Friday 10 March 2023

“Para além do colapso, existe uma horta”. Entrevista com Vandana Shiva

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“Para além do colapso, existe uma horta”. Entrevista com Vandana Shiva

“Durante a Covid e o confinamento, o sistema dominante não estava disponível para as pessoas, as cadeias de abastecimento entraram em colapso, mas as hortas de nossos membros, que são mulheres, cresciam por todas as partes. Não só davam comida às pessoas, mas também esperança…”, conta-nos a Dra. Vandana Shiva, em entrevista gravada na véspera do Encontro Internacional Feminista (Madrid, 24 e 26 de fevereiro).

A entrevista é publicada por Pressenza/Espanha, 08-03-2023. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Doutora, você irá participar do Encontro Internacional Feminista que acontecerá, nestes dias, em Madri, no painel “Crise climática, ecofeminismo e bem-estar animal”. O que você pode nos antecipar de sua exposição?

patriarcado capitalista nos fez acreditar que estamos separados da natureza e que as mulheres são menos do que os homens. Contudo, fazemos parte da terra, somos humanos. E não só os homens e as mulheres são iguais, como também existe uma igualdade entre todas as espécies na Democracia da Terra. É a mesma cosmovisão que fez todos acreditarem que as mulheres são um segundo sexo, passivas e objetos, e que também apresentou a Terra como se fosse um objeto que está aí para ser explorada, como se fosse apenas matéria-prima que está aí para ser utilizada.

A exploração dos combustíveis fósseis, durante 200 anos, e do petróleo, durante 100, nos levou a uma crise climática, colocou nossas vidas em desequilíbrio, assim como os sistemas terrestres. Durante quatro bilhões de anos, a terra conseguiu gerir o clima, nos 200.000 anos de existência do ser humano, não criamos emissões que não pudessem ser reabsorvidas em um ciclo. Os combustíveis fósseis são os primeiros a gerar emissões que não fazem parte do ciclo natural e, portanto, acumulam-se na atmosfera, criam o efeito estufa e os gases do efeito estufa.

O mesmo sistema que está violando os sistemas terrestres também está violando os direitos das mulheres. Primeiro, tratando as mulheres como se fossem passivas, como se não trabalhassem, como se o seu conhecimento não contasse, embora a maior parte do trabalho seja feito por mulheres e o trabalho das mulheres não faça parte do problema climático. A segunda razão é que essa economia tão faminta por recursos e gananciosa está permanentemente monopolizando os recursos de outros.

E em todo o mundo, além da velha violência contra as mulheres e a natureza, há uma nova violência contra a Terra e contra as mulheres, e a chamamos de ecocídio, quando nos referimos à violência contra a Terra, e de feminicídio, pois as mulheres estão sendo assassinadas por defenderem sua terra, por defenderem seus rios, por defenderem suas águas. Por isso, é importante que em uma conferência sobre o feminismo seja abordada a mudança climática e que se discuta nossa relação com outras espécies.

Denuncia o patriarcado como o responsável pelo desastre que estamos vivendo. Qual é a sua análise da situação atual, em nível planetário?

Denuncio o patriarcado capitalista como responsável por isso: a convergência do domínio do dinheiro e do capital e o domínio do poder masculino. Já tivemos patriarcado antes, mas não levou à mudança climática, provocou desigualdade, mas não nos levou à mudança climática. Só o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado que nos levaram à crise que ameaça o planeta e, portanto, ameaça o nosso futuro. É por isso que, em todos os lugares, as mulheres estão se levantando em defesa da terra.

Todas as guerras que eu conheço, recentes ou antigas, são guerras por disputas pelos recursos da Terra, para poder se apoderar dos recursos da Mãe Terra. A maioria das guerras do nosso tempo são guerras do petróleo. Se olhamos para o Oriente Médio, é uma guerra do petróleo. De certa forma, há uma monopolização de recursos: na guerra da Ucrânia, na América Latina, em todos os conflitos... Por que o presidente da Bolívia foi destituído por um golpe de Estado? Pelo lítio. E na África, a cada passo, há golpes de Estado e massacres pelos recursos daquele continente tão rico.

Como alternativa, propõe a Democracia da Terra. Você pode explicar em que consiste?

democracia da Terra é o simples reconhecimento de que fazemos parte da rede da vida, de que outras espécies como árvores, micróbios e animais são nossos parentes, mantêm relações conosco, são nossos parentes, como dizem os indígenas norte-americanos. E a Democracia da Terra é o reconhecimento de que nos sistemas da Terra existe diversidade. Ou seja, que um micróbio é muito diferente de um enorme elefante, mas ambos são iguais em seus direitos.

Então, Gaia tem uma democracia na qual não discrimina em função do tamanho e do poder ou em função da dominação. Isso significa que a democracia da Terra é uma democracia para que cada ser possa viver e, dentro da Democracia da Terra, também estamos nós porque somos uma espécie, a espécie humana, e não há razão para que haja desigualdade entre os sexos. Somos todos iguais.

Você representa movimentos globais, como o feminismo e o ambientalismo juntos, e desenvolve suas propostas a partir de uma posição não violenta. O que diria para alguns movimentos que realizam suas atividades de modo separado?

Em todos os sistemas de vida, quando há organização também há simbiose, também existe interligação, também há reciprocidade. E assim como a natureza que funciona com a diversidade e de forma interligada, nós, como movimentos da não-violência, para deter a violência contra a Terra, contra as mulheres, contra as gerações futuras, precisamos, é claro, ter unidade, precisamos estar definitivamente interligados. Não precisamos de ninguém que nos diga de cima o que é que temos que fazer. Temos que nos auto-organizarmos, mas de forma interligada.

Doutora, você fala que necessitamos descolonizar a mulher, a Terra e o futuro... Quanto ao futuro, qual a sua opinião acerca da implementação de uma renda básica universal e incondicional?

Bem, eu aprecio a igualdade de renda, mas também acredito no direito fundamental ao trabalho, porque o trabalho dá sentido, o trabalho é identidade. Não consigo imaginar um mundo onde todos estejam sem trabalho, como disse o senhor Zuckerberg em seu discurso na Harvard: no futuro, 99% das pessoas serão inúteis porque a Inteligência Artificial e os robôs farão o trabalho dos seres humanos. E se nesse contexto, onde somos considerados desnecessários, inúteis, se nesse contexto, tivéssemos uma renda universal só para nos mantermos com vida, não seríamos plenamente livres, nem plenamente humanos.

Então, parece-me muito bom que haja uma renda básica universal com o direito universal ao trabalho, mas não aceito uma renda básica universal com todos desempregados e descartados. Não quero uma renda básica universal do lixo, em que nos considerem o suficientemente descartáveis para nos jogar no lixo. É por isso que eu digo que temos que ter os dois. Se tivermos apenas um e continuarmos em uma economia que gera desemprego e em que as pessoas são descartáveis, nesse contexto, uma renda básica pode chegar a ser genocida, simplesmente genocida, mataria as pessoas.

Em primeiro lugar, o que é que seria universal? Eu ficaria muito contente se cada pessoa do mundo fosse paga em dólares, mas a renda básica universal será em dólares ou em criptomoedas? E quem decidirá qual é o seu valor, quanto você custa? O direito do ser humano é o direito a ser criativo, é o direito a ser criativo através do trabalho e, nesse sentido, sem dúvida, deveríamos ter igualdade de renda. Não é certo que algumas pessoas que estão jogando com dinheiro fictício no grande mundo financeiro ganhem um milhão de dólares, em um mês, e alguém que mantém nossos espaços limpos não possa ganhar o mínimo para poder comer e pagar o seu aluguel.

Sendo assim, uma renda básica universal funcionaria maravilhosamente se ficasse dentro do marco em que todos possam trabalhar e onde cada um possa escolher em que trabalhar. Se quero ser uma professora, tenho que poder ser professora. Se quero ser um carpinteiro, deveria poder ser carpinteiro. Se quero ser um camponês, deveria ter o direito de poder ser um camponês e, portanto, ter igualdade de oportunidades e não a desigualdade, onde 1% controla toda a riqueza do mundo, neste momento, e depois diz aos 99% que possuem algumas migalhas.

É por isso que a renda básica universal também implicaria a moradia como bem comum. Deveríamos poder pagar por um lugar onde morar. Veja o que aconteceu na Espanha, depois da crise financeira de 2008, em que as pessoas perderam suas casas, assim como o que está acontecendo nos Estados Unidos: as pessoas estão perdendo suas casas.

Você não pode ter pessoas sem teto e ter renda básica. Precisa ter um lugar onde morar, precisa ter direito à alimentação, ter direito à água, à educação, à energia básica. Tudo isso junto: a renda dentro desse contexto como algo a mais, pois a renda não é o único valor já que o dinheiro se tornou a única medida de valor e desvalorizou a natureza, desvalorizou o trabalho das mulheres.

Precisamos de uma diversidade de valores: o valor de um arvoredo sagrado, de uma floresta sagrada, o sagrado é um valor, mas não em termos de dinheiro, significa que essa floresta não pode ser tocada, um manancial sagrado não pode ser tocado. Então, precisamos que o trabalho da natureza seja valorizado, precisamos que o trabalho das mulheres seja valorizado, respeitado e reconhecido pelo que contribui. Sem o trabalho das mulheres, a sociedade não se sustentaria. É o trabalho mais importante.

Vivemos em uma economia dominada pelo mercado, a renda básica ganha importância, mas nem em todas as partes existe uma economia de mercado. Lá, em uma cultura indígena, em uma economia camponesa, o direito a suas sementes, o direito à terra e o direito à alimentação são importantes para que você possa ter uma vida e possa se manter.

Seguindo com o futuro e para ir encerrando, onde habita a esperança para você?

Onde deposito a minha esperança? Bem, eu cultivo a esperança, e cultivo a esperança plantando uma semente e a semente me dá esperança. Sim, você vê uma sementinha, as sementes de mostarda são muito pequenas ou as sementes de milhete são tão pequeninas e, em poucas semanas, começam a crescer e um pé de milhete pode se tornar muito alto e um pé de mostarda pode me dar mil sementes. Esse poder de criação, esse poder para que possamos ser cocriadores com a Terra, isso me dá esperança. Não como uma ideia fictícia, mas como uma realidade, uma prática, uma colaboração na qual podemos trabalhar com a terra para poder criar um futuro, em vez de destruir a terra para destruir nosso futuro. Essa possibilidade está ao nosso alcance como espécie humana.

Existem muitas pessoas no mundo que seguem seus princípios. Como o seu movimento está se desenvolvendo?

O bonito dos movimentos é que ampliam nosso potencial e, portanto, também ampliam o potencial de nosso futuro. Possuem sua própria tendência de crescer porque todo mundo tenta encontrar uma saída neste colapso sem saída. As pessoas não querem fazer parte de um sistema que está afundando, entrando em colapso.

Contudo, por outro lado, quando os sistemas entram em colapso, é o trabalho que fazemos para cultivar nossos próprios alimentos, para criar moradias comuns, para criar saúde coletiva… são esses os sistemas que nos ajudam a avançar e foi o que vimos durante a Covid e confinamento: o sistema dominante não estava disponível para as pessoas, as cadeias de abastecimento entraram em colapso, mas as hortas de nossos membros, que são mulheres, cresciam por todas as partes. Não só davam comida às pessoas, mas também esperança. Então, para além do colapso, existe uma horta.

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