramente fictícias, numa espécie de trompe l’oeil (aqueles elementos arquitetônicos que, ao introduzirem pinturas de portas e janelas sobre uma parede, criam a ilusão de profundidade).

Labatut, entretanto, não recorre à ironia borgiana, tampouco faz do jogo literário uma finalidade em si. Seu tom neutro e distanciado ao tratar de temas traumáticos remete a autores como o alemão W. G. Sebald e o também chileno Roberto Bolaño. Além disso, a estrutura de Quando deixamos de entender o mundo apresenta paralelos com um livro que Labatut provavelmente desconhece, por ser uma obra-prima ainda não valorizada o suficiente no Brasil, apesar de ter recebido o prêmio Portugal Telecom: História natural da ditadura (Iluminuras, 2006), de Teixeira Coelho, morto neste ano de 2022.

Há, porém, uma importante diferença temática. Os relatos de Sebald, sobretudo em Os emigrantes (Companhia das Letras, 2009) e Os anéis de Saturno (Companhia das Letras, 2010), deixam entrever, sob sua forma cumulativa de narrar histórias familiares e de luminares do saber, os traumas que resultaram da experiência colonial europeia e do nazismo. Em Bolaño, o subtexto de seu universo muitas vezes bizarro, habitado por seres visionários e monomaníacos, são as ditaduras latino-americanas. No caso de Teixeira Coelho, essas mesmas experiências totalitárias são vazadas num andamento ensaístico, em capítulos independentes acrescidos por uma espécie de coda metaliterária que ilumina as relações entre as partes (como no livro de Labatut).

Em Quando deixamos de entender o mundo, guerras e experimentos que redundaram em extermínio também estão presentes. Num livro em que a ciência ocupa o centro de narrativas calcadas em eventos históricos e em contextos que precedem ou têm conflitos totais como pano de fundo (Primeira e Segunda Guerras, Guerra Fria), os resultados práticos de pesquisas de laboratório não poderiam estar ausentes – em especial os avanços da física. Tanto é assim que, no capítulo “O coração do coração”, Labatut cita uma frase que teria sido pronunciada por Grothendieck durante uma conferência: “Os átomos que despedaçaram Hiroshima e Nagasaki não foram separados pelos dedos gordurosos de um general, mas por um grupo de físicos armados com um punhado de equações”.

Esse é, porém, um dos raros momentos patéticos do livro e, não por acaso, é uma citação entre aspas. É atribuída a uma personagem que, depois de formular alguns dos mais desafiadores problemas da matemática moderna, percebeu que “não eram os políticos que acabariam com o planeta”, conforme diz o narrador, mas cientistas como ele, que “andavam como sonâmbulos em direção ao Apocalipse” (frase também atribuída a Grothendieck).

De modo geral, o narrador de Quando deixamos de entender o mundo é frio, distante, “técnico”. Os efeitos desastrosos da ciência moderna são cuidadosamente diluídos na massa de informações factuais e biográficas que atravessam as páginas, a tal ponto que, no capítulo que culmina na criação do Zyklon B, há um desfile de antecedentes anódinos ou até benignos do macabro invento. Se o azul da Prússia pôde ser considerado o primeiro pigmento sintético moderno e acabaria na superfície de uma tela célebre como A noite estrelada (1889), de Van Gogh, o fato de sua origem ser o cianureto em nada apontava usos posteriores – seja para produzir o gás que asfixiou milhões de judeus nos campos de extermínio, seja como forma de os próprios nazistas se suicidarem, mordendo cápsulas da substância, para escapar da prisão ou do julgamento por seus crimes.

Nesse mesmo capítulo, aliás, lemos que, “em 1907, Haber foi o primeiro a extrair nitrogênio – o principal nutriente de que as plantas precisam para crescer – diretamente do ar”, solucionando a escassez de fertilizantes do período e contribuindo para salvar do flagelo da fome milhões de pessoas pelo mundo. Ao mesmo tempo, a intervenção de Haber permitiu que a Primeira Guerra se prolongasse e fosse palco do ataque com gás a Ypres, na Bélgica, planejado para os exércitos alemães por ninguém menos do que o próprio Haber – o que levou sua mulher a acusá-lo de ter “pervertido a ciência ao criar um método para exterminar humanos em escala industrial”.

Esses fatos servem para que Labatut realize uma breve digressão sobre um jovem cadete austríaco e aspirante a artista, carinhosamente apelidado de Adi por seus colegas de regimento, que sobreviveu ao ataque a Ypres e, após a derrota alemã, foi preso por tentar um golpe de Estado e escreveu no cárcere “um livro sobre sua luta pessoal”. Adi, obviamente, é Adolf Hitler, autor de Mein Kampf [Minha luta] e futuro ditador para quem Haber, depois de receber o Nobel de química por sua descoberta com nitrogênio, forneceu a substância batizada de Zyklon, que permitiu tanto desinfetar barcos, submarinos e casernas alemãs infestadas por percevejos, pulgas e baratas quanto, posteriormente, pulverizar aquela “raça” que o discurso eugenista igualou a piolhos.

O fato de nem sequer nomear Hitler, de colocá-lo como coadjuvante numa cadeia de invenções científicas que remonta ao século 18, diz algo sobre o dispositivo narrativo de Labatut – dispositivo que fica mais evidente quando ele seleciona cientistas que não têm sombra histórica tão sedimentada quanto Haber. É o caso de Mochizuki, definido por outro matemático japonês como o criador de “um universo completo do qual ele é, por enquanto, o único habitante”.

Exemplo semelhante está no capítulo que dá título ao livro, e é dedicado à dupla Erwin Schrödinger e Werner Karl Heisenberg, dois gênios que se opunham encarniçadamente em relação à teoria quântica formulada por este último. Segundo essa teoria, “os átomos e partículas elementares não compartilhavam o mesmo ser que os objetos da experiência cotidiana”. Desse modo, a física “não devia mais se preocupar com a realidade, mas com o que podemos dizer sobre a realidade”, vendo seus domínios restringidos a um universo limitado, contra o “acaso ingovernável […] aninhado no coração da matéria” – essa dimensão tão ínfima quanto infinita, inatingível tanto por nossa percepção como por nossas especulações mais racionais e abstratas.

Ao longo dessa narrativa, cujo fundo científico só é compreensível por uma parcela diminuta de leitores que dominam a física avançada, Labatut irmana os rivais Schrödinger e Heisenberg em cenas de puro delírio criativo, das quais emergem elegantes equações matemáticas que resumem os segredos das ondas atômicas. Com Schrödinger, a ação se passa numa clínica para tuberculosos com ecos do sanatório de A montanha mágica (Companhia das Letras, 2016), de Thomas Mann. Com Heisenberg, a epifania físico-matemática se dá num hotel de Heligolândia, “única ilha de alto-mar da Alemanha”, onde ele passava os dias decorando o Divã ocidento-oriental (Estação Liberdade, 2020), de Goethe, e sonhando com dervixes.

Labatut inocula, borgianamente, uma alucinação na mente e nas vivências de físicos que tornaram nosso mundo incompreensível até mesmo para Einstein, outra das personagens do livro. Já não se trata, como no episódio de Haber e suas conexões com o nazismo, de colher os efeitos colaterais da ciência pura, mas de expor a forma como cogitações físicas podem tornar sinistro aquilo que parecia familiar, levando-nos aos domínios do Unheimliche, do angustiante estranhamento descrito por Freud.

Para dar continuidade ao paralelo psicanalítico, o escritor desvela a pulsão de morte que permanece latente nas mais ousadas formulações racionais – e é isso que explica o efeito perturbador de seu estilo literário controlado, avesso a arroubos retóricos.

Durante séculos, a figura do cientista entrou na literatura como reencarnação do Prometeu que rouba o segredo dos deuses. Do mito de Fausto ao Galileu de Brecht, o cientista era o herói que enfrentava a onipotência divina, a mentira e o poder. Com Labatut, ao contrário, o poder de mentes sobrenaturais que revolcionaram o campo do conhecimento transforma a realidade efetiva, reconhecível, em um potencial campo de aplicação para teorias que – realizando o sonho demente do Calígula de Camus – podem tornar possível o impossível, em nome da ciência e ao preço de seus súditos.

Quando deixamos de entender o mundo
Benjamín Labatut
Todavia, 2022, 176 páginas

Manuel da Costa Pinto é jornalista, autor de Paisagens interiores (B4, 2012) e Albert Camus: um elogio do ensaio (Ateliê Editorial, 1998). É apresentador do programa Entrelinhas, da TV Cultura.

necropolítica - BR

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Necropolítica à brasileira?

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Necropolítica à brasileira?
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(Foto: Stefano Alberti/ Adobe Stock)

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Quando a existência se torna um risco para algumas populações, devemos indagar quais forças estão em jogo e como elas estabelecem um novo campo de poder. A orientação lacaniana para que os psicanalistas estejam à altura da subjetividade de sua época nos coloca como desafio uma leitura atenta de certas peculiaridades inerentes ao contexto brasileiro que, de modo inconsciente, atravessam nossa experiência subjetiva e social.

Os estudos sobre violência, segregação, criminalização da pobreza e da população negra não devem desconsiderar as relações de classe, de gênero, o patriarcado, o sexismo, a misoginia, a opressão e a exploração econômica – e uma análise psicanalítica desse contexto suplementa as análises econômicas, jurídicas, políticas e institucionais. Neste texto, detenho-me no aprofundamento das relações raciais, sem ignorar a mencionada interseccionalidade nem as demais situações que atravessam a nossa experiência subjetiva.

A criminalização e a violência letal que recaem sobre a população negra serão tomadas aqui com base na incidência de nossa herança traumática escravagista, considerando os aspectos inconscientes, da estrutura da linguagem e suas leis na organização e coordenação das relações sociais e seus efeitos. A isso se une a concepção de necropolítica, estabelecida por Achille Mbembe em um ensaio publicado no Brasil em 2018, um estudo que aponta o deslocamento da ideia de soberania e seu poder de decisão sobre a vida e a morte, demonstrando como a implicação da vida nos mecanismos de poder se modifica juntamente com o estatuto que decide sobre o valor da vida ou o seu desvalor.

Essa análise não é possível se não considerarmos um aspecto característico da sociedade brasileira: o racismo. Do ponto de vista inconsciente, devemos tomá-lo a partir de seu mecanismo denegatório; porém, ao situá-lo no interior da lógica biopolítica, compreendemos que seu lugar no contexto do necropoder ganha destaque pela radicalidade com que passa da decisão sobre quem deve viver e quem deve morrer para a função de regular a distribuição da morte, uma situação identificada nas estatísticas de criminalidade violenta no Brasil.

Não podemos ignorar a relação entre necropolítica e a “situação colonial”, condição da qual não nos livramos e que estabelece novos modos de relações sociais e espaciais, confirmando, no caso brasileiro, que a demarcação desses lugares se baseia na hierarquia racial, corolário da nossa herança traumática escravagista. Tal demarcação se torna correlata de uma nova configuração do modo como o poder de morte opera, pois essa mudança permite à soberania definir quais vidas importam ou não, quais vidas são descartáveis ou não.

A necropolítica surge em um movimento ao avesso à concepção de biopolítica, demonstrando, nessas novas formas de subjugação da vida ao poder da morte, o seu objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas, criando “mundos de morte”. Mais do que decidir sobre quem vive e quem morre, o necropoder produz “mortos-vivos”, aos quais confere o estatuto de descartáveis antes mesmo que sua eliminação concreta se efetive.

Ao identificar o surgimento de novas formas de existência produzidas pela necropolítica, devemos ter em nosso horizonte o fato de que elas se servem do racismo e das condições impostas pela hierarquia racial, mas também se configuram por meio de processos de criminalização, encarceramento e morte, como uma atualização das condições de inferiorização e objetificação presentes na experiência colonial e escravagista.

A necropolítica, portanto, confere uma nova forma de submissão da vida ao poder da morte e esta adquire o caráter de pura aniquilação, excesso ou escândalo. Isso faz com que as “vidas que não importam” sejam eliminadas em função de seu caráter descartável, de desvalor e dispêndio. Vidas pelas quais não se reclama.

Esse excedente eliminado ganha destaque nas estatísticas oficiais, que, por sua vez, também refletem uma lógica societária que permeia e define o valor de alguns e o desvalor de outros. Mas esses dados estatísticos são apenas a ponta do iceberg, uma vez que o processo de eliminação do regime da diferença se inicia numa anterioridade e tem nas relações raciais uma de suas especificidades.

A lógica inerente à necropolítica não se constitui de modo desarticulado das condições de segregação, violência, criminalização e morte. No caso brasileiro, tais condições recaem sobre a população negra, em especial adolescentes e jovens, que compõem os quadros das estatísticas de violência e letalidade. O aspecto mais importante dessa combinação diz respeito às condições específicas do racismo brasileiro e constitui uma matriz lógica do gozo racista, referindo-se ao que não se escreve, mas se repete e se atualiza na história, estabelecendo correlações antes lógicas e iterativas que lineares ou causais.

Essa perspectiva permite analisar o genocídio da população negra brasileira sem ignorar a evidência traumática da herança escravagista e o negacionismo do racismo brasileiro. São condições que apontam ainda as consequências psicológicas provocadas pela escravização, além dos efeitos produzidos pela estruturação da hierarquia racial que garante o privilégio de alguns sob a instituição de um regime de silenciamento. Não podemos desconsiderar que esse profundo silêncio, do ponto de vista psicanalítico, é uma evidência da pulsão de morte.

Em função de suas especificidades, é preciso distinguir o fato de que o racismo se constituiu em uma tecnologia das sociedades coloniais e se aprimorou nas sociedades capitalistas neoliberais. No entanto, no caso do Brasil, configurou-se um quadro específico, fazendo da “cor da pele” uma característica distintiva que marca a desigualdade racial e a exclusão social.

Essa condição permite analisar o cenário brasileiro sob a perspectiva necropolítica, cabendo ressaltar que o genocídio não se restringe aos dados estatísticos da violência letal. Trata-se muito mais de um processo em curso que se situa no início da modernidade, emergindo como recurso à colonização e baseado num regime de inferiorização e coisificação do outro. Utilizando-se do racismo, o processo genocida se aprimora com as associações e designações que culminam na desumanização do negro, levando à exclusão da sua condição de cidadania e constituindo uma população que se tornará o excedente a ser descartado, eliminado.

Se a necropolítica institui o modo como o poder da morte faz a gestão da vida, observamos a existência de uma matriz lógica que cria condições para a eliminação da vida a partir da especificidade do racismo brasileiro: a distinção pela “cor da pele”. Trata-se de um encadeamento que institui um regime de suspeição e criminalização, culminando em encarceramento e morte. No interior dessa sociedade hierarquicamente racializada, esse fator distintivo se torna uma condição para a eliminação dos “corpos negros”, num processo em que a morte se apresenta pelo excesso, mas também em sua forma mais extrema e letal.

Sendo o racismo o recurso que define a distribuição dessas mortes, entendemos que tal procedimento não é aleatório, pois há um cálculo nos mecanismos do necropoder que se vale das desigualdades oriundas da hierarquia racial, criando condições de continuidade que perpetuam o privilégio de alguns ao preço da morte de outros.

Enquanto expressões do exercício do necropoder, a mortalidade juvenil e o genocídio da população negra brasileira realçam o aspecto da máxima destruição de pessoas sustentada pelo racismo. Com a garantia do mesmo silêncio em relação à incidência inconsciente da herança traumática escravagista e da negação do racismo, muitas vezes consideramos essas mortes em excesso como uma consequência “natural” das condições violentas que permeiam essas vidas.

Ao tratamos da submissão da vida aos cálculos do poder da morte, devemos considerar que há uma mortificação em curso através da nomeação, da classificação e da criminalização que se baseiam no racismo e em seu fator distintivo, no caso brasileiro. O recurso à ideia de raça e ao racismo permite nomear, estigmatizar, desqualificar moralmente, internar, expulsar e matar. E, quando o excedente é associado ao desperdício, justifica-se a sua eliminação. No âmbito da necropolítica, há uma decisão direta sobre a morte, desde que sejam criadas condições para justificar a eliminação de sujeitos improdutivos.

Consideramos ainda, sob o regime da necropolítica, que a condição instituída pela peculiaridade do racismo brasileiro constitui um fator de risco a mais para o sujeito negro. Esse fator se estabeleceu pela construção de equivalências que associaram o negro a escravo, mas também pela desqualificação dessas “vidas que não importam”, subsidiado nesse caráter distintivo e favorecendo a criação de condições para uma “pressuposição de suspeição” que caminha lado a lado com os processos de criminalização, associando “negro” a “criminoso”.

A construção de um fator criminógeno, tal como constituído pela experiência necropolítica, reduz o corpo e o ser vivo a uma questão de aparência. No contexto das sociedades capitalistas neoliberais, a redução do negro à condição de objeto descartável confirma a possibilidade de transformação de seres humanos em coisas, números, um contexto coerente com o discurso do capitalista, tal como postulado pela psicanálise. Desse modo, criam-se condições para que alguns se tornem parte não reintegrável de um sistema, pois, sob a orientação do necropoder, a gestão da morte se dá pelo excesso, e a insignificância dos corpos expressa a autorização para sua eliminação.

Não se pode ignorar que, em uma sociedade capitalista neoliberal, a articulação entre racismo e necropolítica configura um regime de gestão da morte baseado na eliminação da diferença. Se, para a psicanálise, a diferença é algo fundante, nas sociedades capitalistas neoliberais, a diferença é um fator a ser eliminado. Portanto, a redução dos corpos à condição de objeto configura a sua improdutividade e justifica a sua eliminação.

O que a necropolítica nos mostra é que se engendraram novas formas de eliminação do excedente que uma sociedade produz. O expurgo desse excedente aparece nas estatísticas de criminalidade violenta, encarceramento e mortalidade da população negra no Brasil. Com isso, constatamos que, da mesma forma como as técnicas de inferiorização do negro o levaram à escravização, na atualidade, sua criminalização se sustenta na peculiaridade do racismo brasileiro, tornando-o perigoso e passível de ser eliminado.

A compreensão do regime estabelecido pela necropolítica no contexto brasileiro, por meio do genocídio da população negra, exige considerações sobre o racismo nele implicado. O regime da diferença de cor mostra como a distribuição da violência e das mortes se definem geográfica e territorialmente nas cidades brasileiras. Além disso, o excedente perigoso e improdutivo encontra, no aparelho jurídico e de segurança estatal, condições para sua introdução em um circuito discursivo que cristaliza designações incriminadoras, mais do que favorece experimentar a sua cidadania como um direito legítimo.

Há uma realidade em jogo nesses dados estatísticos que nos permite ler o modo como se configura o excedente eliminável, mas também o excesso extremo e letal da violência do racismo. Ademais, o fundo de silêncio que repousa sob essas condições mostra a recusa à diferença, a incidência do gozo e da pulsão de morte, e aponta as incompatibilidades no interior de um regime normativo das sociedades capitalistas neoliberais e no contexto da necropolítica.

Essa associação entre racismo e necropolítica indica que estamos sob o regime de um recurso sofisticado que acentua e agrava a indiferença, encobrindo um gozo mortífero projetado sobre o elemento a ser eliminado. Se o racismo é um instrumento eficaz ao capitalismo e ao neoliberalismo, podemos considerar que tal conjunção de fatores cria um campo fértil para o necropoder. E em relação a esse contexto, a psicanálise deve se implicar.

Salvaguardadas as diferenças com que esse regime se configura em inúmeras sociedades, podemos afirmar que, no Brasil, a distinção pela “cor da pele” e a negação do racismo constituem uma lógica específica que nos permite falar de uma necropolítica à brasileira.

Fídias Gomes Siqueira é psicanalista e doutor em Psicologia (Estudos Psicanalíticos) pela UFMG.

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As razões da inimizade

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As razões da inimizade
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Morador do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, almoça em um restaurante na presença de policiais militares (Antonio Scorza/Shutterstock)

 

Políticas da inimizade, de Achille Mbembe, publicado na França em 2016 e no Brasil pela n-1 edições em 2020, é uma reflexão implacável acerca da constituição de uma “sociedade da inimizade”, que caracterizaria a nossa época. Já na introdução, o livro nos fala de sua aspereza, a qual nenhum som romântico de violino pode atenuar. Ao contrário, é como se a paisagem que é nossa contemporânea fosse atravessada pela “presença de um osso, de uma caveira ou de um esqueleto”, que sinalizaria, no limite, o “retorno da relação de inimizade a uma escala global”. Nessa perspectiva, nossa época é marcada pelo signo da guerra, consequência direta dos conflitos surgidos pelo processo de colonização. A colonização e o imperialismo desmascarariam o sonho das democracias liberais de fundar uma comunidade baseada na união e na associação entre os diferentes povos, de tal modo que caberia questionar se o Outro ainda seria o meu semelhante, ou ainda, de maneira mais radical, se repartiríamos, de fato, uma mesma “humanidade”. No centro de nossa vida cotidiana não estão, portanto, a paz e a harmonia, mas a guerra e a morte. Guerras de todo tipo, de conquista e ocupação, de extermínio e em especial as guerras coloniais, que reune num único movimento o sitiamento, a intrusão e o racismo.

No interior dessa questão, ou seja, a presença no cerne das culturas ditas civilizadas de um desejo de produzir inimigos, de cultivar inimizades e, com isso, legitimar as diversas formas de assassínio e extermínio, Mbembe apela para Freud, tomando para sua interlocução o artigo “Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte”, publicado em 1915, logo depois da irrupção da Primeira Guerra Mundial. Do mesmo modo, ele nos relembra uma passagem do Seminário 1, na qual Lacan, já no começo dos anos 1950, caracterizava a nossa época como uma “civilização do ódio”. Essas duas referências apenas ratificam o lugar fundamental e necessário que a psicanálise, sobretudo a vertente freudo-lacaniana, ocupa no pensamento de Mbembe.

“Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte” marca um deslocamento importante no pensamento de Freud. É curioso que também em 1915 ele tenha escrito outro texto, “Transitoriedade”, cuja origem data de dois anos antes, no famoso passeio pelas Dolomitas, no verão de 1913, com Rainer Maria Rilke e Lou Andreas-Salomé, escondida no texto sob a figura do “amigo taciturno” do poeta. A conversa nesse passeio gira justamente em torno da transitoriedade da vida e da beleza, num momento em que os conflitos na região fronteiriça entre a Áustria e os países dos Balcãs já se acentuavam. Poderíamos chamar de otimista e esperançosa a conclusão de Freud nesse texto, pois tudo o que foi destruído pela guerra será reconstruído e tudo será mais belo do que antes. Nas “Considerações contemporâneas”, porém, o diagnóstico de Freud tem a aspereza que Mbembe atribui a seu próprio livro. Não seria a primeira nem a última vez que Freud apresenta duas perspectivas diferentes sobre a mesma questão no decorrer de sua obra. E Mbembe privilegia as “Considerações contemporâneas”, já que Freud faz aí uma leitura bastante crítica dos destinos dos ideais civilizatórios, marcados pela experiência da guerra.

Relembremos rapidamente esses aspectos críticos para, em seguida, retornar a Mbembe, na tentativa de mostrar em que medida as análises de Freud repercutem na produção do pensador africano. Em outras palavras, indagamos qual a amplitude do diagnóstico freudiano para que entendamos aspectos significativos dessa conjunção mortífera entre o desejo do inimigo, o desejo do apartheid e a fantasia do extermínio.

A guerra recém-iniciada representou para Freud a destruição de bens preciosos comuns à humanidade e também provocou uma confusão nas mais “lúcidas inteligências”. Nem a ciência, que perdeu sua “apaixonada imparcialidade” e contribuiu para uma rápida modernização tecnológica de armas de destruição, nem a antropologia, que precisou legitimar o caráter inferior e degenerado do adversário, e muito menos a psiquiatria, que diagnosticava o inimigo como perturbado mental, escaparam de um apelo, que parecia tão forte quanto difícil de evitar: de que o amor à pátria era infinitamente superior ao amor pela humanidade.

Entretanto, para Freud e grande parte de sua geração, a guerra provocou uma desilusão, tanto em relação às esperanças depositadas no progresso científico a serviço da melhoria da humanidade, amplamente presente no ideário positivista do século 19, ao qual ele não ficou imune, quanto na mudança que promoveu em relação à imagem da morte, ou seja, à medida que a violência e a destruição se tornaram a moeda corrente, o inimigo deve e precisa ser morto para que a civilização possa continuar de pé. Do ponto de vista das nações que se autointitulam civilizadas, o herói é sempre aquele que está do seu lado, seja quando precisa matar para salvar vidas, seja quando sacrifica sua própria vida para salvar seus companheiros e, por extensão, a pátria. Para Freud, entretanto, essa lógica contradiz inteiramente as esperanças depositadas na ideia do progresso da humanidade caucionada pela própria ciência, e não, é claro, pela metafísica ou pela religião.

Freud denuncia no seu texto – e isso certamente é fundamental para Mbembe – o fracasso das “grandes nações de raça branca que dominam o mundo”, que tomaram para si a tarefa de “condução do gênero humano”, cujos bens mais elevados seriam o domínio da natureza pelo progresso técnico e o cultivo de valores culturais artísticos e científicos. Freud refere-se explicitamente às guerras entre as “raças humanas separadas pela cor da pele”. Acreditava-se que essas “grandes nações” representassem o império da racionalidade e eram, portanto, legítimas para conduzir a humanidade, em especial os povos e nações considerados inferiores, bárbaros, selvagens, primitivos. Para isso, o Estado civilizado havia também erigido um conjunto de normas morais, que visavam garantir a coesão dos povos, ao mesmo tempo que um aparato jurídico deveria garantir o seu funcionamento e evitar as transgressões. Em suma, prevalecia a idealização da existência de um bem comum a ser preservado, de tal modo que um estado de tolerância em relação às diferenças pudesse se constituir plenamente, e “estrangeiro” e “hostil” não poderiam mais se fundir num único conceito, rompendo assim uma imagem vigente desde a Antiguidade Clássica.

A guerra, entretanto, pôs abaixo essa idealização: rompeu os laços comunitários que havia entre as nações combatentes, provocando rancor e impedindo uma possível reconciliação a curto prazo, assim como tornou manifesto que mesmo povos ditos civilizados pouco se conhecem e se compreendem, e podem se voltar uns contra os outros com “ódio e repulsa”. Logo, todo inimigo, até mesmo aquele que é civilizado, torna-se um bárbaro a ser exterminado. Finalmente, no Estado em guerra passa a vigorar um “estado de exceção”, no qual ocorre uma suspensão de diversos direitos para permitir que as formas de matar se tornem legítimas. Assim, a injustiça se torna a regra, as normas morais podem ser desrespeitadas e o exercício brutal do poder pode se instaurar sem muitas objeções.

Essa constatação, entretanto, precisa ser traduzida em termos psicanalíticos. A persistência da brutalidade – Brutalismo é o título do livro de Mbembe publicado imediatamente após Políticas da inimizade –, quando submetida à “investigação psicológica, em sentido mais estrito a psicanalítica” (a expressão é de Freud), retoma um problema clássico da filosofia: o do mal, o da sua origem, o da sua natureza, o da possibilidade de ser eliminado. A resposta de Freud para esse problema é áspera (para retomar mais uma vez essa imagem tão eloquente de Mbembe): o mal não pode ser extirpado, e todo ser humano, sem exceção (ou seja, as diferenças entre nações, entre raças, não valem), é constituído na sua essência mais profunda de “moções pulsionais”, cuja meta é a satisfação de “certas necessidades originárias”. Entre essas moções, as egoístas e as cruéis são consideradas pela nossa cultura como as representações por excelência dessas motivações primitivas – representações do mal, portanto, que nos habitam e nos constituem, e das quais não escapamos. Para isso basta um estopim. A guerra é o maior de todos.

É evidente que Mbembe não apenas copia e reproduz Freud. Para ele, Freud fornece uma espécie de explicação mais ampla, mais aguçada, ao permitir uma ligação entre o psíquico e o social e, com isso, ultrapassar certas explicações demasiado mecanicistas a respeito da existência das guerras. Entretanto, ele vai mais longe. Seu intuito, me parece, é mostrar o que podemos fazer com o esquema freudiano no começo do século 21, um século depois da publicação do texto de Freud.

Nessa perspectiva, a atualidade de Freud consiste no fato de que o processo regressivo do civilizado ao primitivo, ao “homem primitivo”, ao “homem das priscas eras”, aquele que de algum modo gozava com a morte do inimigo ainda vive em nós, escondido, invisível para a nossa consciência. Embora o progresso civilizatório tenha contribuído para uma vasta remodelação da vida psíquica, ele não conseguiu apagar esse movimento regressivo do aparelho psíquico. Ao relacionar o texto de 1915 com Além do princípio do prazer (1920) e com “O problema econômico do masoquismo” (1924), Mbembe então retoma o duplo movimento da “pulsão de morte” ou de “destruição”: se, por um lado, a pulsão de morte pode ser em grande parte desviada para o exterior ou direcionada para objetos do mundo exterior, de tal modo que muitas outras partes dessa mesma pulsão podem escapar aos processos civilizatórios de domesticação, por outro, a pulsão de destruição, acompanhada dos elementos sadomasoquistas nela implicados, inicialmente voltada para o exterior, pode ser redirecionada para o interior do sujeito. É o Outro interno agora o alvo. O exemplo de Mbembe é inicialmente a Shoah: se o extermínio do povo judeu significava eliminar a parte pútrida, que supostamente habitava o corpo do povo alemão, essa potência de destruição, por sua vez, volta-se, num segundo movimento, para o interior do próprio sujeito, agora autorizado a destruir e aniquilar a si mesmo. Esse retorno do mundo supostamente externo para o sujeito, acrescenta Mbembe, dá nascimento às três formas, às vezes extremas, às vezes patológicas, que retiram as máscaras de um mundo supostamente civilizado: o colonialismo, o fascismo e o nazismo.

Essa ordem – colonialismo, fascismo e nazismo – não é casual na sua cronologia estrita. Por meio dela, Mbembe mostra que a forma “campo”, referindo-se aos campos de concentração da Alemanha nazista, teve como modelo e foi antecipada pelos diversos experimentos de extermínio, destruição e morte durante a colonização. São vários os modelos coloniais mencionados por Mbembe. Entretanto, se podemos dizer que a singularidade do Terceiro Reich foi a planificação da morte em massa, podemos também dizer que os próprios alemães já haviam experimentado diversas formas desse planejamento nas suas colônias do sudoeste africano desde 1904. A forma “campo” já estava presente, de maneira eloquente, nas guerras coloniais e imperialistas. E, como já apontavam, cada um a seu modo, Hannah Arendt, Michel Foucault e Frantz Fanon, no cruzamento desses experimentos está o racismo. É no racismo que as potências destrutivas invisíveis à consciência encontram lugar privilegiado para sua expressão. Nele e por ele, as ditas raças inferiores naufragam na ignomínia provocada pela crueldade e pelo assalto aos corpos e aos bens, por decapitações, desmembramentos, torturas e abusos sexuais. Nele, ideais caros à civilização – dignidade humana, compaixão, solidariedade – sucumbem às manifestações do sadismo, ao desejo implacável de destruir e ser indiferente, de não sentir nenhuma empatia pelas vítimas e, principalmente, de considerar os povos a serem destruídos os responsáveis por sua própria destruição. Desse modo, o diagnóstico “pessimista” de Freud em 1915 constitui, lamentavelmente, um acerto.

Ernani Chaves é professor da Faculdade de Filosofia da UFPA.

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 Apresentação

Edição do mês
Apresentação
7
Detalhe da tela “O triunfo da morte” (1562), de Pieter Bruegel, o Velho

 

“No inconsciente, cada um de nós está convencido de sua imortalidade.” Foi com essa fórmula que Sigmund Freud descreveu o desafio de pensar a morte. Todos nós sabemos que somos mortais, mas, no fundo, não acreditamos nisso. Entre cognição e afeto, há um abismo. A morte não tem representação no inconsciente. É por isso que desejamos, a todo tempo, “matar a morte com o silêncio”, nossa estratégia-padrão diante da morte. Estamos sempre em exceção em relação a ela. Contudo, certas situações históricas, certos arranjos sociais tornam essa atitude vã. Diante da guerra, de um genocídio (declarado ou renegado, explícito ou não), de uma pandemia ou no interior de certas zonas de exclusão social nas quais a morte violenta faz parte da vida cotidiana, nossa hipocrisia diante da morte falha miseravelmente – ou deveria falhar. Quando já não se contam mortos um a um, precisamos nos perguntar: a morte verdadeiramente nos iguala a todos? Embora ela pareça se distribuir igualmente entre os humanos, o modo como a economia psíquica da morte incide nos corpos é claramente segmentada conforme marcadores de raça, classe, gênero, idade, religião e outros.

Outro conceito fundamental da psicanálise, tão crucial quanto o próprio inconsciente, é a pulsão. Mais uma vez, Freud não se furtou a incluir a morte na metapsicologia, formulando a pulsão de morte como uma tendência inerente a todo ser falante, que nos impele a retornar ao passado, a repetir o que não nos traz prazer, a sermos agressivos, a destruirmos a nós mesmos e aos outros. Dada a centralidade da morte na teoria analítica, não é de se espantar que a teoria psicanalítica do luto seja ainda hoje tão central não apenas para pensar a clínica, mas a própria política.

A morte tem muitas faces. Ela faz parte da política em muitos sentidos e em diversos aspectos. O poder soberano de decidir sobre a morte ou a vida dos súditos é um capítulo importante do que somos. As guerras, a escravidão, o nazifascismo, o colonialismo, o racismo, os totalitarismos e assim por diante caracterizam-se por capturar a morte como um ingrediente fundamental da ação política. Recentemente, o filósofo camaronês Achille Mbembe cunhou o conceito de necropolítica, que rapidamente se mostrou uma das ferramentas mais poderosas para ler o mundo contemporâneo. A necropolítica pode ser descrita como a gestão política da morte, isto é, como o conjunto de dispositivos e de técnicas que decidem quais corpos são matáveis e quais não são. Por quais mortes choramos, lamentamos e nos enlutamos? Quais mortes merecem nome, rosto e lágrimas? Quais, ao contrário, não passam de um número, às vezes nem mesmo isso? De quais mortes nos orgulhamos, zombamos e com quais nos deleitamos?

Necropolítica é um conceito em constante atualização e em rápida absorção não apenas no mundo acadêmico, mas no discurso. Em sua formulação mais conhecida, o conceito dialoga com o pensamento político do filósofo francês Michel Foucault, especialmente com a concepção de biopolítica. Grosso modo, na era da biopolítica, com suas viscerais relações com o liberalismo e o neoliberalismo, vivíamos sob a égide do “fazer viver, deixar morrer”.

O que Mbembe demonstra, em linhas gerais, é que as experiências colonial e pós-colonial complicam o quadro, uma vez que, nessas sociedades, o Estado abria mão do monopólio da morte violenta não para refreá-la, mas, ao contrário, para disseminá-la. Na era da pós-soberania, a mera submissão do cidadão às instituições “não garante nem sobrevida nem o empenho dessas instituições na sobrevida”, como formulou com precisão Hilan Bensusan. Se, em nome da cultura, eu renuncio à liberdade ou à soberania em troca de segurança, minha vida passa a funcionar como moeda de troca macroeconômica, o que anula o próprio fundamento do contrato social. Na era necropolítica, a morte violenta é como que terceirizada, insinuando-se de modo capilarizado e pulverizado no tecido social. Conforme sintetiza Silvio Almeida, “não é preciso que o Estado mate; basta que ele deixe morrer ou deixe matar. Ou ainda: que deixe que se matem uns aos outros”. Por esse conjunto de razões, a necropolítica deixa de ser uma exclusividade do Estado e passa a emprestar energia à população armada, seja ela composta por indivíduos fanáticos solitários, seja ela organizada como facções criminosas, milícias, grupos paramilitares e assim por diante. O monopólio estatal do uso da violência transforma-se numa espécie de oligopólio paraestatal. Foi o estudo rigoroso da violência racista da experiência colonial que permitiu a Mbembe descrever essa lógica ainda mais cruel e mais brutal que, modernamente, torna-se o paradigma da política contemporânea. No conceito de necropolítica convergem diversas linhas do pensamento político contemporâneo, mas nem sempre fica claro o papel central desempenhado pela psicanálise como um dos componentes principais do pensamento de Mbembe. Não por acaso, Freud é mobilizado em diversos momentos de sua obra, desempenhando um papel crucial.

O dossiê que o leitor tem em mãos realiza duas tarefas. Primeiramente, busca compreender o papel da leitura de Freud na formulação do conceito de necropolítica; em segundo lugar, busca trazer a necropolítica como chave de leitura da realidade brasileira atual. Essas duas tarefas se cruzam e se sobrepõem na argumentação dos articulistas convidados.

Gilson Iannini é professor do Departamento de Psicologia da UFMG.