Monday, 20 March 2023

Belo Monte: uma oportunidade para Lula e para o PT. Artigo de Eliane Brum

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Belo Monte: uma oportunidade para Lula e para o PT. Artigo de Eliane Brum

"Como um gigantesco bumerangue de aço e concreto, a hidrelétrica no Xingu volta à mesa do novo governo", escreve Eliane Brum, jornalista, escritora, em artigo publicado por SUMAÚMA, 16-03-2023.

Eis o artigo.

Para um ícone da esquerda e um partido de esquerda, nada pode ser pior do que encarar um legado de violação de direitos humanos. Para um ícone da esquerda que se lançou como defensor da Amazônia no cenário internacional, nada pode ser mais perigoso do que uma catástrofe ecológica com suas digitais na maior floresta tropical do planeta. A importância do Brasil no cenário global está diretamente ligada à Amazônia – tanto quanto os investimentos internacionais. A popularidade de Lula em um mundo assombrado pela crise climática também. Esse é o significado da renovação da licença de operação de Belo Monte para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e para o PT.

Imagem feita de 14 de outubro de 2014 durante a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, em Altamira, Pará. (Foto: Carol Quintanilha | Greenpeace)

Depois de 13 anos na Presidência (2003-2016), o PT tem um passado no poder. O antipetismo que resultou na eleição de Jair Bolsonaro costuma ser justificado pela corrupção do partido no governo. Embora a corrupção atravesse todos os partidos tradicionais no Brasil, como é bem fácil provar, o PT tinha se lançado como uma legenda diferente. É natural que tenha sido mais cobrado por isso. Entretanto, parte dos que bradavam contra a corrupção do PT no poder se calou diante da corrupção explícita do governo de Bolsonaro, o que faz suspeitar que o antipetismo possa se dar não pelos erros do PT, mas pelos seus acertos: ter enfrentado a desigualdade racial e social do Brasil como nenhum outro partido antes dele, por exemplo.

Agora, Lula e o PT voltaram ao governo após quatro anos de fascismo. E, apesar de todos os percalços, o PT é o único dos partidos nascidos no período da redemocratização que sobreviveu como um partido. Se o passado de corrupção pode ser superado, especialmente agora que Lula carrega a esperança de milhões de brasileiros em voltar a ter um país, há algo que não poderá ser esquecido. E esse algo se chama Belo Monte.

Planejada e leiloada nos dois primeiros mandatos de Lula (2003-2010), construída no governo de Dilma Rousseff (2011-2016), a hidrelétrica se tornou um símbolo internacional de destruição humana e ambiental na Amazônia. Imposta aos povos da floresta e da cidade de Altamira, no Pará, a usina é alvo de 29 ações do Ministério Público Federal. Há grande probabilidade de que, nos próximos anos, Belo Monte seja formalmente tratada como “crime” em sentenças do Supremo Tribunal Federal. O substantivo já é usado para defini-la tanto por suas vítimas e pelos movimentos socioambientais quanto pelos cientistas que a pesquisam desde quando era apenas um projeto da ditadura empresarial-militar (1964-1985) que ninguém acreditava que poderia sair do papel. E agora, como um bumerangue feito de aço e concreto, Belo Monte volta à mesa do novo governo, a quem caberá a renovação de sua licença de operação.

Tanto Lula quanto a maior parte do PT têm dificuldade de assumir a verdade sobre Belo Monte. Mas de Belo Monte não se escapa. É isso que mostra a série especial assinada pela jornalista Helena Palmquist, que passou vários dias em Altamira e região investigando, por terra e por água, os impactos da usina. A hidrelétrica, imposta sem consulta prévia aos povos da floresta, expulsou 55 mil pessoas. Hoje, está secando 130 quilômetros de uma das regiões mais biodiversas da Amazônia, chamada Volta Grande do Xingu, e pondo em risco a vida de três povos indígenas, de comunidades tradicionais e de centenas de outras espécies. Também até hoje as famílias ribeirinhas que tiveram suas ilhas afogadas e suas casas queimadas ainda não foram reassentadas junto ao reservatório da usina, o que provocou fome, adoecimento e morte. Altamira se transformou em uma das cidades mais violentas do Brasil, e as crianças expulsas da floresta se tornaram adolescentes em periferias dominadas pelo crime organizado.

Este é apenas um pequeno resumo da obra. E para tudo isso há provas abundantes. Negar os brutais impactos de Belo Monte é tão impossível quanto negar a crise climática. Tanto uma quanto a outra são reais – e a realidade se impõe até mesmo para os negacionistas.

A renovação da licença de operação pode ser a chance de Lula e o PT mudarem a narrativa do seu legado na Amazônia, hoje fortemente contaminada por Belo Monte. Já não há reparação para a destruição socioambiental produzida pela hidrelétrica. Mas a renovação da licença pode ser a oportunidade para que o Estado finalmente obrigue a Norte Energia, a concessionária de Belo Monte, a cumprir suas obrigações legais: das 47 medidas que deveriam prevenir ou reduzir os danos da construção e da operação, apenas 13 foram cumpridas integralmente. É inaceitável que, depois de tudo, este governo renove a licença da usina sem o cumprimento integral das condicionantes, que nunca condicionaram coisa alguma.

Hoje, a hidrelétrica sequestra 70% da água da Volta Grande do Xingu, barrando a reprodução da maioria das espécies, o que resulta na morte de milhões de peixes e na condenação dos povos da região à fome. É imperativo que o governo cumpra sua obrigação de fazer uma partilha da água ecologicamente viável, em que a vida, princípio maior inequívoco, se imponha. Hoje, famílias ribeirinhas vivem há mais de uma década jogadas nas periferias urbanas, à espera de justiça e, há pelo menos seis anos, à espera de um território ribeirinho que lhes devolva seu modo de vida e salve seus filhos do aliciamento do crime organizado. Cada dia a mais sem território ribeirinho pode significar uma vida a menos. E cada uma delas será lembrada e cobrada. Já passou muito da hora de a Constituição finalmente valer para Belo Monte.

“A derrota e a vitória só se medem na história”, lembrou Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, em uma entrevista exclusiva que marca os seis meses de vida de SUMAÚMA, completados em 13 de março. Para celebrar uma data redonda em uma plataforma de jornalismo baseada na floresta, nada melhor do que uma entrevista com uma amazônida cuja vida pública já faz parte da história do Brasil e da luta climática do planeta. A frase de Marina pode ser dita também pelas vítimas de Belo Monte, que jamais permitiram que a hidrelétrica se tornasse um “fato consumado”, muito menos um caso “superado” e jamais um fato “esquecido”.

A esta altura, o Brasil já deveria ter aprendido o custo de sangue dos apagamentos. Que a renovação da licença de operação de Belo Monte tenha caído no colo do PT pode parecer um tremendo azar para quem preferia esquecer – e que esquecessem. É o contrário, porém. É a oportunidade de Lula e do PT fazerem o que é certo. Raras vezes um presidente e um partido têm uma chance dessa magnitude. Sobre sua escolha, hoje, só há uma certeza: estará na história.

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Sunday, 19 March 2023

colóquios GPEA - ano 2022

 colóquios GPEA - ano 2022

registro

Tarsila do Amaral:
batizado de Macunaíma 1953

2022 - Colóquios de Pesquisa em Educação  Ambiental

*pre = presencial no IE, auditório ou sala 315


*pre = presencial no IE, auditório
*remoto = https://www.youtube.com/c/mich%C3%A8lesatomimi
Facilitação: Victor Henrique
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*remoto = https://www.youtube.com/c/mich%C3%A8lesatomimiFacilitação: Michèle Sato
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*pre = presencial no IE, auditório
*remoto = https://www.youtube.com/c/mich%C3%A8lesatomimi
Facilitação: Giseli Dalla-Nora
textos do Pedro
filme do Pedro: hippies da República, SP
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*pre = presencial no IE, auditório
Facilitação: Herman & Michèle 
Facilitação: Michèle Sato
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*pre = presencial no IE, auditório 
Facilitação: Aleth Amorim
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*pre = presencial no IE,  sala 315
*remoto = https://www.youtube.com/c/mich%C3%A8lesatomimi
Facilitação: Lohaine Lohmann
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*pre = presencial no IE,  sala 315
*remoto = https://www.youtube.com/c/mich%C3%A8lesatomimi
Facilitação: Izabele Nogueira
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*pre = presencial no IE,  sala 315
*remoto = https://www.youtube.com/c/mich%C3%A8lesatomimi
Facilitação: Thiago Luiz
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Facilitação: Cristiane Soares
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*pre = presencial no IE, auditório 
*remoto = https://www.youtube.com/c/mich%C3%A8lesatomimi
Facilitação: Tatiani Nardi

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BIBLIOGRAFIA BÁSICA
MUITAS referências em PDF para download

AHMED, Nabil (Ed.) Inequality kills. The unparalleled action needed to combat unprecedented inequality in the wake of COVID-19. Oxford: Oxfam International, 2022 < https://policy-practice.oxfam.org/resources/inequality-kills-the-unparalleled-action-needed-to-combat-unprecedented-inequal-621341/>.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? São Paulo: 34, 1990.

FERRANDO, Francesca. Philosophical posthumanism. London: Bloomsbury Publishing, 2019. <https://www.researchgate.net/publication/335319597_Philosophical_Posthumanism>.

GUDYNAS, Eduardo. Direitos da natureza – ética, biocentrismo e políticas ambientais. São Paulo: Elefante, 2019.

LATOUR, Bruno. After lockdown – a metamorphosis. Medford: Polity Press, 2021.

MOORE, Jason (Ed.) Anthropocene or Capitalocene? Nature, history, and the crisis of capitalism. Oakland: PM Press, 2016.

PIGNATI, W. et al. (Orgs.). Desastres socio-sanitários-ambientais do agronegócio e resistências agroecológicas no Brasil. São Paulo: Outras expressões, 2021.

SÁ, Elizabeth. et al. (Orgs.) Memória, pesquisa e impacto social. O pensamento formativo do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT. Cuiabá: Carlini & Caniato Ed., 2021.

SATO, Michèle; DALLA-NORA, Giseli (Orgs.). Turbilhão de ventanias e farrapos, entre brisas e esperançares. Cuiabá: GFK Comunicação & Ed. Sustentável, 2021.

SERVIGNE, Pablo; STEVENS, Raphael; CHAPELLE, Gauthier. Another end of the world is possible. Boston: Polity Press, 2021.

STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes - resistir a barbárie que se aproxima. Tradução de Eloísa Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: Doenças infecciosas, capitalismo e ciência. Trad. Allan R. C. Silva. São Paulo: Elefante, 2020.

Tuesday, 14 March 2023

Sem água, comida e banheiro: 56 trabalhadores são resgatados em plantação de arroz no RS

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Sem água, comida e banheiro: 56 trabalhadores são resgatados em plantação de arroz no R

"Fico triste por flagrar futuros sendo comprometidos", diz Vitor Ferreira, auditor que participou do resgate. 

Das 56 vítimas, 10 têm entre 14 e 17 anos de idade. (Foto: divulgação | Polícia Federal)

A reportagem é de Caroline Oliveira, publicada por Brasil de Fato, 11-03-2022.

Pelo menos 56 trabalhadores foram resgatados em situação análoga à escravidão em duas propriedades de cultivo de arroz em Uruguaiana, a 630 quilômetros de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O resgate foi feito pela Polícia Federal em conjunto com o Ministério Público do Trabalho e a Gerência Regional do Trabalho, nesta sexta-feira (10), nas estâncias Santa Adelaide e São Joaquim.

“O que mais ofende, inclusive a nós que estamos habituados a esse trabalho, não é apenas a pessoa ter uma jornada pesada sob o sol, mas é fazer isso com sede, porque o empregador não oferece água, com fome, porque a comida pode ter azedado ou estar infestada de formigas. É fazer esse tipo de trabalho tendo que descansar sob a sombra de um ônibus, porque não tem outra sombra disponível”, afirma o auditor-fiscal do trabalho Vitor Siqueira Ferreira.

As vítimas trabalhavam no corte manual de arroz vermelho – um tipo de grão que cresce junto às espécies de arroz de maior consumo no país e que desqualifica o produto final por ser impróprio para alimentação. Segundo os órgãos de fiscalização, os trabalhadores usavam ferramentas inadequadas, como facas de cozinha, e faziam a aplicação de agrotóxicos com as mãos, sem equipamentos de proteção. Também eram obrigados a caminhar sob o sol por cerca de 50 minutos, do alojamento até a área de cultivo de arroz.

“O grau de ofensividade da situação vai desde não ter água, comida, banheiro, local para descanso, até realizar uma atividade extremamente difícil em condições climáticas extremamente exigentes. Isso é o que mais afronta a dignidade do trabalhador.” Nesta sexta-feira (10), os termômetros registraram uma sensação térmica de 40°C em Uruguaiana.

Os trabalhadores recebiam R$ 100 por dia, pagos semanalmente, e eram responsáveis por preparar o próprio almoço, que muitas vezes estragava devido ao calor intenso, e eram obrigadas a comprar as ferramentas usadas no trabalho. Os dias em que precisavam ficar afastados em razão de doença eram descontados do salário.

Das 56 vítimas10 têm entre 14 e 17 anos de idade. Todos já moravam na região, que faz fronteira com o Uruguai, nos municípios de Uruguaiana, Itaqui, São Borja e Alegrete.

“São pessoas que têm talento para trabalhar e se desenvolver profissionalmente, construir um futuro através do trabalho, mas esse tipo de trabalho inviabiliza o desenvolvimento dessas pessoas. A gente fica triste também por flagrar futuros sendo comprometidos pela exploração de trabalho”, afirma Ferreira.

O auditor destaca que os trabalhadores sequer conhecem o dono das propriedades e se referem apenas ao recrutador responsável por contratar os trabalhadores pelos municípios. Ele foi preso em flagrante e será encaminhado ao sistema penitenciário.

“Estamos investigando a real titularidade da relação de emprego, pois existe um dono das terras, que contratou uma empresa robusta para fazer a semeadura e o cultivo do arroz. Estamos reunindo documentos para saber como é a relação entre o dono da safra e a empresa responsável pelo semeador e cultivo, para saber quem é o real titular da relação de trabalho com essas pessoas”, explica.

As vítimas voltaram para as suas casas e receberão, de imediato, três parcelas do seguro-desemprego. O Ministério Público do Trabalho também vai requerer o pagamento de indenizações por danos morais individuais e coletivos.

Retrato do Rio Grande do Sul

Segundo os órgãos, trata-se do maior resgate já registrado em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, município responsável por grande parte do arroz produzido no Brasil. Segundo o estudo “Radiografia da Agropecuária Gaúcha 2022”, desenvolvido pelo Departamento de Políticas Agrícolas e Desenvolvimento Rural, o estado é responsável por 70,4% da produção nacional do grão. A região de Uruguaiana produz 32% da safra do estado.

A ação se soma ao resgate 207 pessoas em trabalho análogo à escravidão na colheita de uvas ,em vinícolas de Bento Gonçalves, também no Rio Grande do Sul.

O caso veio à tona após seis trabalhadores conseguirem fugir e denunciar o caso. Naturais da Bahia, eles afirmaram que, pela proposta de trabalho, teriam a alimentação, hospedagem e transporte custeados nas plantações, porém, ao chegarem no Rio Grande do Sul, tiveram que pagar pelo alojamento, contraindo dívidas. O local apresentava péssimas condições de salubridade. Os resgatados relataram ainda que recebiam ameaças e intimidações.

Em 8 de março, o empresário Pedro Augusto de Oliveira Santana, investigado por manter as 207 pessoas em trabalho análogo à escravidão, teve seus bens bloqueados pela Justiça do Trabalho, a partir de pedido do Ministério Público do Trabalho.

"A gente percebe que existe no campo uma cultura de que a vida é difícil mesmo e será assim desse jeito. Essa conduta de naturalizar a indignidade é algo que não podemos concordar e vamos seguir trabalhando para evitar", afirma Vitor Ferreira.

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Friday, 10 March 2023

“Para além do colapso, existe uma horta”. Entrevista com Vandana Shiva

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“Para além do colapso, existe uma horta”. Entrevista com Vandana Shiva

“Durante a Covid e o confinamento, o sistema dominante não estava disponível para as pessoas, as cadeias de abastecimento entraram em colapso, mas as hortas de nossos membros, que são mulheres, cresciam por todas as partes. Não só davam comida às pessoas, mas também esperança…”, conta-nos a Dra. Vandana Shiva, em entrevista gravada na véspera do Encontro Internacional Feminista (Madrid, 24 e 26 de fevereiro).

A entrevista é publicada por Pressenza/Espanha, 08-03-2023. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Doutora, você irá participar do Encontro Internacional Feminista que acontecerá, nestes dias, em Madri, no painel “Crise climática, ecofeminismo e bem-estar animal”. O que você pode nos antecipar de sua exposição?

patriarcado capitalista nos fez acreditar que estamos separados da natureza e que as mulheres são menos do que os homens. Contudo, fazemos parte da terra, somos humanos. E não só os homens e as mulheres são iguais, como também existe uma igualdade entre todas as espécies na Democracia da Terra. É a mesma cosmovisão que fez todos acreditarem que as mulheres são um segundo sexo, passivas e objetos, e que também apresentou a Terra como se fosse um objeto que está aí para ser explorada, como se fosse apenas matéria-prima que está aí para ser utilizada.

A exploração dos combustíveis fósseis, durante 200 anos, e do petróleo, durante 100, nos levou a uma crise climática, colocou nossas vidas em desequilíbrio, assim como os sistemas terrestres. Durante quatro bilhões de anos, a terra conseguiu gerir o clima, nos 200.000 anos de existência do ser humano, não criamos emissões que não pudessem ser reabsorvidas em um ciclo. Os combustíveis fósseis são os primeiros a gerar emissões que não fazem parte do ciclo natural e, portanto, acumulam-se na atmosfera, criam o efeito estufa e os gases do efeito estufa.

O mesmo sistema que está violando os sistemas terrestres também está violando os direitos das mulheres. Primeiro, tratando as mulheres como se fossem passivas, como se não trabalhassem, como se o seu conhecimento não contasse, embora a maior parte do trabalho seja feito por mulheres e o trabalho das mulheres não faça parte do problema climático. A segunda razão é que essa economia tão faminta por recursos e gananciosa está permanentemente monopolizando os recursos de outros.

E em todo o mundo, além da velha violência contra as mulheres e a natureza, há uma nova violência contra a Terra e contra as mulheres, e a chamamos de ecocídio, quando nos referimos à violência contra a Terra, e de feminicídio, pois as mulheres estão sendo assassinadas por defenderem sua terra, por defenderem seus rios, por defenderem suas águas. Por isso, é importante que em uma conferência sobre o feminismo seja abordada a mudança climática e que se discuta nossa relação com outras espécies.

Denuncia o patriarcado como o responsável pelo desastre que estamos vivendo. Qual é a sua análise da situação atual, em nível planetário?

Denuncio o patriarcado capitalista como responsável por isso: a convergência do domínio do dinheiro e do capital e o domínio do poder masculino. Já tivemos patriarcado antes, mas não levou à mudança climática, provocou desigualdade, mas não nos levou à mudança climática. Só o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado que nos levaram à crise que ameaça o planeta e, portanto, ameaça o nosso futuro. É por isso que, em todos os lugares, as mulheres estão se levantando em defesa da terra.

Todas as guerras que eu conheço, recentes ou antigas, são guerras por disputas pelos recursos da Terra, para poder se apoderar dos recursos da Mãe Terra. A maioria das guerras do nosso tempo são guerras do petróleo. Se olhamos para o Oriente Médio, é uma guerra do petróleo. De certa forma, há uma monopolização de recursos: na guerra da Ucrânia, na América Latina, em todos os conflitos... Por que o presidente da Bolívia foi destituído por um golpe de Estado? Pelo lítio. E na África, a cada passo, há golpes de Estado e massacres pelos recursos daquele continente tão rico.

Como alternativa, propõe a Democracia da Terra. Você pode explicar em que consiste?

democracia da Terra é o simples reconhecimento de que fazemos parte da rede da vida, de que outras espécies como árvores, micróbios e animais são nossos parentes, mantêm relações conosco, são nossos parentes, como dizem os indígenas norte-americanos. E a Democracia da Terra é o reconhecimento de que nos sistemas da Terra existe diversidade. Ou seja, que um micróbio é muito diferente de um enorme elefante, mas ambos são iguais em seus direitos.

Então, Gaia tem uma democracia na qual não discrimina em função do tamanho e do poder ou em função da dominação. Isso significa que a democracia da Terra é uma democracia para que cada ser possa viver e, dentro da Democracia da Terra, também estamos nós porque somos uma espécie, a espécie humana, e não há razão para que haja desigualdade entre os sexos. Somos todos iguais.

Você representa movimentos globais, como o feminismo e o ambientalismo juntos, e desenvolve suas propostas a partir de uma posição não violenta. O que diria para alguns movimentos que realizam suas atividades de modo separado?

Em todos os sistemas de vida, quando há organização também há simbiose, também existe interligação, também há reciprocidade. E assim como a natureza que funciona com a diversidade e de forma interligada, nós, como movimentos da não-violência, para deter a violência contra a Terra, contra as mulheres, contra as gerações futuras, precisamos, é claro, ter unidade, precisamos estar definitivamente interligados. Não precisamos de ninguém que nos diga de cima o que é que temos que fazer. Temos que nos auto-organizarmos, mas de forma interligada.

Doutora, você fala que necessitamos descolonizar a mulher, a Terra e o futuro... Quanto ao futuro, qual a sua opinião acerca da implementação de uma renda básica universal e incondicional?

Bem, eu aprecio a igualdade de renda, mas também acredito no direito fundamental ao trabalho, porque o trabalho dá sentido, o trabalho é identidade. Não consigo imaginar um mundo onde todos estejam sem trabalho, como disse o senhor Zuckerberg em seu discurso na Harvard: no futuro, 99% das pessoas serão inúteis porque a Inteligência Artificial e os robôs farão o trabalho dos seres humanos. E se nesse contexto, onde somos considerados desnecessários, inúteis, se nesse contexto, tivéssemos uma renda universal só para nos mantermos com vida, não seríamos plenamente livres, nem plenamente humanos.

Então, parece-me muito bom que haja uma renda básica universal com o direito universal ao trabalho, mas não aceito uma renda básica universal com todos desempregados e descartados. Não quero uma renda básica universal do lixo, em que nos considerem o suficientemente descartáveis para nos jogar no lixo. É por isso que eu digo que temos que ter os dois. Se tivermos apenas um e continuarmos em uma economia que gera desemprego e em que as pessoas são descartáveis, nesse contexto, uma renda básica pode chegar a ser genocida, simplesmente genocida, mataria as pessoas.

Em primeiro lugar, o que é que seria universal? Eu ficaria muito contente se cada pessoa do mundo fosse paga em dólares, mas a renda básica universal será em dólares ou em criptomoedas? E quem decidirá qual é o seu valor, quanto você custa? O direito do ser humano é o direito a ser criativo, é o direito a ser criativo através do trabalho e, nesse sentido, sem dúvida, deveríamos ter igualdade de renda. Não é certo que algumas pessoas que estão jogando com dinheiro fictício no grande mundo financeiro ganhem um milhão de dólares, em um mês, e alguém que mantém nossos espaços limpos não possa ganhar o mínimo para poder comer e pagar o seu aluguel.

Sendo assim, uma renda básica universal funcionaria maravilhosamente se ficasse dentro do marco em que todos possam trabalhar e onde cada um possa escolher em que trabalhar. Se quero ser uma professora, tenho que poder ser professora. Se quero ser um carpinteiro, deveria poder ser carpinteiro. Se quero ser um camponês, deveria ter o direito de poder ser um camponês e, portanto, ter igualdade de oportunidades e não a desigualdade, onde 1% controla toda a riqueza do mundo, neste momento, e depois diz aos 99% que possuem algumas migalhas.

É por isso que a renda básica universal também implicaria a moradia como bem comum. Deveríamos poder pagar por um lugar onde morar. Veja o que aconteceu na Espanha, depois da crise financeira de 2008, em que as pessoas perderam suas casas, assim como o que está acontecendo nos Estados Unidos: as pessoas estão perdendo suas casas.

Você não pode ter pessoas sem teto e ter renda básica. Precisa ter um lugar onde morar, precisa ter direito à alimentação, ter direito à água, à educação, à energia básica. Tudo isso junto: a renda dentro desse contexto como algo a mais, pois a renda não é o único valor já que o dinheiro se tornou a única medida de valor e desvalorizou a natureza, desvalorizou o trabalho das mulheres.

Precisamos de uma diversidade de valores: o valor de um arvoredo sagrado, de uma floresta sagrada, o sagrado é um valor, mas não em termos de dinheiro, significa que essa floresta não pode ser tocada, um manancial sagrado não pode ser tocado. Então, precisamos que o trabalho da natureza seja valorizado, precisamos que o trabalho das mulheres seja valorizado, respeitado e reconhecido pelo que contribui. Sem o trabalho das mulheres, a sociedade não se sustentaria. É o trabalho mais importante.

Vivemos em uma economia dominada pelo mercado, a renda básica ganha importância, mas nem em todas as partes existe uma economia de mercado. Lá, em uma cultura indígena, em uma economia camponesa, o direito a suas sementes, o direito à terra e o direito à alimentação são importantes para que você possa ter uma vida e possa se manter.

Seguindo com o futuro e para ir encerrando, onde habita a esperança para você?

Onde deposito a minha esperança? Bem, eu cultivo a esperança, e cultivo a esperança plantando uma semente e a semente me dá esperança. Sim, você vê uma sementinha, as sementes de mostarda são muito pequenas ou as sementes de milhete são tão pequeninas e, em poucas semanas, começam a crescer e um pé de milhete pode se tornar muito alto e um pé de mostarda pode me dar mil sementes. Esse poder de criação, esse poder para que possamos ser cocriadores com a Terra, isso me dá esperança. Não como uma ideia fictícia, mas como uma realidade, uma prática, uma colaboração na qual podemos trabalhar com a terra para poder criar um futuro, em vez de destruir a terra para destruir nosso futuro. Essa possibilidade está ao nosso alcance como espécie humana.

Existem muitas pessoas no mundo que seguem seus princípios. Como o seu movimento está se desenvolvendo?

O bonito dos movimentos é que ampliam nosso potencial e, portanto, também ampliam o potencial de nosso futuro. Possuem sua própria tendência de crescer porque todo mundo tenta encontrar uma saída neste colapso sem saída. As pessoas não querem fazer parte de um sistema que está afundando, entrando em colapso.

Contudo, por outro lado, quando os sistemas entram em colapso, é o trabalho que fazemos para cultivar nossos próprios alimentos, para criar moradias comuns, para criar saúde coletiva… são esses os sistemas que nos ajudam a avançar e foi o que vimos durante a Covid e confinamento: o sistema dominante não estava disponível para as pessoas, as cadeias de abastecimento entraram em colapso, mas as hortas de nossos membros, que são mulheres, cresciam por todas as partes. Não só davam comida às pessoas, mas também esperança. Então, para além do colapso, existe uma horta.

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