Monday 26 December 2022

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A retórica neutra dos desastres da ciência

Edição do mês
A retórica neutra dos desastres da ciência
O químico Fritz Haber, os matemáticos Alexander Grothendieck e Shinichi Mochizuki e os físicos Erwin Schrödinger, Werner Karl Heisenberg e Albert Einstein (Fotos: Reprodução)

 

Quando deixamos de entender o mundo (Todavia, 2022), de Benjamin Labatut, foi finalista do Booker Prize de 2021 e seu lançamento no Brasil causou a mesma admiração que produziu internacionalmente, levando o escritor chileno (nascido na Holanda) a ser convidado para a edição de 2022 da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

O livro reúne quatro narrativas sobre cientistas que ou foram responsáveis por experimentos com desdobramentos dramáticos, ou resolveram enigmas físico-matemáticos tão perturbadores que tiveram consequências nefastas na vida deles. Entre os primeiros, está Fritz Haber – químico judeu cujas pesquisas estão na origem do Zyklon B, o inseticida utilizado nas câmaras de gás nazistas e cuja história é narrada no capítulo “Azul da Prússia”. Entre os segundos casos, dois matemáticos – o japonês Shinichi Mochizuki e o alemão (naturalizado francês) Alexander Grothendieck – que, após terem formulado e supostamente resolvido conjecturas consideradas indemonstráveis por seus pares, caíram no mutismo e passaram a viver como eremitas.

No final do livro, Labatut escreve um epílogo, “O jardineiro noturno”, conectando suas próprias vivências a essa obsessão com enredos científico-biográficos. Nos agradecimentos, ele não só dá as fontes de suas narrativas como também expõe, de forma tão discreta quanto insidiosa, as liberdades ficcionais que tomou ao penetrar nos meandros da mente e dos acontecimentos cotidianos de suas personagens, todas elas reais.

O procedimento lembra as bibliotecas imaginárias que o argentino Jorge Luis Borges construía com rigor de geômetra e cujo acervo esquadrinhava de modo metódico, estabelecendo relações profundas entre clássicos, raridades bibliográficas e obras puramente fictícias, numa espécie de trompe l’oeil (aqueles elementos arquitetônicos que, ao introduzirem pinturas de portas e janelas sobre uma parede, criam a ilusão de profundidade).

Labatut, entretanto, não recorre à ironia borgiana, tampouco faz do jogo literário uma finalidade em si. Seu tom neutro e distanciado ao tratar de temas traumáticos remete a autores como o alemão W. G. Sebald e o também chileno Roberto Bolaño. Além disso, a estrutura de Quando deixamos de entender o mundo apresenta paralelos com um livro que Labatut provavelmente desconhece, por ser uma obra-prima ainda não valorizada o suficiente no Brasil, apesar de ter recebido o prêmio Portugal Telecom: História natural da ditadura (Iluminuras, 2006), de Teixeira Coelho, morto neste ano de 2022.

Há, porém, uma importante diferença temática. Os relatos de Sebald, sobretudo em Os emigrantes (Companhia das Letras, 2009) e Os anéis de Saturno (Companhia das Letras, 2010), deixam entrever, sob sua forma cumulativa de narrar histórias familiares e de luminares do saber, os traumas que resultaram da experiência colonial europeia e do nazismo. Em Bolaño, o subtexto de seu universo muitas vezes bizarro, habitado por seres visionários e monomaníacos, são as ditaduras latino-americanas. No caso de Teixeira Coelho, essas mesmas experiências totalitárias são vazadas num andamento ensaístico, em capítulos independentes acrescidos por uma espécie de coda metaliterária que ilumina as relações entre as partes (como no livro de Labatut).

Em Quando deixamos de entender o mundo, guerras e experimentos que redundaram em extermínio também estão presentes. Num livro em que a ciência ocupa o centro de narrativas calcadas em eventos históricos e em contextos que precedem ou têm conflitos totais como pano de fundo (Primeira e Segunda Guerras, Guerra Fria), os resultados práticos de pesquisas de laboratório não poderiam estar ausentes – em especial os avanços da física. Tanto é assim que, no capítulo “O coração do coração”, Labatut cita uma frase que teria sido pronunciada por Grothendieck durante uma conferência: “Os átomos que despedaçaram Hiroshima e Nagasaki não foram separados pelos dedos gordurosos de um general, mas por um grupo de físicos armados com um punhado de equações”.

Esse é, porém, um dos raros momentos patéticos do livro e, não por acaso, é uma citação entre aspas. É atribuída a uma personagem que, depois de formular alguns dos mais desafiadores problemas da matemática moderna, percebeu que “não eram os políticos que acabariam com o planeta”, conforme diz o narrador, mas cientistas como ele, que “andavam como sonâmbulos em direção ao Apocalipse” (frase também atribuída a Grothendieck).

De modo geral, o narrador de Quando deixamos de entender o mundo é frio, distante, “técnico”. Os efeitos desastrosos da ciência moderna são cuidadosamente diluídos na massa de informações factuais e biográficas que atravessam as páginas, a tal ponto que, no capítulo que culmina na criação do Zyklon B, há um desfile de antecedentes anódinos ou até benignos do macabro invento. Se o azul da Prússia pôde ser considerado o primeiro pigmento sintético moderno e acabaria na superfície de uma tela célebre como A noite estrelada (1889), de Van Gogh, o fato de sua origem ser o cianureto em nada apontava usos posteriores – seja para produzir o gás que asfixiou milhões de judeus nos campos de extermínio, seja como forma de os próprios nazistas se suicidarem, mordendo cápsulas da substância, para escapar da prisão ou do julgamento por seus crimes.

Nesse mesmo capítulo, aliás, lemos que, “em 1907, Haber foi o primeiro a extrair nitrogênio – o principal nutriente de que as plantas precisam para crescer – diretamente do ar”, solucionando a escassez de fertilizantes do período e contribuindo para salvar do flagelo da fome milhões de pessoas pelo mundo. Ao mesmo tempo, a intervenção de Haber permitiu que a Primeira Guerra se prolongasse e fosse palco do ataque com gás a Ypres, na Bélgica, planejado para os exércitos alemães por ninguém menos do que o próprio Haber – o que levou sua mulher a acusá-lo de ter “pervertido a ciência ao criar um método para exterminar humanos em escala industrial”.

Esses fatos servem para que Labatut realize uma breve digressão sobre um jovem cadete austríaco e aspirante a artista, carinhosamente apelidado de Adi por seus colegas de regimento, que sobreviveu ao ataque a Ypres e, após a derrota alemã, foi preso por tentar um golpe de Estado e escreveu no cárcere “um livro sobre sua luta pessoal”. Adi, obviamente, é Adolf Hitler, autor de Mein Kampf [Minha luta] e futuro ditador para quem Haber, depois de receber o Nobel de química por sua descoberta com nitrogênio, forneceu a substância batizada de Zyklon, que permitiu tanto desinfetar barcos, submarinos e casernas alemãs infestadas por percevejos, pulgas e baratas quanto, posteriormente, pulverizar aquela “raça” que o discurso eugenista igualou a piolhos.

O fato de nem sequer nomear Hitler, de colocá-lo como coadjuvante numa cadeia de invenções científicas que remonta ao século 18, diz algo sobre o dispositivo narrativo de Labatut – dispositivo que fica mais evidente quando ele seleciona cientistas que não têm sombra histórica tão sedimentada quanto Haber. É o caso de Mochizuki, definido por outro matemático japonês como o criador de “um universo completo do qual ele é, por enquanto, o único habitante”.

Exemplo semelhante está no capítulo que dá título ao livro, e é dedicado à dupla Erwin Schrödinger e Werner Karl Heisenberg, dois gênios que se opunham encarniçadamente em relação à teoria quântica formulada por este último. Segundo essa teoria, “os átomos e partículas elementares não compartilhavam o mesmo ser que os objetos da experiência cotidiana”. Desse modo, a física “não devia mais se preocupar com a realidade, mas com o que podemos dizer sobre a realidade”, vendo seus domínios restringidos a um universo limitado, contra o “acaso ingovernável […] aninhado no coração da matéria” – essa dimensão tão ínfima quanto infinita, inatingível tanto por nossa percepção como por nossas especulações mais racionais e abstratas.

Ao longo dessa narrativa, cujo fundo científico só é compreensível por uma parcela diminuta de leitores que dominam a física avançada, Labatut irmana os rivais Schrödinger e Heisenberg em cenas de puro delírio criativo, das quais emergem elegantes equações matemáticas que resumem os segredos das ondas atômicas. Com Schrödinger, a ação se passa numa clínica para tuberculosos com ecos do sanatório de A montanha mágica (Companhia das Letras, 2016), de Thomas Mann. Com Heisenberg, a epifania físico-matemática se dá num hotel de Heligolândia, “única ilha de alto-mar da Alemanha”, onde ele passava os dias decorando o Divã ocidento-oriental (Estação Liberdade, 2020), de Goethe, e sonhando com dervixes.

Labatut inocula, borgianamente, uma alucinação na mente e nas vivências de físicos que tornaram nosso mundo incompreensível até mesmo para Einstein, outra das personagens do livro. Já não se trata, como no episódio de Haber e suas conexões com o nazismo, de colher os efeitos colaterais da ciência pura, mas de expor a forma como cogitações físicas podem tornar sinistro aquilo que parecia familiar, levando-nos aos domínios do Unheimliche, do angustiante estranhamento descrito por Freud.

Para dar continuidade ao paralelo psicanalítico, o escritor desvela a pulsão de morte que permanece latente nas mais ousadas formulações racionais – e é isso que explica o efeito perturbador de seu estilo literário controlado, avesso a arroubos retóricos.

Durante séculos, a figura do cientista entrou na literatura como reencarnação do Prometeu que rouba o segredo dos deuses. Do mito de Fausto ao Galileu de Brecht, o cientista era o herói que enfrentava a onipotência divina, a mentira e o poder. Com Labatut, ao contrário, o poder de mentes sobrenaturais que revolcionaram o campo do conhecimento transforma a realidade efetiva, reconhecível, em um potencial campo de aplicação para teorias que – realizando o sonho demente do Calígula de Camus – podem tornar possível o impossível, em nome da ciência e ao preço de seus súditos.

Quando deixamos de entender o mundo
Benjamín Labatut
Todavia, 2022, 176 páginas

Manuel da Costa Pinto é jornalista, autor de Paisagens interiores (B4, 2012) e Albert Camus: um elogio do ensaio (Ateliê Editorial, 1998). É apresentador do programa Entrelinhas, da TV Cultura.

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