Monday 27 March 2023

Inteligência Artificial como infraestrutura financeira. Entrevista com Edemilson Paraná

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Inteligência Artificial como infraestrutura financeira. Entrevista com Edemilson Paraná

Edemilson Paraná é professor de sociologia econômica e sociologia do trabalho da Universidade Federal do Ceará e autor dos livros A finança digitalizada: capitalismo financeiro e Revolução informacional e Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico.

Nesta segunda-feira, ele ministrará uma conferência na Universidade de Toronto sobre sua nova pesquisa que envolve inteligência artificial como infraestrutura financeira. Nesta entrevista com Rafael Grohmann, ele explica o argumento da pesquisa, como se relaciona a agenda mais ampla de estudos críticos sobre IA, a noção de infraestrutura e outros debates sobre tecnologia a partir de uma perspectiva marxista.

A entrevista com Edemilson Paraná é de Rafael Grohmann, publicada por DigiLabour, 13-03-2023.

Eis a entrevista.

O que significa pensar inteligência artificial como uma infraestrutura financeira?

A ideia é entender que a penetração da inteligência artificial nos mercados financeiros, que vem ocorrendo com mais velocidade nos últimos anos, não é algo que acontece da noite para o dia, mas tem a ver com um conjunto de transformações que envolvem distintas escalas e que possibilitam que a IA possa ser implementada deste modo nos mercados contemporaneamente. De que modo a IA é implementada? Ela é utilizada para avaliação de risco, avaliação de crédito, negociação em tempo real de ativos e papéis financeiros os mais diversos, administração e gestão dos mercados. A IA está se espalhando muito rapidamente pelas finanças.

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As dimensões em que ela é utilizada de maneira mais intensiva tem a ver basicamente com três aspectos: com credit score e ranqueamento de acesso ao crédito no caso dos serviços bancários; com a contabilidade e gestão de risco nas empresas financeiras; e, por fim, com a administração de portfólios de investimento e negociação no mercado de capitais. Há grandes fundos que se utilizam de negociações algorítmicas e inteligência artificial e que vendem o acesso a esses produtos para seus clientes e investidores. Há fundos enormes como BlackRock e Bridgewater, que estão utilizando inteligência artificial em escala crescente.

Então, é preciso, primeiro, entender em qual escala isso se dá. Há uma alteração de grande monta do mercado financeiro nas últimas décadas que praticamente faz com que o mercado se confunda com uma infraestrutura tecnológica, com um sistema sociotécnico que serve de base a outras interações. Discuto nos meus trabalhos há um bom tempo a ideia que a gente vive num contexto marcado por aquilo que defini como “finança digitalizada”. Não é possível mais pensar as finanças fora da dinâmica informacional tecnológica. No passo em que esses mercados são eletronificados e que as negociações por meio das tecnologias da informação e da comunicação se tornam ubíquas, contando com o avanço da capacidade de processamento computacional, esses modelos se tornam mais refinados.

Na medida em que todas essas camadas vão se sobrepondo umas às outras é que você pode, na superfície, ter a “inteligência”, a camada “inteligente”, da inteligência artificial. Para isso, é preciso, então, antes montar uma dimensão enorme de infraestruturas sobrepostas para que essa inteligência artificial possa ganhar o domínio nesses campos em que ganhou hoje. Isso tem uma uma implicação importante, que é a de entender que esse jogo de escalas é fundamental para acessarmos o que que é inteligência artificial no mercado financeiro hoje.

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Tem uma aplicação “micro” da inteligência artificial em serviços específicos, alguns produtos financeiros específicos, e tem um desdobramento sistêmico macro da inteligência artificial – menos compreendido – no sistema financeiro. Ou seja, a inteligência artificial pode possibilitar ganhos, retornos, lucros e eficiência no sentido econômico mais estrito no nível micro para alguns agentes, sobretudo, os agentes que estão mais bem posicionados na infraestrutura econômica e tecnológica, sociotécnica do mercado financeiro. Mas no nível macro, você tem um aumento do risco, da imprevisibilidade e quiçá de ineficiência. Então, essa contradição precisa ser melhor explorada e não está sendo devidamente endereçada no meu modo de ver. O aumento de “eficiência” no nível micro, com aumento de risco e complexidade, em muitos casos significa ineficiência no nível macro, com aumento de concentração do poder e do controle informacional nos mercados. É isso que eu tento explorar ao tratar a inteligência artificial como uma infraestrutura financeira.

Hoje a IA vai se tornando cada vez mais incontornável. Para você entrar no mercado, seja um pequeno investidor ou um grande investidor, você precisa acessar esses recursos cada vez mais. Mas essa diferença de escala, tanto dos agentes que estão no mercado, quanto do próprio funcionamento sociotécnico, é fundamental para entender isso. É o que se chama de falácia da composição, algo muito explorado pelo Keynes na economia. Muitas vezes as pessoas que estão olhando para a tecnologia no mercado não enxergam muito bem o que de fundamental está acontecendo porque as análises sempre ficam no nível micro e descritivo.

O que é a falácia da composição? A ideia de que o todo não é a mera soma quantitativa das partes. O todo tem propriedades emergentes que são qualitativamente distintas da soma das partes. É analago, para nos valermos de outro exemplo, ao postulado funcionalista básico da sociologia segundo Durkheim. O social é algo diferente da mera soma das interações individuais, pois guarda propriedades em si mesmo, próprias. E o que eu estou querendo demonstrar com esse trabalho é que isso vale também para aplicação da IA no mercado financeiro. Ela está produzindo efeitos que são preocupantes. E isso precisa ser avaliado à luz da contradição entre essas duas dimensões.

Qual é o seu argumento central?

Minha linha argumentativa está centrada na ideia de que, neste caso, maior eficiência no nível micro não necessariamente significa maior “eficiência” no nível macro, antes o contrário. A competição acirrada no mercado força a adoção de tecnologias no campo da informação e comunicação. As bases sociotécnicas e infraestruturais do funcionamento do mercado – e os próprios mercados financeiros – são historicamente muito sensíveis à informação. Talvez o mercado financeiro seja um dos setores econômicos mais intensivos em informação.

Então essas são tecnologias, dinâmicas e setores que tem esse aspecto como estratégico. Por isso é que o mercado financeiro tende a antecipar os outros setores da economia na adoção dessas tecnologias de ponta. Isso é uma coisa que eu venho desenvolvendo já há um bom tempo. A gente fala contemporaneamente em algoritmos, no Vale do Silício, nas empresas de comunicação e de interação social, mas na verdade os algoritmos estão sendo aplicados no mercado financeiro desde a década de 1980. A gente fala de redes neurais, machine learning e deep learning para os produtos informacionais e educacionais contemporâneos, mas eles já estão sendo aplicados no mercado financeiro antes mesmo de terem se tornado algo presente no cotidiano das nossas interações sociais.

Essas tecnologias de informação e comunicação são, então, a base infraestrutural a partir das quais funcionam os mercados já há algum tempo. Eu discuti isso no meu primeiro livro, Finança Digitalizada. São tecnologias que antecipam e comprimem os fluxos de espaço tempo, possibilitam ao mercado ampliar a base e a velocidade das negociações financeiras e isso produz uma ampliação da complexidade e da concentração, com aumento dos riscos e desigualdades. No meu primeiro livro, eu chamei isso de espiral de complexidade. A IA entra agora nessa história como uma nova infraestrutura financeira, compondo esse complexo sociotecnico, que tem também, é claro, seus aspectos políticos, institucionais. Os grandes agentes do mercado financeiro buscam adotá-la como uma tecnologia de propósito geral, para ser cada vez mais utilizada como base de todos os demais serviços financeiros.

E quais são os imaginários envolvidos na inteligência artificial?

Os agentes antevêem maior controle, maior transparência, maior previsibilidade, maior produtividade, maior lucratividade. Os relatórios de alguns reguladores e de grandes empresas e consultorias estão basicamente louvando essa transformação da IA em infraestrutura, com tudo de bom que ela pode trazer para o mercado. Eu apresento a ideia de que a questão da escala complexifica um pouco esse imaginário sociotécnico porque nele não estão presentes as ideias de poder, controle, atravessamentos políticos na governança dessas infraestruturas econômicas e técnicas. Neste ponto, entram os problemas do desconhecimento quanto às lógicas de causalidade no interior dos modelos, da falácia da composição, da complexidade, da volatilidade, da incerteza, em suma, que a inteligência artificial não só não é capaz de conter, como, ao contrário, pode fazer ampliar.

O argumento, então, é de que a inteligência artificial muitas vezes faz o oposto do que esses agentes estão dizendo. As tensões entre o micro e o macro, entre o material e o ideacional, entre o técnico e o político, não são novas, mas são fundamentais para entender a disseminação da inteligência artificial como infraestrutura financeira. A inteligência artificial ampliada no seu uso eventual como tecnologia de uso geral nos mercados financeiros tende a intensificar ao invés de controlar o risco e a opacidade. Isso pode trazer mais problemas do que esses agentes estão sendo capazes de ver.

Como você define infraestrutura?

Eu estou entendendo a infraestrutura num sentido sociológico mais ampliado. Não são apenas coisas. Não são só amontoados de coisas que compõem a operacionalidade técnica de funcionamento de certos processos informacionais, mas sim uma composição complexa, escalar, que envolve recursos naturais, trabalho e – evidentemente – a materialidade dos objetos que são mobilizados no funcionamento sociotécnico e institucional dessas estruturas. Desde aparatos regulatórios e arranjos institucionais a cabos submarinos compõem as infraestruturas funcionais no mercado financeiro. E a inteligência artificial cada vez mais passa a fazer parte desse complexo infraestrutural de funcionamento do mercado.

Ou seja, a base cotidiana na qual e a partir da qual a IA opera muitas vezes entra na dinâmica de uma maneira invisível, basilar, sem que a gente consiga entender como a inter-relação dessas camadas diversas se dá de maneira complexa para produzir os mercados que a gente tem hoje, com todas essas tensões. É como se a gente, ao olhar para as infraestruturas, tentasse acessar esse “grande sistema global de maquinaria”, para lembrar um termo do Marx, resgatado pela minha colega Esther Majerowicz. Um “sistema de maquinaria” que envolve, evidentemente, relações de trabalho, exploração, coleta, utilização e armazenamento de dados, conflitos, tensões e até mesmo ideias e narrativas.

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Porque a maneira como você cria formas de visualizar, explicar e apresentar o mercado para a sociedade, também cria, na prática, esses mercados. Como os STS (estudos de ciência e tecnologia), a sociologia dos mercados financeiros e da tecnologia já vem tentando explicar há algumas décadas, o modo como esses mercados são perpassados por performatividade, discursos e imaginários, isso tem uma existência material. E essa existência material se conforma e condiciona a maneira de como os mercados funcionam. Quando eu estou falando de infraestrutura e pensando a IA como uma infraestrutura, estou tentando conectar a inteligência artificial a uma forma mais integrada, mais sistêmica de pensar os mercados.

Nos últimos anos, houve uma proliferação de estudos críticos sobre inteligência artificial, mas o mercado financeiro ainda é um ponto cego nesta discussão. Por que será?

Eu acho que esse gap ocorre porque as finanças ainda aparecem como algo muito do domínio puramente econômico dos processos sociais. Por mais que a sociologia da ciência e da tecnologia, os estudos sociais da tecnologia tenham se esforçado nas últimas décadas, particularmente a partir dos anos 2000, para demonstrar o caráter social, construído, performático e até narrativo dos mercados, nos estudos críticos de inteligência artificial ainda é raro um aporte sobre essa dinâmica tão importante para o mundo contemporâneo, para o funcionamento da vida social contemporânea, que é a lógica das finanças e da financeirização. Os estudos de financeirização, os estudos de plataformas e os estudos críticos da tecnologia não estão conversando muito bem, me parece. Tentar juntar esses mundos e preencher esse gap é um dos objetivos do meu trabalho.

Então, de um lado, há uma ideia de que isso ainda é uma coisa do domínio puramente econômico, dos economistas, e não algo do âmbito das ciências sociais. Ou seja, a gente faz a crítica do poder, mas para fazer isso, pegamos sistemas sociotécnicos específicos, destrinchamos e mostramos como as relações de exploração e dominação ocorrem ali, naquele contexto. O problema das finanças é que, por mais que sejam marcadas por importantes arranjos locais particulares, elas são complexos articulados de maneira global e isso cria uma uma dificuldade metodológica para acessar algumas das dinâmicas de poder, de hierarquia, de desigualdade que ocorre no sistema financeiro. Então, de um lado, há uma dificuldade disciplinar, e, de outro, uma dificuldade metodológica.

No meu modo de ver, para que a gente acesse criticamente o mercado financeiro, é fundamental que a gente olhe a partir dessa dimensão interrelacionada das escalas, ou seja, sistêmica e estrutural. É preciso pensar nas causalidades sistêmicas que se dão nesse jogo complexo que ocorre nos mercados a partir da tensão entre o micro e o macro. Isso é fundamental para compreender a inteligência artificial como infraestrutura financeira. Quer ver onde esse exemplo ocorre? Na lógica do risco sistêmico. Como é que a gente analisa o risco que a IA e a ampliação do uso da IA pode trazer para os mercados financeiros? Eu preciso pensar isso de maneira combinada e coordenada com o uso da IA em vários mercados ao mesmo tempo, por diferentes qualidades de agentes com diferentes estratégias de IA interagindo umas com as outras.

Esse é o modus operandi do mercado financeiro contemporaneamente. Ele ocorre em tempo real de maneira global e interconectada. Se eu pensar tão somente como ele ocorre em uma praça financeira específica ou em um produto específico, haverá dificuldade de entender essas contradições que eu estou tentando endereçar. É claro que há problemas de vieses e caixas pretas que a literatura também vem endereçando há um bom tempo. Mas é preciso, no meu modo de ver, entender problemas como a capacidade da inteligência artificial ser pró-cíclica, ou seja, o comportamento de uma IA tende a ser reforçado pelo comportamento de outra IA. Isso produz movimentos de mercado que, no agregado, produzem impactos, em termos de risco, que são sérios, uma possível ampliação do risco sistêmico. Eu acho que isso é uma questão fundamental para a gente analisar, ainda que tenha estado até aqui um pouco fora do escopo desse campo de estudos.

Outro exemplo importante é o problema da explicabilidade e da causalidade dos modelos de IA. Na IA nos mercados financeiros, isso é muito sério, porque você tem uma gestão de portfólio, de compra e venda de ativos para ter uma certa performance financeira e dar um certo retorno. Você joga lá o Deep Learning, que é o modelo dominante também nas finanças, e ele te dá lá uma taxa de precisão, um accuracy excelente do ponto de vista do retorno financeiro que você pode ter naquela estratégia.

Só que você simplesmente não sabe concretamente exatamente o que produziu aquele resultado. Isso não é um detalhe. Isso faz toda a diferença, por exemplo, para coordenação dos mercados, para regulação dos mercados, para o acompanhamento das lógicas de risco e até mesmo para o próprio investidor. Pode ser que haja uma causa oculta ali atrás funcionando para que ele tenha aquela rentabilidade que pode ser extremamente obscura do ponto de vista do amadurecimento do portfólio dele, que vai numa direção totalmente diferente se condições mínimas mudarem.

Essa falta de explicabilidade dos modelos, essas dinâmicas de caixas pretas, são fundamentais para a gente entender como as coisas funcionam no nível operacional, mas elas têm implicações sistêmicas extremamente relevantes que muitas vezes não podem ser aprendidas se a gente não consegue entender a autonomia relativa dessas dimensões. Claro que isso é uma codeterminação, mas há uma autonomia relativa entre essas dimensões micro e macro, entre o cruzamento, por exemplo, que ocorre entre economia e a política, nas lógicas de poder, quando as escalas começam a se amontoar. E há problemas de desigualdade e concentração no mercado que também são muito caros aos estudos de plataformas. Então é preciso pensar sobre essas escalas. Escala é sempre sobre poder. Não é possível pensar em escalabilidade em um sistema sociotécnico sem pensar em dinâmicas de poder. Penso que este é um ponto de contato muito interessante para começar a endereçar este gap.

Para além da sua pesquisa sobre IA como infraestrutura financeira, como você tem se posicionado no debate sobre tecnofeudalismo?

Eu estou para escrever sobre isso e fazer uma intervenção nesse debate interessantíssimo. Vários colegas qualificados estão intervindo nessa discussão, que eu acho realmente muito importante. Eu sou, como o [Evgeny] Morozov, um crítico da tese do tecnofeudalismo. Eu acho que nós não estamos vivendo algo diferente do capitalismo. O capitalismo é um sistema muito plástico, com uma capacidade de se reconstruir e de se reinventar que é absolutamente surpreendente. Então eu não acho que, diante dessas transformações que ocorreram nas últimas décadas, a gente esteja diante de um novo modo de produção.

Mobilizar aspectos e processos típicos de outros modos de produção é um recurso que o capitalismo historicamente se valeu para continuar se reproduzindo e se refazendo à luz dos limites que lhe são impostos, de suas contradições. Isso não supera o fato social da exploração do trabalho, da busca pelo lucro como um fim em si mesmo, da valorização do valor como elemento central e estruturante da dinâmica econômica e social. Mas, ao mesmo tempo, se é verdade que a gente ainda continua no modo de produção capitalista, que se transforma e se refaz, não me parece adequado pensar que as coisas são igual, que são exatamente o que sempre foram. Acho que há mudanças extremamente significativas e importantes ocorrendo. Elas precisam ser endereçadas com muito cuidado, porque elas podem, de fato, significar uma mudança de fase, uma mudança geral de organização e de disposição no interior do capitalismo. Essa é uma hipótese que me parece sensata.

Eu acho que nós estamos vivendo uma mudança de fase no capitalismo nas últimas décadas. O capitalismo está se metamorfoseando em algo muito diferente do capitalismo de antes. Assim como o capitalismo welfarista, keynesiano e fordista foi diferente do capitalismo liberal, que, por sua vez, é diferente do capitalismo neoliberal e financeirizado contemporâneo, eu acho que nós estamos, sim, atravessando uma outra linha agora, contemporaneamente, para um outro tipo de capitalismo. Eu acho que essa mudança tem no seu centro a transformação digital, a digitalização dos processos, das dinâmicas e interações sociais. Isso marca, no meu modo de ver, uma outra forma qualitativa de funcionamento das relações econômicas no interior do capitalismo.

O que significa ser um marxista que pensa tecnologia hoje?

É um momento muito perigoso, mas também muito interessante, para se ser um marxista – se é que a gente vai conseguir chegar a um acordo sobre o que significa de fato “marxista”. Por que nós estamos, sim, no meu modo de ver, vivendo uma mudança qualitativa fundamental no interior do capitalismo. Uma mudança talvez sem precedentes mesmo.

Por que eu digo que é perigoso? Por que, diante dessas mudanças, há duas tentações, que são fortes para todos os analistas, mas talvez especialmente para os marxistas. Uma é a de dizer que essas mudanças não são isso tudo que as pessoas estão dizendo. Que isso é apenas uma expressão fenomênica de algo que a gente já sabe, que a gente já conhece de antemão. E que, por isso, só nos resta fazer uma boa crítica dessas mudanças à luz das proposições básicas, dos fundamentos que a gente já conhece. Portanto, nesta acepção, pormenorizar demais na descrição, no entendimento e na investigação cuidados dessas mudanças seria algo não apenas improdutivo, mas, no limite, fetichista e ideológico. Ou seja, a posição de que nada mudou e que as coisas continuam sendo exatamente como estão.

Uma segunda posição, que também pede cautela, é a ideia de que tudo está mudando de uma maneira irresistível, irreversível, incontornável, e que essas mudanças representam uma reconfiguração completa das coisas, com possibilidades para o fim do próprio capitalismo. A velha ideia da possibilidade iminente do fim do capitalismo. Este é outro cuidado que é preciso ter. Lembremos que alguns marxistas – claro que não só eles, mas também eles – já decretaram o fim do capitalismo algumas vezes, mas este teima em continuar se refazendo, se reinventando. A cada grande crise surge uma coluna de pensadores críticos para dizer “olha aí, o fim do capitalismo está chegando”. Mas essas crises são instrumentalizadas justamente para que o capitalismo, por meio de uma destruição criativa – lembrando a definição do Schumpeter – se reinvente; evidentemente, produzindo um conjunto de tragédias pelo caminho ao longo dessa “reinvenção”.

Então eu acho que isso exige ao mesmo tempo uma abertura e um entusiasmo para entender o que tem de novo, mas uma certa cautela e uma boa dose de humildade científica para também não entrar na panaceia de que absolutamente tudo é novo. Diante desse momento tão delicado que a gente está vivendo, ser um marxista é se dedicar com rigor teórico, profundidade analítica e muito cuidado empírico a essas novidades, mas sem ingenuidade para achar que elas são uma reversão completa de tudo que existe. O novo se reproduz no velho, e o velho se reproduz no novo. Entender as nuances dessa dialética é uma tarefa árdua, que exige o melhor dos nossos esforços e das nossas inteligências, sobretudo nessa área.

A minha aposta teórica difusa, de mais largo alcance, é a de que o dilema fundamental da reconfiguração do capitalismo no nosso tempo pode ser melhor endereçado a partir da interrelação entre financeirização e digitalização. A reconfiguração das lógicas do capital por meio do rearranjo entre finanças e produção, de um lado, e, do outro, a transformação dos processos produtivos, das lógicas de sociabilidade, e da vida social com a ampla e extensiva digitalização, são – junto da catástrofe ambiental e da necessidade de reconfigurações sociais que isso vai demandar – o dois dos processos mais relevantes da contemporaneidade na minha visão.

Na medida em que a relação entre tecnologia e sociedade se torna, por razões positivas ou negativas, cada vez mais central na vida social, penso que um olhar crítico e interdisciplinar, sistêmico, e atento rigorosamente à complexidade, como deve ser uma boa abordagem nessa tradição de pensamento, tem claras vantagens sobre outras aproximações atualmente dominantes.

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Isabelle Stengers: carta aos cientistas que leem os relatórios do IPCC

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Isabelle Stengers: carta aos cientistas que leem os relatórios do IPCC

A tarefa dos cientistas seria “trabalhar para um progresso no conhecimento que forneça uma solução para um problema de interesse geral. Eles devem confiar na ‘sociedade’ que decidirá sobre o uso adequado do que seu trabalho torna possível. A ciência deve ser ‘politicamente neutra’; ‘politizá-la’ seria o mesmo que matá-la. Dá a impressão, para os cientistas que protestam assim, que não há nada de político em fazer com que o Estado e a indústria se interessem pelo que sai de seus laboratórios”, analisa Isabelle Stengers, em artigo publicado por Socialter, 09-03-2023. A tradução é do Cepat.

E alerta: “Que a maioria de vocês continue afirmando que a ciência é ‘apolítica’ e que serve a um interesse maior do que os interesses ‘pé no chão’ dos humanos comuns, é o contrário da imaginação: o imaginário”.

Finalmente, faz um convite ao engajamento: “Alguns jovens pesquisadores ousam se engajar como cientistas ali onde o IPCC é obrigado a se abster. Eles entenderam que não basta tornar os números e os modelos mais precisos e fazer avançar o conhecimento do clima, mas devem encontrar os meios para se deixar afetar por uma situação que exige que saiam do papel de cientista que ‘diz os fatos’”, o que implica também em “designar os inimigos”, à maneira de Bruno Latour.

Eis o artigo.

Bom dia,

Socialter sugeriu que eu escrevesse uma carta aos cientistas que contribuem para a elaboração dos relatórios do IPCC, mas preferi alargar meu endereço àquelas e àqueles que, entre os cientistas, os leem. Elas e eles estão, acredito, longe de serem tão numerosos quanto se poderia pensar. Na verdade, esses relatórios não são dirigidos principalmente a eles. Eles são escritos por cientistas, mas destinam-se principalmente a informar os governos. Como tais, devem ser aprovados antes de serem publicados pelos representantes desses governos que assim reconhecem a legitimidade do seu conteúdo científico. Por conseguinte, pretendem ser “úteis para a tomada de decisões, mas sem a pretensão de ditar a ação a ser tomada”, nos termos da apresentação oficial do IPCC.

Vocês dirão que essa ausência de intenção corresponde à definição atual de objetividade científica quando se trata de uma questão de interesse público. “Nós comunicamos os ‘fatos’, mas cabe a vocês decidirem como vão levá-los em consideração”. Só que, neste caso, o que será declarado “fato” já foi ratificado pelos representantes do governo que têm em vista os interesses e as prioridades de seus respectivos governantes. E assim, quem contribui para a redação desses relatórios sabe que quem os lê terá o cuidado de censurar qualquer possibilidade de questionar a política de seu governo, por mais irresponsável que seja.

Devem esperar que os fatos falem por si ou, mais precisamente, que os cientistas, livres para debater, os transmitam, isto é, deem a eles o significado que os autores tiveram que deixar um tanto implícito, dotando-os de consequências que abrem a imaginação para o que realmente está acontecendo e o que isso demanda. É o que certamente esperavam os climatologistas que estão por trás da criação do IPCC (1). Mas não foi bem assim que aconteceu. Onde estava o erro deles?

Vocês que me leem, há uma boa chance de não estarem entre aquelas e aqueles a quem esta carta é formalmente endereçada. Os cientistas leem pouco. Ou melhor, leem sobretudo o que contribui para a questão que pretendem avançar – os artigos dos colegas que podem contribuir para isso. Mas repassar os “fatos” do IPCC exigiria outras leituras, aquelas que são consideradas na melhor das hipóteses uma perda de tempo, e na pior, sinal de um interesse nefasto: elas podem criar dúvidas. O espírito científico tem sido frequentemente associado à arte de duvidar. Mas a dúvida não deve afetar a confiança no avanço do conhecimento como serviço ao bem comum.

No entanto, “más” leituras podem fazer surgir ideias que podem abalar essa confiança. Assim, quem se dedica a melhorar as baterias dos carros elétricos do futuro retém dos trabalhos do IPCC de que participa a necessária “transição energética”. Mas não acredito que eles leiam – e menos ainda discutam – um texto como o de Jean-Baptiste Fressoz, segundo o qual “nunca houve, de fato, uma transição energética. Não passamos da madeira ao carvão, depois do carvão ao petróleo, em seguida do petróleo à energia nuclear. A história da energia não é de transições, mas de adições sucessivas de novas fontes de energia primária. O erro de perspectiva deve-se à confusão entre o relativo e o absoluto, entre o local e o global: se, no século XX, a utilização do carvão diminuiu relativamente ao petróleo, a verdade é que o seu consumo não para de crescer e que, globalmente, jamais queimamos tanto carvão como em 2013”.

Os pesquisadores e pesquisadoras que trabalham nas baterias do futuro se apegam ao fato científico “nu”: é preciso reduzir as emissões de CO2. Eles não estão interessados no papel desempenhado pela fada da eletricidade nas canções de ninar que nos falam sobre a transição. Eles não se perguntam, pelo menos publicamente, porque é que o seu trabalho não é contraposto por medidas que impliquem um futuro de sobriedade em termos de mobilidade. Por que tais medidas são rejeitadas como parte de uma ecologia “punitiva”.

Eles protestarão dizendo que não é da sua conta. Sua tarefa é trabalhar para um progresso no conhecimento que forneça uma solução para um problema de interesse geral. Eles devem confiar na “sociedade” que decidirá sobre o uso adequado do que seu trabalho torna possível. A ciência deve ser “politicamente neutra”; “politizá-la” seria o mesmo que matá-la. Dá a impressão, para os cientistas que protestam assim, que não há nada de político em fazer com que o Estado e a indústria se interessem pelo que sai de seus laboratórios. É isso que esses aliados os encorajam a pensar.

O discurso oficial é que a “ciência” contribui dessa maneira para o progresso do gênero humano. E agora se entende que essa contribuição deve levar em conta ativamente as exigências da competitividade e da submissão às leis do mercado. Tudo isso, ao que parece, não tem nada a ver com política. Seria justo que os pesquisadores levassem em conta a “realidade” se quisessem se beneficiar do financiamento de que precisam. Porque a “governança” da ciência mudou muito nas últimas décadas. Na Europa, tivemos primeiro direito à “sociedade do conhecimento”, mas esta expressão foi mais ou menos enterrada a favor dessa outra da “economia do conhecimento” (2).

Da mesma forma, o adjetivo “sustentável” foi inicialmente associado ao termo “desenvolvimento” (Cúpula do Rio de Janeiro, 1992), mas depois passou a ser associado ao de “crescimento”. Não falarei de distorção entre essas duas perspectivas salutares. Mas a economia, ao substituir a sociedade, fecha a porta entreaberta pela questão das práticas que permitiriam que os conhecimentos fossem efetivamente “socializados”, compartilhados, avaliados e apreciados de modo lúcido quanto ao seu alcance e suas consequências. E o crescimento prega a porta, porque transforma o avanço do conhecimento em fonte de inovação, preferencialmente passível de ser patenteado.

Hoje, está claro que nem todos os avanços no conhecimento são iguais. Alguns são reconhecidos como portadores de inovação e tornaram-se peças da máquina econômico-financeira, ao passo que outros resistem desesperadamente. E as equipes de pesquisa que não querem resistir devem escrever projetos que se enquadrem nos objetivos da sustentabilidade e da competitividade, ou seja, de submissão à lógica do mercado. Sob o regime agora estabelecido da economia do conhecimento, eles tiveram, além disso, de procurar atrair o interesse das indústrias e, portanto, também aprender sobre os constrangimentos do segredo industrial, da obtenção de patentes e mesmo do lançamento de spin-off (3) encarregando-se de pesquisas que a indústria considera muito arriscadas, mas que ela comprará se cumprirem suas promessas.

Alguns de vocês que leem esta carta podem ter feito protestos, organizado manifestações para “salvar a pesquisa”. Mas vocês não reclamaram primeiro a liberdade de prosseguir a busca desinteressada do avanço do conhecimento, o único, vocês defenderam, capazes de “além disso” dar respostas aos problemas que preocupam a humanidade? O que vocês denunciam ou lamentam é a traição dos seus aliados, do Estado e da indústria, que deixaram de respeitar as distâncias que protegiam sua relativa autonomia.

Mas será que vocês se privaram, durante o feliz tempo em que foram respeitados, de apresentar essa aliança como “natural”, geradora de progresso, permitindo que o “saber desinteressado” “servisse à humanidade”? Vocês não concordaram com esses aliados a fim de ter distância de um público que seria acusado de cauteloso, reacionário, movido por medos irracionais se recusasse o progresso proposto? E os seus especialistas não mostraram um viés bastante sistemático em favor das inovações tecnocientíficas, às vezes alertando contra certos riscos, é claro, mas com uma perspectiva “realista” de preservar sua viabilidade, ou seja, sua lucratividade

Ainda me lembro, há vinte anos, durante o caso dos OGM, de como se formou o que poderia ser uma “sociedade do conhecimento”, quando cidadãos recalcitrantes e bem informados faziam perguntas lúcidas que faziam os seus especialistas gaguejarem. Esses mesmos especialistas, ou seus sucessores, agora defendem com todas as forças a livre comercialização de sementes “que não são OGM” já que não adicionamos genes estranhos, mas cujo genoma “editamos” com a ajuda das “tesouras moleculares”, um método muito mais preciso (embora não de maneira exata).

Vocês mesmos devem ter lido nas advertências do IPCC o anúncio de uma época em que a inovação tecnocientífica seria mais vital do que nunca. Não será mais apenas uma questão de “alimentar o planeta”, mas de salvá-lo. Como vocês podem estar surpresos? As histórias que são passadas de geração para geração também são “editadas”. Elas celebram como a “ciência” tornou possível a resolução de problemas cruciais para o futuro da humanidade e a realização de sonhos que julgávamos loucos. Mas elas “cortam” com a tesoura do “progresso” o questionamento de como esses problemas foram formulados, e o que permitiu financiar a satisfação desses sonhos.

Essas histórias fizeram vocês pensar que as indústrias e os Estados ouviram vocês por respeito ao conhecimento de vocês? Que esse conhecimento, se hoje leva a questionar o próprio sentido do progresso, seria bem-vindo como o são aqueles que trazem a possibilidade de inovações lucrativas? Ou aceitaram a ideia de que se tratava de uma “crise”, à qual soluções inovadoras certamente saberiam responder, mesmo que isso significasse esperar com confiança o milagre da geoengenharia? Em todo o caso, o que é inconcebível para vocês é que a grande aventura humana na conquista do conhecimento seja travada, até mesmo contestada, por medos que afinal são bastante “pés no chão” e correm o risco de “politizar” a pesquisa.

Que a maioria de vocês continue afirmando que a ciência é “apolítica” e que serve a um interesse maior do que os interesses “pé no chão” dos humanos comuns, é o contrário da imaginação: o imaginário. A imaginação é cultivada através do contato com os outros, que pensam e sentem de forma diferente, ao passo que o “imaginário” é transmitido de geração em geração, de modo essencialmente repetitivo e estereotipado. Quando os cientistas reclamam, é sempre para seus antigos aliados. Como se fossem acabar entendendo que só o livre avanço do conhecimento pode lhes trazer o que a “sociedade” espera da “sua” ciência. Aprender a tecer vínculos com os afastados e afastadas seria sair da zona de conforto de um imaginário que os protege da “política”. Mesmo aqueles que são especialistas em climatologia têm a maior dificuldade de sair dessa zona de conforto.

Quando o negacionismo climático eclodiu na França, tendo Claude Allègre (4) como sua figura de proa, os pesquisadores que responderam ao seu livro sobre a impostura climática certamente defenderam detalhadamente os trabalhos do IPCC, apontando os erros e as falsificações desses negacionistas, mas eles cuidadosamente evitaram desenvolver a questão que, no entanto, era tão óbvia quanto um elefante no meio de um salão social. Claude Allègre acusou os especialistas do clima de divulgarem resultados com um viés político. Eles responderam como se o problema fosse “puramente científico”, prolongando assim o que os relatores do IPCC eram obrigados a fazer. Mantinham-se, assim, à distância do público, sem partilhar com ele o desalento de serem obrigados pelos fatos a fazer soar o alarme e serem acusados de “alarmistas” (5).

Mas, nos últimos anos, “fatos” muito mais intrusivos do que as medições, cálculos e modelagens científicos assumiram o controle e estão efetivamente soando o alarme. Os desastres, em franco aumento, sinalizam que as possibilidades que ainda existiam na década de 1990, quando o IPCC publicou seus primeiros relatórios e o protocolo (não vinculante) de Kyoto foi adotado, são coisas do passado. E, no entanto, nossos governantes continuam agindo como se estivéssemos lidando com uma “crise” que poderíamos superar por meio de reformas passo a passo.

Parece que a perspectiva para 2030 de uma “Europa sustentável” é um fim em si mesmo para as autoridades europeias, ao passo que o esforço está apenas começando e a perspectiva de uma “neutralidade de carbono” surge com vinte anos de atraso. E aí teremos que chegar a um balanço de emissões cada vez mais negativo. Nesse cenário, perduram apenas os efeitos dos gases de efeito estufa, que continuarão a ser emitidos nesse chamado “passo a passo” e a se acumular na atmosfera.

É muito difícil aceitar que, mesmo que os compromissos sejam cumpridos, o tempo perdido durante anos será pago em catástrofes que se multiplicarão e se ampliarão. Não haverá recompensa, manhã calma de pós-crise. É difícil para todos, e nos perguntamos como os socioterapeutas podem ousar diagnosticar a eco-ansiedade como um “sintoma”. A situação não é realmente desesperadora? Como não tratar o eco-otimismo ao qual nossos governantes nos incitam como um “sintoma”?

Esse sintoma, temo que muitos de vocês com quem falo sofram dele também, redobrado pelo senso de responsabilidade diante de um público que deve ser tranquilizado, do que seria capaz se entrasse em pânico? Mas os jovens, e não tão jovens, que interrompem os estudos ou abdicam da carreira para participar de ocupações de terra ou de ZADs, ou de “levantamentos da terra” contra os que a envenenam e/ou cobrem de cimento, não entram em pânico. Eles transmitem os “fatos” que gritam contra o saque dos mundos humano e não humano.

Podemos dizer, à maneira de Greta Thunberg, que eles e elas “escutam os cientistas”, mas fazem o que os cientistas do IPCC não conseguiram: designar os inimigos, aqueles que, imperturbavelmente, continuam a sua obra de morte. Prejudicá-los tanto quanto possível e, ao mesmo tempo, reaprender as práticas de resistência, de cooperação e de solidariedade que despertam os sentidos e a imaginação contra o desespero, não é esta a resposta “racional”, não sintomática daquelas e daqueles que sabem que pode ser tarde demais, mas que está apenas começando? E que, se não é mais hora de fugir da provação, é questão de aprender a responder a ela

Na verdade, vocês sabem, a imaginação científica que paralisa vocês está começando a trincar. Alguns jovens pesquisadores ousam se engajar como cientistas ali onde o IPCC é obrigado a se abster. Eles entenderam que não basta tornar os números e os modelos mais precisos e fazer avançar o conhecimento do clima, mas devem encontrar os meios para se deixar afetar por uma situação que exige que saiam do papel de cientista que “diz os fatos”. Devem, contra a oposição que serve para desqualificar o público, entre razões objetivas e subjetivas, aprender a compartilhar a tentação do desespero e a vontade de resistir. Alguns cientistas do próprio IPCC estão resistindo e vazando a versão original, antes da censura, do relatório sobre medidas para limitar as mudanças climáticas, onde ficamos sabendo que os “fatos” agora condenam o tipo de medidas que nossos governos consideram “realistas”.

Esta versão foi divulgada pelo coletivo transnacional Scientist Rebellion, que está engajado em ações de desobediência civil desde a COP26 em Glasgow no outono de 2021. Não se trata mais de informar o público, mas de apontar os responsáveis pela falta de ação climática e pelas empresas de greenwashing, sejam elas academias, museus de ciência (6), meios de comunicação, bancos ou consórcios industriais. Mas os pesquisadores recalcitrantes e os estudantes, portanto entre os mais talentosos, que “desertam” ou “bifurcam”, juntam-se a ativistas nas ruas, nos campos e nas florestas, estão eles, como muitos de seus mais velhos pensam, entristecidos e perturbados, “perdidos e perdidas para a ciência”?

Sim, se por “ciência” entendemos aquilo que é definido contra a “opinião”. Mas não necessariamente se, pelos laços que se forjam, pelos interesses que se partilham, pelos encontros que transformam, pela imaginação que se repovoa, aquelas e aqueles que fogem da “ciência” se descobrem capazes de algo diferente daquilo a que seus aliados tradicionais os condenaram. Rejeitar o papel atribuído a eles de fornecedores de soluções ditas “racionais”, ou seja, quase por definição hoje, de cúmplices de lucrativas operações de greenwashing, não significa rejeitar a razão, mas entendê-la como aquilo que exige que nos tornemos dignos da situação com a qual nos deparamos.

Este é talvez um sentido daquilo que Bruno Latour chama de “a nova libido scindi” (7) requerida pelas “ciências da terra”: não mais definir a Terra como o terreno oferecido ao “avanço do conhecimento”, imaginário guerreiro, mas como o que exige sempre aprendizagem situada, que só pode ser feita numa relação de interdependência com os outros, que também se preocupam com a forma como esta situação vai se caracterizar e com o que ela pede.

Vocês que me leram até aqui podem achar que minha proposta é utópica porque “as pessoas não são capazes desse tipo de aprendizado”. Mas vocês mesmos são? Todos nós estamos abismados e abismadas, vocês pastores e aqueles/as que vocês trataram, nos últimos dois séculos em que o progresso se tornou uma palavra de ordem, como um rebanho a ser conduzido, contra a sua vontade, à luz. Sair da zona de conforto, bifurcar, é uma aposta sem garantia, é verdade, mas a é para todos. É uma aposta pela vida que vai continuar, com ou sem nós.

Atenciosamente.

Notas

1. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) foi criado em 1988 sob a égide das Nações Unidas, com a missão de estabelecer um consenso científico sobre as mudanças climáticas e seus efeitos, a partir de uma síntese aceita por todos os dados e estudos conhecidos, com vista a esclarecer os governos sobre as estratégias a serem implementadas (Nota do Editor).

2. A “estratégia de Lisboa”, adotada em 2000, tem como objetivo transformar a União Europeia na “economia do conhecimento mais competitiva e dinâmica do mundo” até 2010 (Nota do Editor).

3. Empresa comercial criada a partir de um laboratório de pesquisa (Nota do Editor).

4. O geoquímico e ex-ministro Claude Allègre apareceu nos anos 2000 como uma figura da negação das mudanças climáticas na França, por meio de fóruns na imprensa e do livro L'Imposture climatique (Plon, 2010) (Nota do Editor).

5. Quando, em 2009, publiquei No tempo das catástrofes (Editora Ubu, 2015), que infelizmente não perdeu sua atualidade, foi o termo “catástrofe” que primeiro atraiu comentários. Eu não era “catastrofista”?

6. Uma primeira pequena ação aconteceu no dia 9 de abril no Museu Nacional de História Natural.

7. “Desejo de conhecer”.

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