Tuesday 30 June 2020

Nos quilombos, coronavírus mata um por dia



Nos quilombos, coronavírus mata um por dia

https://apublica.org/2020/06/nos-quilombos-coronavirus-mata-um-por-dia/

Fonte: Agência Pública

Resumo:

Lideranças históricas estão entre as mais de cem mortes e quase mil infectados. Quilombolas também relataram racismo na busca de testagem e atendimento

Por Texto: Rafael Oliveira | Infográficos: Bruno Fonseca

Nos quilombos da região dos Lagos, no Rio de Janeiro, a Covid-19 fez vítima uma das mais importantes figuras quilombolas do estado, região que lidera as mortes entre quilombolas no país: 36 óbitos. “Dona Uia era uma biblioteca viva, era a grande liderança que lutava pela questão territorial. Uma mulher honesta, sincera, que ganhou credibilidade e as comunidades começaram a reivindicar seus direitos”, conta Jane Oliveira, sobrinha de Carivaldina Oliveira da Costa, a dona Uia. Ela deixou seis filhos, oito irmãos e sua mãe, Dona Eva, a matriarca de 110 anos do Quilombo da Rasa, com quem compartilhava as histórias, os cantos e a memória. Eva, que ainda não sabe da morte da filha, foi testada e o resultado para Covid-19 foi negativo.

Conhecida pelo sorriso largo, dona Uia faleceu no último dia 10 de junho, em Búzios, a 170 km da capital fluminense. Dois dias antes de morrer, ela buscou o posto de saúde da região com febre e outros sintomas. Retornou para sua casa, mas continuou a se sentir mal. Internada na madrugada do dia 9 de junho, faleceu no dia seguinte, uma semana depois de completar 79 anos. Descendente de escravizados, ela ajudou na difusão da história de seu povo e capitaneou o movimento quilombola na região desde o final dos anos 1990.

Além de dona Uia, outros 118 quilombolas já morreram vítimas da pandemia de Covid-19 no país, segundo levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) — instituição que Uia ajudou a fundar. Em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), a Conaq é quem tem acompanhado o avanço da Covid-19 nos quilombos de todo o país, já que não há um registro nacional da situação epidemiológica da doença entre a população remanescente.

Segundo o último boletim do Observatório da Covid-19 nos Quilombos, há ao menos 973 casos confirmados e outros 197 em monitoramento entre quilombolas de 16 estados brasileiros.

Desde o registro do primeiro óbito, em 11 de abril, a Conaq já contabilizou mortes em 11 estados, com a média de 1,5 óbito por dia. A situação é especialmente crítica no Rio de Janeiro de dona Uia e no Pará, que contabilizam 36 mortes e 33 mortes respectivamente. Amapá, com 16 casos, Maranhão e Pernambuco, com 9 cada, também lideram a lista de estados mais atingidos.

Para a coordenadora e membra-fundadora do Conaq Givânia Silva, o coronavírus aprofundou problemas já históricos que as populações quilombolas enfrentam. “São comunidades que não acessam os serviços de saúde, sem água, sem energia, sem internet. São problemas que, num tempo “normal”, as comunidades convivem com essa ausência de política. Só que num momento como esse, de uma pandemia com a velocidade e com a letalidade que é a Covid-19, essas políticas fazem muito mais falta e deixam essas pessoas muito mais vulneráveis”, afirma a liderança quilombola.

Segundo a assessora do ISA Milene Maia, não há ainda uma atuação efetiva do poder público para conter a pandemia nas comunidades quilombolas. “Você não consegue ter, por exemplo, uma informação dos atendimentos que são feitos pelas secretarias de saúde com esse recorte de raça, apesar disso já ser uma obrigação”, diz.

No último dia 16, o Senado Federal aprovou o projeto de lei 1.142, que estabelece um plano emergencial para proteger indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais do coronavírus. O texto de autoria da deputada federal Professora Rosa Neide (PT/MT) aguarda sanção presidencial.

De acordo com o IBGE, há 5.972 comunidades quilombolas no Brasil, número um pouco abaixo do contabilizado pela Conaq, que fala em 6.330. Pouco mais de metade dos territórios (3.432) são certificados pela Fundação Cultural Palmares (FCP), e apenas 182 foram titulados.

A condução da presidência da Fundação Cultural Palmares feita por Sérgio Camargo — que chamou o movimento negro de “escória maldita”, Zumbi dos Palmares de “filho da puta que escravizava pretos”, e uma mãe de santo de “macumbeira” — é alvo de críticas do movimento quilombola. De março até agora, Camargo não recebeu nenhum representante do movimento negro.

“É um órgão que poderia estar preocupado em pelo menos ajudar a mapear essas comunidades que estão com maior vulnerabilidade, e está preocupado em desconstruir a história das lideranças negras. Única coisa que a Fundação Palmares tem se preocupado é em fazer desserviço com a história da população negra brasileira”, afirma a coordenadora do Conaq Givânia Silva.

Para Magno Nascimento, integrante da Malungu, associação de quilombolas do Pará, a Palmares tem “feito papel inverso daquele para qual ela foi criada”. “Ela faz um papel de aumentar a preocupação e o sofrimento dos quilombolas nesse momento. Nós repudiamos veementemente o entendimento da Palmares de liberar a permissão de obras dentro dos nossos territórios. Nesse momento o foco deveria ser voltado para o combate ao coronavírus”, ressalta o quilombola. Magno se refere a falta de consulta prévia, livre e informada dos afetados pela construção de uma linha de transmissão de energia ligando os municípios de Óbidos, Juruti e Parintins (PA), onde vivem quilombolas e populações ribeirinhas, situação denunciada com exclusividade pela Pública.

No Rio de Dona Uia, 36 quilombolas já faleceram de coronavírus

Além do Quilombo da Rasa, onde vivia dona Uia e cerca de 800 famílias, o Rio de Janeiro tem outras 40 comunidades quilombolas certificadas pela FCP, sendo que apenas três delas têm seu território titulado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Das mortes por coronavírus, quatro óbitos foram em Búzios, onde fica Rasa. Os dados foram levantados pela Acquilerj, associação quilombola do estado, junto à secretaria de saúde do RJ, e repassados à Conaq.

O número pode ser ainda maior, já que a população quilombola do Rio enfrenta dificuldades para conseguir ser testada, segundo a sobrinha de dona Uia e coordenadora nacional do Conaq, Jane Oliveira. “Agora que começaram a liberar exame, depois dessas mortes. Eu até achei que eles estavam de preconceito, porque só estavam fazendo exame nos brancos. Meu esposo não é negro, fez o exame com maior tranquilidade. Você mandava um negro, não estavam testando. Eu falei com a Secretaria de Saúde do Rio (SES-RJ), porque a gente estava se sentindo discriminado, agora eles estão testando todo mundo”, explica.

Segundo ela, muitos também deixam de procurar o sistema de saúde por medo de se contaminar, e faz falta a presença dos agentes comunitários de saúde na região durante a pandemia. Além de Uia, a família de Jane também tem mais cinco casos confirmados. Seu tio, o ex-vereador de Búzios conhecido como Valmir da Rasa testou positivo, assim como sua esposa. Dois filhos de dona Uia também foram diagnosticados e a própria Jane teve sintomas da doença e testou positivo para Covid-19 na última sexta (26).

Vítima da Covid-19, Dona Uia impulsionou movimento quilombola no Rio de Janeiro

Formada na luta social por dona Uia e uma das responsáveis por dar continuidade a seu legado, Jane Oliveira vive no Quilombo Maria Joaquina, que faz fronteira com a comunidade da Rasa, mas está localizado na cidade de Cabo Frio. Há cerca de 200 famílias que moram na comunidade. De acordo com a liderança de 45 anos, há quase 40 casos confirmados na sua região, além de mais de 200 casos suspeitos ainda sem diagnóstico.

Segundo a representante da Conaq no Rio de Janeiro a doença se espalhou nos municípios da região dos Lagos principalmente através das mulheres que trabalham como empregadas domésticas. “As pessoas que têm casas nos condomínios estão vindo direto. No final de semana, no feriado, Búzios estava lotado. Como eles têm conta de água, de luz, [passam pela barreira sanitária] e vão entrando, e aí as patroas estavam forçando as domésticas a trabalhar. Está todo mundo com medo do desemprego aqui, então as domésticas estavam indo, mesmo com muito medo, e acabavam sendo contaminadas”, conta Jane.

Para a liderança quilombola, a atuação do governo local tem sido “muito devagar”, além de não contemplar a maioria da população dos quilombos. “A prefeitura de Búzios liberou cesta básica pra quem tinha filho na escola e bolsa família, só que no quilombo da Rasa a maioria já não tem mais filho na escola e não tem bolsa família, porque a maioria trabalhava, mas [com a pandemia] ficou desempregada”, explica.

Sem terras para plantar, a maioria da população quilombola da região ganha a vida trabalhando na pesca, no artesanato, na construção civil, nas praias ou na hotelaria, além dos serviços de limpeza de casas. Com as restrições impostas pela pandemia, os hotéis passaram a demitir e a construção civil, assim como as feiras onde os quilombolas vendem seus produtos, tiveram suas atividades suspensas.

Com o aumento do desemprego, muitos buscaram o auxílio emergencial pago pelo governo federal, mas a maioria encontrou dificuldades para conseguir o benefício. “O povo ficou indignado por causa da eleição, então não votou. Quem teve o título cancelado e não tem o Cadastro Único não conseguiu acessar, muita gente ficou de fora. Na minha casa o meu esposo não conseguiu acessar”, diz Jane.

Paralelamente à pandemia, os quilombolas da região dos Lagos também resistem à pressão da especulação imobiliária, com grandes empreendimentos e recorrentes invasões. A titulação do Quilombo da Rasa, maior sonho de dona Uia, encontra-se na fase de contestação. “Ela contribuiu com muita coisa, e agora o que ela não conseguiu terminar está nas nossas mãos, na mão da juventude, mais do que nunca. Vamos firmar nosso espaço e dizer que a gente não abre mão de nenhum direito. Nenhum direito a menos”, protesta Jane.

Hidroxicloroquina: “Resolvi não tomar mais, porque ia me matar”

Segundo estado mais afetado pelo coronavírus no país entre a população quilombola, o Pará já contabiliza 33 óbitos. O quilombola Magno Nascimento, de 42 anos, sentiu os primeiros sintomas da Covid-19 no final do mês de abril. Além de febre e tosse, ele também sofreu com dores no corpo e apresentou trombos, em especial nas pernas e no braço esquerdo. Ele conseguiu atendimento em uma clínica itinerante do governo do estado na capital Belém, onde está morando temporariamente com sua família. Apesar dos sintomas idênticos ao da doença, ele não conseguiu realizar o teste para comprovar a infecção. “Você falava pro médico que teve tosse e um pouco de febre e já estava pronta a receita, já estava até o kit de medicamentos separados, pegava e cai fora pra não atrapalhar na fila”, conta.

A medicação receitada para o quilombola foi a combinação de hidroxicloroquina e azitromicina, além de antialérgicos e remédios para dor. Apesar de ciente dos riscos da droga, ele resolveu seguir a orientação médica. “Acabei de tomar aquilo [a hidroxicloroquina] e era como se estivesse explodindo o meu coração e o meu braço do lado esquerdo. Mas pensei que tinha dado essa reação porque eu estava muito ruim e quando é no outro dia, tomei o segundo comprimido. Não deveria ter feito, foi ainda pior. Resolvi não tomar mais, porque esse medicamento ia me matar”, relata Magno, que dois meses após os primeiros sintomas ainda não está totalmente recuperado.

Pará é um dos municípios com mais mortes de quilombolas em decorrência do coronavírus

Morador do Quilombo África, na cidade de Moju, ele resolveu ficar em Belém desde o começo da pandemia, como precaução para preservar as pessoas do grupo de risco de sua comunidade. Apesar disso, o coronavírus chegou com força em seu município de origem, e também em seu território, localizado a cerca de 100 km da capital. Moju já contabiliza oito óbitos por coronavírus, sendo dois deles no Quilombo África, onde vivem cerca de 500 pessoas. Há outras 26 comunidades quilombolas no município.

Além de conhecidos, de amigos e dele próprio, a doença também atingiu a família de Magno, com três de suas primas se infectando pelo coronavírus. “Dona Arminda ficou muito ruim do dia pra noite. A comunidade correu, conseguiu um carro e levou ela para uma unidade de pronto atendimento. Internou, mas ela faleceu à noite. Ela tinha uma outra irmã, dona Maria Piedade, que vivia na comunidade mas tinha vida fora também, e oito dias depois ela também faleceu”, relata o quilombola. A terceira irmã, dona Leocádia, que é presidente da associação local, conseguiu ser levada às pressas pelos filhos para Belém, e teve o custo dos exames bancado por uma “vaquinha” entre amigos. Ela segue em tratamento na capital.

Responsável pela coleta de dados sobre coronavírus no estado para a Conaq, Magno reclama da inação do poder público. “Para não dizer que o estado do Pará não fez nada em prol dos quilombolas, ele doou 300 litros de álcool líquido e 19 mil máscaras, que não dá para atender nem 50% das famílias. Além disso, posso te dizer categoricamente: nada. Não teve um plano de ação, não teve uma campanha educativa”, afirma.

Atualmente, são 618 casos confirmados, além de quase 400 suspeitos em tratamento médico, segundo dados da Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Sociedade Amazônica, Cultura e Ambiente (Sacaca) da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), que fazem o monitoramento no estado e repassam para a Conaq.

Se na capital Belém, que já chegou a ter 100% dos leitos de UTI da rede pública ocupados, a doença mostra uma pequena redução no número de novos casos, no interior ela avança cada vez mais, seguindo a tendência do país inteiro. “Essa ida da doença para o interior nos fragiliza muito, porque muitas das comunidades quilombolas estão mais próximas dos pequenos municípios, que não tem qualquer serviço de saúde de alta complexidade. Estamos vendo a situação do Norte, em que as comunidades moram distantes e quando chegam na primeira cidade ela não tem absolutamente nenhuma infraestrutura”, afirma a coordenadora nacional da Conaq Givânia Silva.

Nas comunidades de Moju, que só não têm mais óbitos confirmados por Covid-19 do que as do Rio de Janeiro (RJ) e de Macapá (AP), os quilombolas tentam resistir à doença com chás e medicamentos tradicionais, já que o acesso ao sistema de público é difícil. Alguns moradores se revezam para fazer barreiras sanitárias com o objetivo de conter a disseminação do coronavírus. Sem nenhum apoio do poder público, porém, eles encontram dificuldades para barrar pessoas estranhas.

Além disso, a redução do deslocamento entre as comunidades e as cidades próximas, assim como a necessidade de reduzir aglomerações, fizeram com que o sustento dos quilombolas fosse prejudicado. “Se eu não posso aglomerar pra produzir, nem para comercializar, então automaticamente surge um prejuízo. E temos uma preocupação para além do agora. Nesse momento era o período em que estaríamos plantando, nós estaríamos colhendo, limpando os açaizais, mas não estamos podendo fazer isso agora. No ano que vem, nós teremos prejuízos ainda maiores. É preocupante”, afirma Magno.

“Se eu não posso aglomerar pra produzir, nem para comercializar, então automaticamente surge um prejuízo”, relata Magno Nascimento, integrante da Malungu

Estado com mais quilombos certificados, Maranhão vê doença avançar

“Por conta do racismo estrutural, o serviço de saúde não está preparado para nos atender. E ele não quer nos atender, porque nos vê como uma terceira, quarta, quinta classe. Não dá importância para nós enquanto ser humano. Essa questão da invisibilidade é muito séria, a gente tem que estar o tempo todo dizendo ‘estamos aqui, somos seres humanos, nós temos esses mesmos direitos’”, afirma a coordenadora nacional da Conaq no Maranhão, Célia Pinto, que vive no Quilombo Acre, na cidade de Cururupu, a 465 km da capital.

Com territórios quilombolas em 107 de seus 217 municípios, o Maranhão vê a doença avançar entre sua população remanescente, principalmente desde o fim de maio, quando a doença passou a se interiorizar. Segundo dados da Conaq, já são 9 óbitos em 7 diferentes cidades.

Em Cururupu, ainda não há óbitos, mas já são pelo menos 20 casos confirmados entre os quilombolas. A situação local preocupa principalmente porque a cidade é município-polo de atendimento de outras oito da região. “Se a gente tiver um surto aqui no município vamos ter muita dificuldade porque não tem aparato suficiente para atender essa demanda. Se continuar aumentando os casos, como estão aumentando aqui e nos oito municípios vizinhos que são atendidos aqui, nós vamos ter uma situação muito crítica”, afirma Célia.

No município de Alcântara, onde a população quilombola disputa há décadas seu território com uma base de lançamentos de foguetes da Força Aérea Brasileira, o coronavírus já fez quatro vítimas. “Alcântara não dispõe de hospital ou estrutura hospitalar adequada para tratar os casos. Não há sequer um único respirador no município. O município improvisou uma unidade de atendimento em uma escola municipal no centro da cidade”, conta o quilombola Danilo Serejo, assessor jurídico das comunidades.

Assim como em outros estados, especialmente no Norte e no Nordeste, os quilombolas do Maranhão enfrentam dificuldades para acessar o sistema de saúde pública, já que muitas comunidades ficam distantes dos grandes centros. Com isso, é necessário se deslocar centenas de quilômetros para realizar um atendimento de alta complexidade, como a internação em uma UTI.

Em diálogo direto com prefeituras e secretarias de saúde municipais, os quilombolas de algumas cidades, como Anajatuba e Icatu, têm conseguido driblar um dos problemas encontrados: a falta de testes. Em outros, porém, ainda há dificuldade para conseguir ser testado, causando significativa subnotificação. “Nós temos municípios em que as pessoas estavam procurando a rede municipal de saúde e diziam que não tinham testes. Mandavam para uma outra unidade e, quando chegavam, as pessoas não eram atendidas, diziam que não tinham como fazer, que não era lá que fazia”, relata a coordenadora do Conaq.

O avanço dos casos entre a população quilombola do Maranhão fez com que a Conaq e a Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão (Aconeruq) buscassem também diálogo com o governo estadual, através da secretaria de saúde (SES-MA). Além de reunião com representantes do governo, as lideranças também entregaram uma lista de reivindicações. Entre os pedidos estão apoio nas medidas de autogestão dos quilombolas para que o isolamento social seja mantido, fortalecimento da rede hospitalar e suspensão de obras ou retiradas que impactem as comunidades.

Para amenizar o impacto econômico do coronavírus, já que a pandemia afetou o escoamento da produção agrícola dos quilombolas e a maioria não está conseguindo acesso ao auxílio emergencial, eles também solicitaram a ampliação da compra de produtos da agricultura familiar pelo governo. O pedido já foi atendido e houve aumento da aquisição de alimentos dos quilombolas por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

Outro lado

Pública entrou em contato com as secretarias estaduais de saúde (SES) de Maranhão, Pará e Rio de Janeiro, com as prefeituras de Cururupu (MA), Moju (PA) e Búzios (RJ), além da Fundação Cultural Palmares. Até a publicação da reportagem, só obteve resposta da SES/MA e da SES/PA.

Créditos de imagens

 Bruno Fonseca/Agência Pública
 Divulgação/Ricardo Alvez
 Cristino Martins/Agência Pará
 Thiago Gomes/Agência Pará


Colaborou: Raphaela Ribeiro

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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Antropoceno: emergência e advertência global

Antropoceno: emergência e advertência global

Antropoceno representa um novo período da história do Planeta, que a partir da ação humana como força impulsionadora da degradação ambiental acelera o colapso global. Daí a crise sistêmica, pois esse rápido e progressivo avanço na deterioração das condições de vida possui um impacto que gera múltiplas facetas interconectadas em um fenômeno global. E por ser de ordem emergencial, também exige respostas imediatas, audazes, coerentes e catalisadoras de forças desaceleradoras e restaurativas. Uma tarefa nada simples, que exige, como primeiro passo, a compreensão de um cenário nada alentador.

Com o tema “Antropoceno e a crise sistêmica”, José Eustáquio Diniz Alves, sociólogo, mestre em economia e doutor em Demografia, com longa passagem pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – ENCE/IBGE, esmiuçou questões centrais que permeiam esse momento inédito, que se apresenta como ameaça existencial para a humanidade e sua travessia civilizatória.

Sua exposição, ocorrida no último sábado, dia 27 de junho, com transmissão online, inaugurou a série de debates intitulada “Ecologia, economia e trabalho no ciclo da vida”, que será promovida mensalmente pelo CEPAT, em parceria com diversos parceiros: Instituto Humanitas Unisinos – IHUNúcleo de Direitos Humanos da PUCPRConselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLBComunidades de Vida Cristã – CVX e Observatório Nacional Luciano Mendes de Almeida – OLMA.

José Eustáquio Diniz Alves iniciou sua apresentação citando o protagonismo juvenil de Greta Thunberg, fonte de inspiração na luta contra a crise climática, que se tornou símbolo do engajamento das novas gerações nesta luta emergencial. Em determinado momento do debate, também destacou a importância do lançamento da encíclica Laudato Si’, em 2015, que surge em um momento essencial do debate mundial sobre a problemática ecológica.

Também fez menção ao livro de David Wallace-Wells, “A terra inabitável: uma história do futuro”, que apresenta, sem rodeios, um cenário horripilante das consequências da mudança climática, caso não haja uma guinada em nosso modelo de produção e consumo, associado ao crescimento econômico e populacional.

Em contraposição aos negacionistas de plantão, José Eustáquio apresentou análises e estudos estatísticos, valorizando as mais recentes pesquisas científicas, dialogando com as ciências humanas. Entre os temas abordados, destacou o aumento de CO2 e da temperatura global no longo prazo, o crescimento demoeconômico global, a pegada ecológica, a biocapacidade e o déficit ambiental, a perda da biodiversidade, entre outros.

Com um posicionamento muito claro, sem deixar de mencionar que os países mais ricos são os maiores poluidores do planeta, reconheceu que o déficit ambiental é um problema planetário, já que mesmo em regiões mais pobres, como na África, também é preciso, em aliança com outras nações, implementar medidas de enfrentamento ao desastre ecológico. Aliás, em resposta ao questionamento de uma das participantes, também reconheceu que é necessário combater a desigualdade, mas que a resposta à crise ecológica vai além, já que deve mudar as bases socioeconômicas em que a sociedades se sustentam, daí a necessidade de avançar em propostas como o decrescimento.

Focado nas consequências da emergência climática e ambiental, a partir dos diversos gráficos que apresentou, elencou uma série de problemas que já estão presentes no planeta e que poderão se intensificar: perda de biodiversidade e ecocídio, inseticídio, ondas letais de calor, incêndios e queimadas, furacões e inundações, degelo do ÁrticoAntártidaGroenlândia e glaciares, elevação do nível do mar e naufrágio dos deltas dos rios, desmatamento e desertificação, erosão dos solos, acidificação dos oceanos, crise hídrica, insegurança alimentar e pandemias, entre outros.

Por fim, José Eustáquio Diniz Alves se mostrou muito preocupado com as limitações no avanço da agenda ambiental no mundo, principalmente com a emergência de lideranças negacionistas como Trump e Bolsonaro. Mas também não deixou de apontar que a questão fica ainda mais complicada quando se observa que mesmo em governos alinhados à esquerda, como, por exemplo, já tivemos no Brasil e na América Latina, a agenda ambiental ficou em segundo plano em comparação às prioridades de Governo, sempre orientadas ao crescimento econômico, com a contumaz voracidade em extrair recursos naturais.

Entre as alternativas que apresentou para evitar o colapso sistêmico global, destacou:

• Reduzir drasticamente o consumo de combustíveis fósseis e fazer a transição energética para fontes renováveis e a transição na indústria automobilística para carros elétricos e compartilhados;

• Investir no transporte coletivo;

• Decrescer os gastos militares e reduzir a produção e uso de instrumentos de guerra;

• Decrescer a produção e o consumo de fertilizantes químicos e agrotóxicos e aumentar os investimentos na agricultura orgânica, na permacultura, etc;

• Decrescer as áreas de pastagem e a produção e o consumo de proteína animal, promovendo a transição para uma dieta vegetariana ou vegana;

• Aumentar as áreas de florestas, de vegetação nativa e a biodiversidade;

• Decrescer as desigualdades, o consumo conspícuo, os bens de luxo, etc;

• Garantir os direitos sexuais e reprodutivos e taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição;

• Garantir o decrescimento demoeconômico (reduzindo a Pegada Ecológica), com qualidade de vida humana e ambiental.

Abaixo, é possível acompanhar toda a exposição de José Eustáquio Diniz Alves, com a riqueza de todos os dados apresentados e o chamado a uma tomada de posição de todos, enquanto ainda há tempo, embora, conforme reconheceu, “a coisa é complicada”.

 

Eis a íntegra da exposição e debate.

 

Leia mais

Monday 29 June 2020

Sars-CoV-2, suinocultura intensiva e a agricultura industrializada

https://diplomatique.org.br/sars-cov-2-suinocultura-intensiva-e-a-agricultura-industrializada/

 

TECENDO UMA HIPÓTESE

Sars-CoV-2, suinocultura intensiva e a agricultura industrializada

Acervo Online | Brasil

por Immo Fiebrig, Larissa Bombardi e Pablo Nepomuceno

26 de Maio de 2020

 

De <https://diplomatique.org.br/sars-cov-2-suinocultura-intensiva-e-a-agricultura-industrializada/


O surgimento da Sars-CoV-2 está possivelmente relacionado a morcegos. Entretanto, parece controverso como o vírus evoluiu de morcegos para se tornar infeccioso para humanos. A discussão atual é baseada em alguns fatos em torno da agricultura industrializada, tais como a criação intensiva de porcos na cidade de Wuhan e seus arredores

O aumento da produção de alimentos após a Segunda Guerra Mundial esteve atrelado à intensificação da agricultura, e, em sua esteira, à criação de animais em escala industrial, principalmente carnes bovina, suína e de frango, como, supostamente, um meio de produção de carne a preços acessíveis. À época, as tecnologias a ela relacionadas foram amplamente desenvolvidas nos Estados Unidos e posteriormente transferidas para muitas outras partes do mundo, incluindo Europa, Brasil e China. Se esse tipo de produção em massa de carne é realmente chamado de “criação intensiva de animais” ou de “criação em massa de animais”, isso não é realmente relevante. A essência desse tipo de produção de carne é a falta de ética e a ausência de compaixão pelas necessidades específicas dessas espécies de animais, que são criados em espaços confinados e contaminados em enormes galpões. Assim, os animais se tornam alta e cronicamente estressados e, portanto, imunodeprimidos, mais suscetíveis à propagação epidêmica de doenças infecciosas. Além disso, seus excrementos apresentam riscos prejudiciais ao meio ambiente. 

Por causa de uma variedade de restrições, incluindo viagens e oportunidades de pesquisa, os autores meramente especulam sobre a evolução da Covid-19 em Wuhan (China) ou nos arredores e, portanto, não estão propondo que tenha havido uma conexão direta com qualquer suposta “engenharia artificial” de quaisquer laboratórios de pesquisa com protocolos também supostamente “contestáveis”.

A primeira evidência espacial, por nós apresentada, aponta para uma possível correlação entre os surtos da Covid-19 em humanos em locais de criação intensiva de porcos no estado de Santa Catarina, no sul do Brasil. Um ciclo infeccioso via Sars-CoV-2 pode estar sendo criado por meio da entrada de excremento não tratado em corpos de água e, portanto, possivelmente, infectando a água potável consumida por seres humanos. Um outro meio de infecção de porcos a humanos também pode estar ocorrendo por meio dos funcionários que trabalham nos estabelecimentos rurais e/ou nos frigoríficos. Antes de passarmos aos fatos, apresentamos uma breve ficção a respeito da evolução do vírus.

O surgimento da Sars-CoV-2 está relacionado com os morcegos. Entretanto, parece controverso como o vírus evoluiu de morcegos para se tornar infeccioso para humanos. (Gerd Altmann/Pixabay)

O surgimento da Sars-CoV-2 está relacionado com os morcegos. Entretanto, parece controverso como o vírus evoluiu de morcegos para se tornar infeccioso para humanos. (Gerd Altmann/Pixabay)

Pingue-Pongue-Pangue! Sars-CoV-2, uma bola espetada como link para um trio enjoado

Donald Trump está apontando seu dedo para a China. Em sua busca narcisista pela reeleição, ele acusa a República Popular de ser culpada pelo lançamento de uma pandemia mortal. As pessoas que acreditam em seu tiro certeiro, entretanto, devem não estar entendendo o panorama geral. Em apenas alguns meses, o coronavírus provocou uma avalanche na saúde e economia globais.

Serviços de inteligência norte-americanos supostamente se engajaram em provar que o frenético vírus havia sido desenvolvido de morcegos infectados em um laboratório de pesquisa em Wuhan. E, conforme argumentado, o material viral escapou do laboratório por causa de ignorância e negligência. Outros ainda acreditam que a origem deve ser rastreada até os exóticos mercados úmidos de Wuhan que vendem pangolins enjaulados ou morcegos fritos em espetos, entre outras específicas carnes da vida selvagem. A propaganda tanto nos Estados Unidos como na China é provavelmente muito boa em identificar bodes-expiatórios e em detonar granadas de fumaça. Entretanto, evidências devem surgir no tempo devido – assim que a fumaça baixar.

Para definir a cena: ao apontar seu dedo indicador para Xi Jinping e burocratas de Pequim, Trump deve, inconscientemente – com outros três dedos  – estar apontando de volta para si mesmo e seus Estados Unidos. Um: agroquímicos; ou seja, agrotóxicos e fertilizantes sintéticos, mas também antibióticos e outros supostos aditivos alimentares para animais. Dois: Organismos Geneticamente Modificados, como soja. Três: criação intensiva de animais em massa, por exemplo: porco.

Esta é uma tentativa de jogar um pouco de luz na escuridão ao ligar os pontos. A verdade deve, de fato, conter uma parte de Wuhan, um pouco de laboratório e uma essência de morcego, mas organizadas de um modo diferente. De uma visão humilde como cientista natural, não devemos olhar para um único ou pouco relevante evento. Devemos pensar em sistemas, em dinâmica populacional e em processos evolutivos. O que isso pode significar? Atenção! Vamos mudar para um enredo distópico, semelhante ao famoso romance Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.

Ao juntar os pontos de um enredo macabro, a estória se desdobra da seguinte forma: Hubei, como província na China central, e Wuhan, como sua capital, são conhecidas por sua imensa produção em massa de carne de porco industrial. Por exemplo, o site Globalmeatnews.com lista catorze grandes empresas de criação que têm produção anual conjunta de 1,5 milhão de porcos apenas em Hubei. Supondo que Wuhan é o local onde milhões de porcos são criados em enormes galpões, isso significa que pelo menos milhares de animais estão sendo mantidos como prisioneiros em espaços confinados por unidade de produção o tempo inteiro.

Essas criaturas, literalmente reduzidas a máquinas de produção de carne de porco, sofrem como nós sofreríamos em tais condições. Elas ficam ansiosas, entediadas, imensamente estressadas e, como tal, são alimentadas para crescer até serem mortas. Durante seu tempo de aprisionamento, seus sistemas imunológicos se enfraquecem significativamente. Para sobreviver, elas precisam receber antibióticos, analgésicos e outras drogas, além de hormônios, que sequer sabemos quais. Então, elas são forçosamente levadas ao matadouro, gordas e praticamente mortas. Mas até isso acontecer, o próximo participante entra em cena: morcegos ou “microquirópteros”, em termos científicos.

Expulsos de seus habitats em declínio em volta da crescente metrópole de Wuhan, os morcegos ficam desesperados para encontrar alimento e abrigo. Não vai demorar muito para que encontrem ambos… nas prósperas fábricas de carne suína em Wuhan. Sob um teto, a salvo de seus predadores usuais e em condições climáticas adequadas, os morcegos estão livres para compartilhar a dieta rica em proteínas dos porcos enclausurados. E, assim, os morcegos se proliferam. Eles agem à noite, de modo que suas atividades de alimentação possam não parecer tão perturbadoras enquanto eles dormem durante o dia, silenciosamente pendurados nos tetos dos novos habitats.

Morcegos são portadores naturais do coronavírus – entre muitos outros vírus. Na narrativa atual, isto é tido como um fato provado. E os morcegos se ecolocalizam, ou seja, eles “veem” pelo som. Alguns o fazem ao contrair sua caixa de voz (laringe), outros estalam suas línguas, propagando som – e provavelmente vírus – através da boca e das narinas ao voarem. Imaginem o seguinte: eles estão no ar, flutuando livremente por volta dos galpões de suínos. Eles estão constantemente se ecolocalizando em um ambiente quente, úmido e abafado para evitar a colisão com outros morcegos no espaço aéreo comum enquanto se localizam no ambiente confinado. Ao fazê-lo, eles podem estar assiduamente pulverizando o coronavírus sobre mamíferos imunodeprimidos e indefesos, repetidamente. 

Apenas um ano atrás, em abril de 2019, a China relatou um vírus intratável dizimando a produção de carne de porco, supostamente causada por infecção viral da febre suína africana. Mas e se, ao invés disso, possa ter surgido uma estirpe emergente de coronavírus, que tenha mutado e se tornado cada vez mais infeccioso para animais confinados imunodeprimidos?

Para resumir uma hipótese: as fábricas de suínos de Wuhan eram os verdadeiros laboratórios de um enorme experimento epidemiológico – descontrolado, é claro. Um pingue-pongue que prosseguiu por meses ou até anos, despercebido e involuntariamente, em uma relação amigável entre morcegos e porcos a constituir o enredo. Um jogo de pingue-pongue que ocorrendo infinitas vezes até que um coronavírus similar ao SARS-CoV-2 evoluísse até se tornar adaptado com sucesso, ou seja, altamente virulento dentro de uma nova espécie.

A partir desta hipótese do pingue-pongue entre morcegos e porcos, a narrativa entre suínos e seres humanos pode ser desenvolvida em várias direções. Porcos e humanos têm sistemas digestivos semelhantes. A bioquímica das mucosas dos porcos, os revestimentos protetores de, por exemplo, garganta, nariz, brônquios, pulmões ou intestinos, são muito parecidos com os dos humanos. Com o tecido da mucosa sendo o portão de entrada habitual para “sequestrar” o próximo corpo, o corona pode ter encontrado as condições semelhantes necessárias no homem.

Combinados estes elementos, porcos doentes podem ter passado o Sars-CoV-2, ou sua estirpe precursora, para trabalhadores de granjas que, por sua vez, o transmitiram para sua comunidade local familiar. Entretanto, é muito mais provável que a carne de animais doentes tenha entrado na cadeia alimentar e infectado muito mais pessoas. Talvez aqueles porcos que morreram antes de chegar ao matadouro tenham sido vendidos ilegalmente no mercado negro, onde qualquer coisa seria possível. Em outro cenário, as populações de morcegos se alimentando da comida dos porcos podem, como uma peste, ficar fora de controle. Os funcionários da fazenda organizariam caçadas a morcegos regularmente para manter algum controle sobre as populações. A recompensa é recebida. E, os morcegos portadores da estirpe do coronavírus – perigosa para os porcos – acabam indo parar fritos no espeto do mercado úmido de Wuhan, infectando humanos antes de chegar ao óleo quente.

E para não esquecer, também há um fluxo massivo de fezes dos porcos, provavelmente encharcando o ambiente de modo mais ou menos descontrolado. Isso pode estar contaminando a água potável de humanos e porcos da mesma forma. Seja como for, pingue-pongue-pangue, nasce uma epidemia!

Vamos agora passar da narrativa acima, que é bem mais parecida com ficção científica, para os princípios da agricultura industrializada e algumas possíveis evidências para mapear a disseminação da Covid-19 em Santa Catarina entre humanos, por um lado, e a localização da suinocultura, por outro lado. A descrição fictícia, entretanto, pode de fato ser mais real do que gostaríamos de imaginar.

Os triunfos da Revolução Verde

A agricultura industrial moderna tem mais a ver com a produção em massa e comércio de commodities e menos a ver com o fornecimento de alimentos não tóxicos, saudáveis e nutritivos para a população mundial.

Numa tentativa de entender a lógica da criação intensiva de porcos e outros animais, é necessário explicar o sistema da Revolução Verde, um termo dado ao processo de “tecnificação” da agricultura e que inclui a criação de animais. Em seu processo de tecnificação, ela emprega insumos sintéticos, ou seja, matérias-primas químicas como fertilizantes, agrotóxicos, antibióticos e hormônios, além de ração industrializada, sementes modificadas e máquinas agrícolas de alta tecnologia, entre outras coisas. A Revolução Verde estabeleceu-se no período após a Segunda Guerra Mundial e, de um ponto de vista econômico, industrializou atividades agrícolas e pastoris que antes eram predominantemente conduzidas por camponeses e/ou em pequena escala. O objetivo era tornar este setor economicamente viável em larga escala, mais produtivo, com produção de alimentos padronizada e em massa e, também, sob este argumento, baratear o preço de alimentos, dentre eles, o da carne.

Este modelo de industrialização da agricultura pressupõe: a padronização de sementes, a padronização e o controle do ciclo vegetativo das plantas, a padronização das colheitas, o “melhoramento genético” de plantas e animais, o controle remoto de ph, da umidade e dos nutrientes do solo, o controle químico de “pragas”, o plantio e a colheita mecânicos, a padronização e controle do crescimento dos animais comestíveis, bem como, sempre que possível, a diminuição da duração desse ciclo produtivo seja para plantas, seja para animais.

Essa industrialização da agricultura é um fenômeno global. Tem uma dimensão mundial, assim como a própria economia. As empresas multinacionais que produzem agrotóxicos necessários para essas formas artificiais de agricultura e criatório de animais estão cada vez mais se organizando de uma maneira oligopolista. A concentração de capital é alcançada por meio de fusões e aquisições nas quais, por exemplo, as cinco maiores empresas do setor controlam, atualmente, cerca de 70% das vendas mundiais de agrotóxicos.

Tais empresas estão sediadas nos países de economia central: Estados Unidos e União Europeia. Entretanto, parte significativa de suas vendas tem como destino os países periféricos, particularmente os da América Latina, com extensas monoculturas de soja e milho, por exemplo, que servirão de base para a produção de ração para os animais confinados.

Atualmente não existe apenas um comércio mundial de cereais e carnes, mas ambos os grupos de produtos também são negociados nas bolsas de valores, mudando seu caráter de alimento humano para um item de especulação. Como tal, temos um movimento combinado e orquestrado: por um lado, a indústria química “sustenta” a agricultura em escala industrial; e por outro, as bolsas de valores permitem o comércio internacional de culturas alimentares, convertendo-as em commodities.

Bovinos, frangos e porcos, como commodities, devem cumprir os seguintes requisitos: suas carnes têm de ser armazenadas para não perderem suas características nutricionais e devem ser internacionalmente padronizadas para, sendo assim, poderem ser comercializadas no mercado de ações.

A transformação de animais em mera mercadoria, sem qualquer compaixão por seu destino, foi alcançada por esse processo industrial de criação. Como dito anteriormente, tais animais são criados de maneira confinada, inadequada para qualquer espécie, sem acesso ao solo, à luz solar ou a um local onde possam circular livremente. Eles são amontoados em pequenos cubículos que os impedem de exercer seus hábitos mais básicos: pastar, ciscar e chafurdar.

A captura da globalização da China ao Brasil

Do suposto triângulo mortal de Wuhan e da criação global de commodities para o mercado de ações, passaremos para a realidade diária do Brasil, onde imensas quantidades de florestas são destruídas para cultivar monoculturas de soja e milho.

A China é líder mundial na produção de suínos, com cerca de 310 milhões de porcos, mais do que o dobro do estoque da União Europeia, que ocupa o segundo lugar no ranking, com cerca de 148 milhões de porcos. Os Estados Unidos vêm no terceiro lugar, com cerca de 78 milhões de porcos, seguidos do Brasil, em quarto lugar, com 37 milhões. Hoje, o Brasil é o maior exportador mundial de carne bovina e de frango, além de ser o quatro maior exportador de carne suína.

No Brasil, a produção de porcos se concentra na região Sul, que abriga cerca de 66% da produção nacional. Santa Catarina é o estado que mais produz carne suína e é responsável por mais de 25% do total de produção de suínos no Brasil. Mais da metade da carne de porco exportada pelo Brasil vem de Santa Catarina, que produziu mais de 1 milhão de toneladas desta carne em 2018.

A criação de porcos no Brasil é majoritariamente intensiva: mais de 70% dos animais são criados de forma confinada. Estes alimentam-se basicamente de ração produzida com cereais: milho e soja. Calcula-se que, para produzir um porco com cerca de 100 kg, são necessários 345 kg de ração (somando o consumo de seus progenitores).

Este modelo de produção tem ao menos dois impactos ambientais bastante evidentes e severos: um à montante da produção e outro à jusante.

À montante da produção de porcos – para que eles possam ser alimentados – têm-se vastas áreas monocultoras de soja e milho que avançam sobre a Amazônia e são responsáveis não só pelo desmatamento e queimada, como também, pela contaminação dessa área com agrotóxicos. O Brasil tem hoje o equivalente ao território da Alemanha cultivado com soja (mais de 90% dela transgênica), mais de 30 milhões de hectares.

Não é mera coincidência que a China, que é responsável por mais de 50% da produção mundial de porcos, é o principal mercado consumidor da soja produzida no Brasil.

Evidências da indústria suína catarinense

À jusante da criação de porcos há uma contaminação ambiental muito grave. Já na década de 1980 estimava-se que cerca de 85% da água consumida na zona rural do Oeste de Santa Catarina, hotspot da criação de porcos no Brasil, apresentava qualidade inaceitável. 

Atualmente, nessa região, apenas 15% dos dejetos dos porcos seguem protocolos adequados de armazenamento e tratamento.

Além desses graves impactos socioambientais, decorrentes da criação de porcos confinados, possivelmente estejamos diante de um novo problema relacionado a esse modelo.

A crueldade com a qual esses animais objetificados são criados, juntamente com ração geneticamente modificada, o uso concomitante de antibióticos e suas condições gerais ambientais insalubres, os tornam imunodeprimidos, conforme já descrito. Eles são receptáculos perfeitos para o desenvolvimento de vírus como o Sars-Cov-2.

Nos últimos dias, a imprensa informou que há um número imenso de trabalhadores de matadouros e frigoríficos infectados com Sars-Cov-2. Tais relatos foram descritos para a Alemanha, Estados Unidos e, mais recentemente, o Brasil – mas, provavelmente, esses não são os únicos países afetados.

Mapeando surtos de Covid-19 versus Criação intensiva de suínos

Analisando espacialmente a distribuição de pessoas infectadas pela Covid-19 no Brasil, particularmente no estado de Santa Catarina (Mapa 1) – o estado que mais produz carne suína no país – surpreendentemente encontramos suporte para a hipótese desenvolvida acima.

Mapa 1 – Covid-19 – Pessoas infectadas em Santa Catarina – Brasil

 

Há essencialmente duas áreas principais ou hotspots de infecções por coronavírus nesse estado. Um é ao longo da costa, o que já seria esperado, pois é na porção litorânea onde estão localizadas as grandes cidades, o setor industrial está concentrado e a densidade demográfica é maior. Entretanto, há uma outra área afetada no Oeste do estado, justamente aquela que visamos focar neste artigo.

Comparando os municípios de Santa Catarina com as maiores taxas de infecção por Covid-19 (Mapa 1) com aqueles municípios onde há alta densidade de criação de suínos (mapas 2 e 3), verificamos que há uma correlação espacial entre eles.

O Mapa 1 foi gerado a partir do processamento dos dados de quantidades de pessoas infectadas por Sars-CoV-2 (Covid-19), disponibilizados pela Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina (SESSC, 2020). No caso dos mapas 2 e 3 foram utilizados os dados de produção agropecuária por município, provenientes do último censo agropecuário brasileiro realizado em 2017 e disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2017).

Esses dados foram importados, processados, classificados e representados na forma de mapas temáticos com o uso de recursos disponíveis no software do Sistema de Informações Geográficas (SIG) QGIS (Quantun GIS 2.18.7), de acordo com os princípios da cartografia temática sistematizados por Bertin (1967), Salitchev (1979) e Simielli (2007).

A correlação espacial nessa região é surpreendente: existe uma sobreposição e/ou proximidade entre os municípios onde existe um grande número de porcos por estabelecimento rural (Mapa 2) e, também, grande número de porcos por município (Mapa 3) em relação àqueles municípios onde há um maior número de indivíduos infectados com Covid-19 (Mapa 1).

 

Mapa 2 – Quantidade de porcos por estabelecimento rural – Santa Catarina – Brasil

 

Mapa 3 – Quantidade de porcos por município – Santa Catarina – Brasil