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Necropolítica à brasileira?
Edição do mês(Foto: Stefano Alberti/ Adobe Stock)
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Quando a existência se torna um risco para algumas populações, devemos indagar quais forças estão em jogo e como elas estabelecem um novo campo de poder. A orientação lacaniana para que os psicanalistas estejam à altura da subjetividade de sua época nos coloca como desafio uma leitura atenta de certas peculiaridades inerentes ao contexto brasileiro que, de modo inconsciente, atravessam nossa experiência subjetiva e social.
Os estudos sobre violência, segregação, criminalização da pobreza e da população negra não devem desconsiderar as relações de classe, de gênero, o patriarcado, o sexismo, a misoginia, a opressão e a exploração econômica – e uma análise psicanalítica desse contexto suplementa as análises econômicas, jurídicas, políticas e institucionais. Neste texto, detenho-me no aprofundamento das relações raciais, sem ignorar a mencionada interseccionalidade nem as demais situações que atravessam a nossa experiência subjetiva.
A criminalização e a violência letal que recaem sobre a população negra serão tomadas aqui com base na incidência de nossa herança traumática escravagista, considerando os aspectos inconscientes, da estrutura da linguagem e suas leis na organização e coordenação das relações sociais e seus efeitos. A isso se une a concepção de necropolítica, estabelecida por Achille Mbembe em um ensaio publicado no Brasil em 2018, um estudo que aponta o deslocamento da ideia de soberania e seu poder de decisão sobre a vida e a morte, demonstrando como a implicação da vida nos mecanismos de poder se modifica juntamente com o estatuto que decide sobre o valor da vida ou o seu desvalor.
Essa análise não é possível se não considerarmos um aspecto característico da sociedade brasileira: o racismo. Do ponto de vista inconsciente, devemos tomá-lo a partir de seu mecanismo denegatório; porém, ao situá-lo no interior da lógica biopolítica, compreendemos que seu lugar no contexto do necropoder ganha destaque pela radicalidade com que passa da decisão sobre quem deve viver e quem deve morrer para a função de regular a distribuição da morte, uma situação identificada nas estatísticas de criminalidade violenta no Brasil.
Não podemos ignorar a relação entre necropolítica e a “situação colonial”, condição da qual não nos livramos e que estabelece novos modos de relações sociais e espaciais, confirmando, no caso brasileiro, que a demarcação desses lugares se baseia na hierarquia racial, corolário da nossa herança traumática escravagista. Tal demarcação se torna correlata de uma nova configuração do modo como o poder de morte opera, pois essa mudança permite à soberania definir quais vidas importam ou não, quais vidas são descartáveis ou não.
A necropolítica surge em um movimento ao avesso à concepção de biopolítica, demonstrando, nessas novas formas de subjugação da vida ao poder da morte, o seu objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas, criando “mundos de morte”. Mais do que decidir sobre quem vive e quem morre, o necropoder produz “mortos-vivos”, aos quais confere o estatuto de descartáveis antes mesmo que sua eliminação concreta se efetive.
Ao identificar o surgimento de novas formas de existência produzidas pela necropolítica, devemos ter em nosso horizonte o fato de que elas se servem do racismo e das condições impostas pela hierarquia racial, mas também se configuram por meio de processos de criminalização, encarceramento e morte, como uma atualização das condições de inferiorização e objetificação presentes na experiência colonial e escravagista.
A necropolítica, portanto, confere uma nova forma de submissão da vida ao poder da morte e esta adquire o caráter de pura aniquilação, excesso ou escândalo. Isso faz com que as “vidas que não importam” sejam eliminadas em função de seu caráter descartável, de desvalor e dispêndio. Vidas pelas quais não se reclama.
Esse excedente eliminado ganha destaque nas estatísticas oficiais, que, por sua vez, também refletem uma lógica societária que permeia e define o valor de alguns e o desvalor de outros. Mas esses dados estatísticos são apenas a ponta do iceberg, uma vez que o processo de eliminação do regime da diferença se inicia numa anterioridade e tem nas relações raciais uma de suas especificidades.
A lógica inerente à necropolítica não se constitui de modo desarticulado das condições de segregação, violência, criminalização e morte. No caso brasileiro, tais condições recaem sobre a população negra, em especial adolescentes e jovens, que compõem os quadros das estatísticas de violência e letalidade. O aspecto mais importante dessa combinação diz respeito às condições específicas do racismo brasileiro e constitui uma matriz lógica do gozo racista, referindo-se ao que não se escreve, mas se repete e se atualiza na história, estabelecendo correlações antes lógicas e iterativas que lineares ou causais.
Essa perspectiva permite analisar o genocídio da população negra brasileira sem ignorar a evidência traumática da herança escravagista e o negacionismo do racismo brasileiro. São condições que apontam ainda as consequências psicológicas provocadas pela escravização, além dos efeitos produzidos pela estruturação da hierarquia racial que garante o privilégio de alguns sob a instituição de um regime de silenciamento. Não podemos desconsiderar que esse profundo silêncio, do ponto de vista psicanalítico, é uma evidência da pulsão de morte.
Em função de suas especificidades, é preciso distinguir o fato de que o racismo se constituiu em uma tecnologia das sociedades coloniais e se aprimorou nas sociedades capitalistas neoliberais. No entanto, no caso do Brasil, configurou-se um quadro específico, fazendo da “cor da pele” uma característica distintiva que marca a desigualdade racial e a exclusão social.
Essa condição permite analisar o cenário brasileiro sob a perspectiva necropolítica, cabendo ressaltar que o genocídio não se restringe aos dados estatísticos da violência letal. Trata-se muito mais de um processo em curso que se situa no início da modernidade, emergindo como recurso à colonização e baseado num regime de inferiorização e coisificação do outro. Utilizando-se do racismo, o processo genocida se aprimora com as associações e designações que culminam na desumanização do negro, levando à exclusão da sua condição de cidadania e constituindo uma população que se tornará o excedente a ser descartado, eliminado.
Se a necropolítica institui o modo como o poder da morte faz a gestão da vida, observamos a existência de uma matriz lógica que cria condições para a eliminação da vida a partir da especificidade do racismo brasileiro: a distinção pela “cor da pele”. Trata-se de um encadeamento que institui um regime de suspeição e criminalização, culminando em encarceramento e morte. No interior dessa sociedade hierarquicamente racializada, esse fator distintivo se torna uma condição para a eliminação dos “corpos negros”, num processo em que a morte se apresenta pelo excesso, mas também em sua forma mais extrema e letal.
Sendo o racismo o recurso que define a distribuição dessas mortes, entendemos que tal procedimento não é aleatório, pois há um cálculo nos mecanismos do necropoder que se vale das desigualdades oriundas da hierarquia racial, criando condições de continuidade que perpetuam o privilégio de alguns ao preço da morte de outros.
Enquanto expressões do exercício do necropoder, a mortalidade juvenil e o genocídio da população negra brasileira realçam o aspecto da máxima destruição de pessoas sustentada pelo racismo. Com a garantia do mesmo silêncio em relação à incidência inconsciente da herança traumática escravagista e da negação do racismo, muitas vezes consideramos essas mortes em excesso como uma consequência “natural” das condições violentas que permeiam essas vidas.
Ao tratamos da submissão da vida aos cálculos do poder da morte, devemos considerar que há uma mortificação em curso através da nomeação, da classificação e da criminalização que se baseiam no racismo e em seu fator distintivo, no caso brasileiro. O recurso à ideia de raça e ao racismo permite nomear, estigmatizar, desqualificar moralmente, internar, expulsar e matar. E, quando o excedente é associado ao desperdício, justifica-se a sua eliminação. No âmbito da necropolítica, há uma decisão direta sobre a morte, desde que sejam criadas condições para justificar a eliminação de sujeitos improdutivos.
Consideramos ainda, sob o regime da necropolítica, que a condição instituída pela peculiaridade do racismo brasileiro constitui um fator de risco a mais para o sujeito negro. Esse fator se estabeleceu pela construção de equivalências que associaram o negro a escravo, mas também pela desqualificação dessas “vidas que não importam”, subsidiado nesse caráter distintivo e favorecendo a criação de condições para uma “pressuposição de suspeição” que caminha lado a lado com os processos de criminalização, associando “negro” a “criminoso”.
A construção de um fator criminógeno, tal como constituído pela experiência necropolítica, reduz o corpo e o ser vivo a uma questão de aparência. No contexto das sociedades capitalistas neoliberais, a redução do negro à condição de objeto descartável confirma a possibilidade de transformação de seres humanos em coisas, números, um contexto coerente com o discurso do capitalista, tal como postulado pela psicanálise. Desse modo, criam-se condições para que alguns se tornem parte não reintegrável de um sistema, pois, sob a orientação do necropoder, a gestão da morte se dá pelo excesso, e a insignificância dos corpos expressa a autorização para sua eliminação.
Não se pode ignorar que, em uma sociedade capitalista neoliberal, a articulação entre racismo e necropolítica configura um regime de gestão da morte baseado na eliminação da diferença. Se, para a psicanálise, a diferença é algo fundante, nas sociedades capitalistas neoliberais, a diferença é um fator a ser eliminado. Portanto, a redução dos corpos à condição de objeto configura a sua improdutividade e justifica a sua eliminação.
O que a necropolítica nos mostra é que se engendraram novas formas de eliminação do excedente que uma sociedade produz. O expurgo desse excedente aparece nas estatísticas de criminalidade violenta, encarceramento e mortalidade da população negra no Brasil. Com isso, constatamos que, da mesma forma como as técnicas de inferiorização do negro o levaram à escravização, na atualidade, sua criminalização se sustenta na peculiaridade do racismo brasileiro, tornando-o perigoso e passível de ser eliminado.
A compreensão do regime estabelecido pela necropolítica no contexto brasileiro, por meio do genocídio da população negra, exige considerações sobre o racismo nele implicado. O regime da diferença de cor mostra como a distribuição da violência e das mortes se definem geográfica e territorialmente nas cidades brasileiras. Além disso, o excedente perigoso e improdutivo encontra, no aparelho jurídico e de segurança estatal, condições para sua introdução em um circuito discursivo que cristaliza designações incriminadoras, mais do que favorece experimentar a sua cidadania como um direito legítimo.
Há uma realidade em jogo nesses dados estatísticos que nos permite ler o modo como se configura o excedente eliminável, mas também o excesso extremo e letal da violência do racismo. Ademais, o fundo de silêncio que repousa sob essas condições mostra a recusa à diferença, a incidência do gozo e da pulsão de morte, e aponta as incompatibilidades no interior de um regime normativo das sociedades capitalistas neoliberais e no contexto da necropolítica.
Essa associação entre racismo e necropolítica indica que estamos sob o regime de um recurso sofisticado que acentua e agrava a indiferença, encobrindo um gozo mortífero projetado sobre o elemento a ser eliminado. Se o racismo é um instrumento eficaz ao capitalismo e ao neoliberalismo, podemos considerar que tal conjunção de fatores cria um campo fértil para o necropoder. E em relação a esse contexto, a psicanálise deve se implicar.
Salvaguardadas as diferenças com que esse regime se configura em inúmeras sociedades, podemos afirmar que, no Brasil, a distinção pela “cor da pele” e a negação do racismo constituem uma lógica específica que nos permite falar de uma necropolítica à brasileira.
Fídias Gomes Siqueira é psicanalista e doutor em Psicologia (Estudos Psicanalíticos) pela UFMG.
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