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Sunday, 2 April 2023

10 poemas incríveis de Manoel de Barros para crianças

 https://www.culturagenial.com/poemas-manoel-de-barros-infancia/

Conheça 10 poemas incríveis de Manoel de Barros para crianças


Laura Aidar
Laura Aidar
 
Arte-educadora, fotógrafa e artista visual

A poesia de Manoel de Barros é feita de singelezas e coisas "sem nome".

O escritor, que passou sua infância no Pantanal, foi criado em meio à natureza. Por conta disso, trouxe para seus textos todo mistério dos bichos e plantas.

Sua escrita encanta pessoas de todas as idades, tendo uma conexão, sobretudo, com o universo infantil. O escritor consegue exibir de forma imaginativa e sensível suas reflexões sobre o mundo através das palavras.

Selecionamos 10 poemas desse grande autor para você ler para os pequenos.

1. Borboletas

Borboletas me convidaram a elas.
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza,
um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de
uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul.

Manoel de Barros publicou esse poema no livro Ensaios fotográficos, lançado em 2000. Nele, o escritor nos convida a imaginar o mundo através do "olhar" das borboletas.

E como seria esse olhar? Segundo o autor seria enxergar as coisas de uma forma "insetal". Essa palavra não existe na língua portuguesa, é um termo inventado e dá-se o nome de neologismo a esse tipo de criação.

Manoel de Barros utiliza bastante esse recurso em sua escrita para conseguir dar nome a sensações que ainda não foram definidas.

Aqui, ele chega a algumas "conclusões" por meio de seu olhar subjetivo e quase etéreo. Podemos dizer que o autor, basicamente, exibe uma inteligência e sabedoria da natureza muito maior do que a dos seres humanos, que se esquecem muitas vezes que são parte da natureza.

2. O menino que carregava água na peneira

manoel de barros
Arte feita por bordadeiras de Minas Gerais, grupo Matizes Dumont, que ilustra o livro Exercícios de ser criança

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

Esse lindo poema faz parte do livro Exercícios de ser criança, publicado em 1999. Por meio do texto, adentramos o universo psicológico, fantástico, poético e absurdo de uma criança.

O menino que carregava água na peneira narra as peraltagens de um garoto que gostava de fazer coisas consideradas ilógicas, mas que para ele tinham um outro significado. Para ele, tais despropósitos eram parte de um sistema maior e fantasioso de brincadeiras que o ajudavam a compreender a vida.

No poema, percebemos a relação amorosa da mãe com sua cria. Ela, a princípio, argumenta que "carregar água na peneira" era algo sem sentido, mas depois, se dá conta da potência transformadora e imaginativa dessa ação.

A mãe então, incentiva o filho, que com o passar do tempo também descobre a escrita. Ela diz que o menino será um bom poeta e fará diferença no mundo.

Nesse poema, podemos considerar que, talvez, o personagem seja o próprio autor, Manoel de Barros.

3. Um bem-te-vi

O leve e macio
raio de sol
se põe no rio.
Faz arrebol…
Da árvore evola
amarelo, do alto
bem-te-vi-cartola
e, de um salto
pousa envergado
no bebedouro
a banhar seu louro
pelo enramado…
De arrepio, na cerca
já se abriu, e seca.

O poema em questão integra o livro Compêndio para uso dos pássaros, lançado em 1999. Nesse texto, Manoel nos descreve uma cena bucólica e bastante habitual de um bem-te-vi a banhar-se em um fim de tarde.

O autor, por meio da palavras, nos conduz a imaginar e contemplar um acontecimento corriqueiro, mas incrivelmente belo.

Esse pequeno poema pode ser lido para as crianças como um maneira de incentivar a imaginação e valorização da natureza e das coisas simples, nos colocando como testemunhas das belezas do mundo.

4. Mundo pequeno I

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco,
os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa.
Ele me rã.
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

Mundo Pequeno está contido no Livro das Ignorãças, de 1993. Mais uma vez, Manoel de Barros nos convida, nesse poema, a conhecer seu espaço, sua casa, seu quintal.

É um universo natural, cheio de simplicidade, plantas e bichos, que o autor consegue converter em um ambiente mágico, de contemplação e até mesmo gratidão.

No texto, o personagem principal é o próprio mundo. O menino em questão, se apresenta amalgamado à natureza, e o autor depois aparece também imerso nesse lugar, afetado intensamente pela força criadora dos animais, das águas e das árvores.

As crianças podem se identificar com o cenário proposto e imaginar a avó, o menino e o velho, figuras que podem trazer um resgate e sugestão para uma infância simples e descomplicada.

5. Bernardo é quase uma árvore

Bernardo é quase uma árvore
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho;
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três
Fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
Incompletude?)

No Livro das Ignorãças, de 1993, Manoel de Barros incluiu o poema Bernardo é quase uma árvore. Nele, o personagem Bernardo carrega uma intimidade tão grande com a natureza e um senso de percepção do todo, que é quase como se ele próprio se transformasse em árvore.

Manoel traça uma relação fecunda entre o trabalho e a contemplação, dando a importância devida ao ócio criativo e à sabedoria adquirida do contato com as coisas naturais.

No poema, temos a sensação de que o personagem é uma criança. Entretanto, na realidade, Bernardo era um funcionário da fazenda de Manoel. Um homem simples do campo que conhecia estreitamente os rios, os horizontes, o amanhecer e os passarinhos.

6. A menina avoada

Foi na fazenda de meu pai antigamente
Eu teria dois anos; meu irmão, nove.

Meu irmão pregava no caixote
duas rodas de lata de goiabada.
A gente ia viajar.

As rodas ficavam cambaias debaixo do caixote:
Uma olhava para a outra.
Na hora de caminhar
as rodas se abriam para o lado de fora.
De forma que o carro se arrastava no chão.
Eu ia pousada dentro do caixote
com as perninhas encolhidas.
Imitava estar viajando.

Meu irmão puxava o caixote
por uma corda de embira.
Mas o carro era diz-que puxado por dois bois.

Eu comandava os bois:
- Puxa, Maravilha!
- Avança, Redomão!
Meu irmão falava
que eu tomasse cuidado
porque Redomão era coiceiro.

As cigarras derretiam a tarde com seus cantos.
Meu irmão desejava alcançar logo a cidade -
Porque ele tinha uma namorada lá.
A namorada do meu irmão dava febre no corpo dele.
Isso ele contava.

No caminho, antes, a gente precisava
de atravessar um rio inventado.
Na travessia o carro afundou
e os bois morreram afogados.
Eu não morri porque o rio era inventado.

Sempre a gente só chegava no fim do quintal
E meu irmão nunca via a namorada dele -
Que diz-que dava febre em seu corpo."

A menina avoada compõe o livro Exercícios de ser criança, publicado em 1999. Ao ler esse poema, viajamos juntos com a menina e seu irmão e adentramos as memórias de sua primeira infância.

Aqui, é narrada uma brincadeira imaginativa em que a menininha é conduzida em um caixote por seu irmão mais velho. O poeta consegue compor uma cena de divertimento infantil ao retratar o imaginário das crianças, que vivem verdadeiras aventuras em seus mundos interiores, mas na realidade estavam apenas atravessando o quintal de casa.

Manoel de Barros eleva, com esse poema, a capacidade criativa das crianças a um outro patamar. O escritor exibe também o sentimento amoroso de forma ingênua, com uma beleza sutil, através da namorada do irmão.

7. O fazedor de amanhecer

Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.

Nesse poema, publicado no livro O fazedor de amanhecer, em 2011, o poeta subverte o sentido das palavras e exibe orgulhoso seu dom para coisas "inúteis".

Ele nos conta que suas únicas "invenções" foram objetos fantasiosos para fins igualmente utópicos. Manoel consegue conciliar o caráter prático de ferramentas e máquinas com uma aura imaginativa e considerada supérflua.

Entretanto, a importância que o autor dá para essas inutilidades é tão grande que considera elogioso ser intitulado como "idiota" nessa sociedade.

8. O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Poema extraído de Memórias Inventadas: As Infâncias de de Manoel de Barros, de 2008. O apanhador de desperdícios exibe um poeta que tem como característica "colecionar" as coisas sem importância.

Ele valoriza essas coisas, considerando osacontecimentos banais da natureza como verdadeiras riquezas. Assim, rejeita a tecnologia em prol dos animais, plantas e elementos orgânicos.

Outro ponto importante do texto versa sobre a preciocidade do silêncio, tão raro nos grandes centros urbanos. Aqui, ele exibe sua intenção de fazer das palavras ferramentas para dizer o "indizível", criando nos leitores um espaço interno de contemplação da existência.

9. Deus disse

Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.

O poema em questão consta no projeto A biblioteca de Manoel de Barros, coleção com todas as obras do poeta, lançado em 2013.

No texto, o autor manipula as palavras, trazendo novos significados e surpreendendo o leitor ao aliar sensações díspares em uma mesma frase, como no caso de "escutar o perfume dos rios". Manoel utiliza-se bastante desse recurso de sinestesia em suas obras.

O poema se aproxima do universo das crianças, pois sugere fantasiosas cenas que o aproximam da natureza, tendo uma relação até mesmo com brincadeiras, como no verso "sei botar cílios nos silêncios".

10. Exercícios de ser criança

exercícios de ser criança
Bordado de mulheres de Minas Gerais, que ilustra a capa do livro Exercícios de ser criança

No aeroporto o menino perguntou:
-E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
-E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.

Esse poema integra o livro Exercícios de ser criança, de 1999. Aqui, Manoel de Barros expõe de forma incrível a ingenuidade e curiosidade infantil através do diálogo entre uma criança e seus pais.

O menino faz uma indagação muitopertinente na imaginação dele, mas que por ser algo que não se constitui uma preocupação para os adultos, acaba sendo recebida com surpresa.

Entretanto, a criança insiste, querendo saber o que aconteceria se um avião trombasse com um pássaro triste em pleno voo. A mãe então, entende que aquela curiosidade trazia também uma grande beleza e poesia.

Manoel de Barros musicado para crianças

Alguns poemas do escritor foram transformados em canções para crianças através do projeto Crianceiras, do músico Márcio de Camillo. Ele passou 5 anos estudando a obra do poeta para a elaboração das músicas.

Confira um dos clipes do projeto feito com a técnica de animação.

Quem foi Manoel de Barros?

Manoel de Barros nasceu em 19 de dezembro de 1916 em Cuiabá, no Mato Grosso. Formou-se em direito no Rio de Janeiro em 1941, mas já em 1937 havia publicado seu primeiro livro, intitulado Poemas concebidos sem pecado.

Na década de 60 passa a dedicar-se à sua fazenda no Pantanal e, a partir dos anos 80, tem o reconhecimento do público. O escritor teve uma produção intensa, publicando mais de vinte livros ao longo da vida.

Em 2014, depois de se submeter a uma cirurgia, Manoel de Barros falece, em 13 de novembro, no Mato Grosso do Sul.

poeta manoel de barros

Livros de Manoel de Barros direcionados ao público infantil

Manoel de Barros escrevia para todo tipo de pessoa, mas sua maneira tão espontânea, simples e fantasiosa de enxergar o mundo acabou cativando o público infantil. Dessa forma, alguns de seus livros ganharam reedições direcionadas para as crianças. Entre eles:

  • Exercícios de ser criança (1999)
  • Poeminhas pescados numa fala de João (2001)
  • Poeminhas em língua de Brincar (2007)
  • O fazedor de amanhecer (2011)

Não pare por aqui, leia também:

Thursday, 9 June 2016

Manoel de Barros - em três entrevistas

http://www.elfikurten.com.br/2016/06/manoel-de-barros.html

Manoel de Barros - em três entrevistas

Manoel de Barros - foto: Marlene Bergamo | Folhapress

2016 - CENTENÁRIO DO POETA MANOEL DE BARROS
(reproduziremos as três entrevistas publicadas originalmente na revista Caros Amigos)

Três momentos com um gênio
Entrevista publicada na edição 117 de Caros Amigos, em 2008, uma das raras vezes em que o poeta recebeu jornalistas em sua casa – em geral, preferia responder às entrevistas por escrito.
Por Bosco Martins, Cláudia Trimarco e Douglas Diegues

“Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens”

O mito se encontrava apoiado na balaustrada da embarcação, olhando andorinhas que se dirigiam ao pôr-do-sol. A cena se passa na década de 40 e o encontro se deu num barco no “mar paraguaio” do Pantanal sul-mato-grossense. Transbordando encantamento, o rapaz franzino se aproxima do grande escritor, que todo aristocrático se abanava num leque. “Andorinhas encurtam o dia.” Ao fazer o verso de improviso, iniciou-se naquele momento a amizade entre o poeta e o seu mito.

As semelhanças entre Guimarães Rosa e Manoel de Barros adquiriram formas evidenciadas em suas trajetórias literárias e pessoais, a partir daquele instante. 

Manoel de Barros - foto: Lucas de Barros
As estruturas formais da poesia de Barros se assemelham ao mistério semântico da obra de Rosa. Não só criam e remexem com as palavras, mas se servem de uma maneira bastante simbólica da linguagem popular, mesmo eles tendo escrito em gêneros diferentes, um em poesia e outro numa prosa poética. Como no romance de Rosa, a poesia de Manoel de Barros também pode ser lida em vários níveis. Especialista nas obras de Barros e Rosa, o professor da Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande, MS, Marcelo Marinho, diz que a originalidade linguística do poeta e do escritor dificulta a tradução da obra de ambos para outros idiomas: “Alguns tradutores quando não entendem o sentido da palavra a suprimem”. Marinho estuda os campos semânticos, que são campos de palavras próximas, das obras de Barros e Rosa. Ambos são autobiográficos. Grande Sertão: Veredas foi qualificado pelo próprio Rosa como uma “autobiografia irracional” de personagens reais. A guerra de Riobaldo (alter ego de Guimarães) contra Hermógenes significa uma profunda critica à literatura da década de 1950, que já se tornara estéril, não tinha mais para onde ir. Então Riobaldo, ao lado de outros jagunços, como Dos Anjos, simbologia para o poeta Drummond, combate a má literatura. Remanescente dessa filiação literária, Manoel de Barros também bebeu na fonte dos clássicos e tem influências dos “faróis” da literatura mundial, como Homero, ValéryBaudelaire
Aliado de Rosa contra a poesia ruim, seus personagens também são reais, como Zezinho-Margens-Plácidas, fazedor de discursos patrióticos; Maria-Pelego-Preto, tão abundante de pêlo no pente que o pessoal pagava pra ver, Mário-Pega-Sapo, que esfolava os batráquios a canivete para ver o futuro dos outros nas entranhas, e Bernardo, o transfazedor da natureza. Com recorte original e formas diferentes de fazer leitura de sua poesia, alguns enxergam nela o erotismo. Uma relação quase carnal com as palavras, com a intenção do poeta de dar à luz novos mundos. 
Nesta entrevista, o poeta revela outra forma de se manifestar: responde às perguntas de forma poética batendo à máquina em sua velha Olivetti.
Quando faz cinqüenta anos que Guimarães Rosa lançava Grande Sertão: Veredas, você completa 90 anos, também recriando e remexendo com as estruturas formais da literatura. Trace um paralelo do que representa este momento. 
Outra vez o Rosa me contou: “Precisei botar o nosso idioma a meu jeito a fim que eu me fosse nele. Botei minhas particularidades. Usei de insolências verbais, sintáticas e semânticas, me encaixei na linguagem. Fiz meu estilo. Eu achava que o escritor havia que estar pregado na existência de sua palavra. E você, Manoel?” Me perguntou. Respondi: “Eu andei procurando retirar das palavras suas banalidades. Não gostava de palavra acostumada. E hoje gosto mais de brincar com as palavras do que de pensar com elas. Tenho preguiça de ser sério”.

O que ficou na sua cabeça do encontro com Rosa?

Conheci o Rosa na primeira viagem que ele fazia para o Pantanal. Fui ao encontro de um mito. Porque, para mim, ele era um mito. Porém, no instante que o conheci, ele se tornou um ser amável e bom de conversa. Conversamos sobre nada e passarinhos. Foi uma conversa instrutiva!

Aos 90 anos sempre voltamos à infância? Você afirma que seu conhecimento vem da infância. É porque talvez, como Sócrates, tudo que sabemos é que nada sabemos?

A metáfora era essa mesmo. Tudo o que eu aprendera até meus 90 anos era nada; meus conhecimentos eram sensoriais. O que aprendi em livros depois não acrescentou sabedoria, acrescentou informações. O que sei e o que uso para a poesia vêm de minhas percepções infantis.

Fale um pouco sobre a infância, a juventude e a velhice.

A um editor que me sugeriu que escrevesse um livro de memórias eu respondi que só tinha memória infantil. O editor me sugeriu que fizesse memória infantil, da juventude e outra da velhice. Estou escrevendo agora minhas memórias infantis da velhice.

Tem uma frase de um ator que nunca me saiu da cabeça.  Dizia que Deus fez tudo bom, só cometendo um erro: a duração da vida. A vida é muito curta e deveria ser não infinita, pois seria muito chata, mas pelo menos o dobro. Duas vidas, uma para ensaiar e outra pra representar. Você concorda com isso?

Concordo, sim. E até proponho uma solução científica. Seja esta:

O Tempo só anda de ida.
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o Tempo no Poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o Tempo no Poste!

E respondendo mais: dia que a gente estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste.

Se a angústia é um espinho na carne, que não se pode tirar, para o poeta a passagem do tempo é angustiante?

Para mim, viver nunca foi angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui. Sou como o vaqueiro Santiago. Santiago, no galpão, desafiou que não cairia de um cavalo famanaz de brabo que havia na fazenda. Todo mundo zombou do Santiago que estaria a contar vantagem. Então arrearam o cavalo famanaz e Santiago amontou de espora e chicote. O cavalo saiu disparado e a corcovear de lado e pra frente. Ao passar pelo galpão, os peões viram escrito à espora na paleta do animal esta frase: “Até aqui Santiago veio bem”. Pois é: até aqui...

O que se há de fazer frente ao mistério das coisas? E para o poeta, qual o sentido da vida?

Sou um homem de fé. Me acho incompleto e por isso preciso do mistério. Pra mim, a razão é acessório. Preciso acreditar que estou nas mãos de Deus. Sem fé eu me sinto um símio.

O que o poeta teria a dizer sobre o amor, a inveja e o ódio?

Algum tempo sonhei meu socialismo. Seria baseado nas palavras de Cristo: “Amar ao próximo como a nós mesmos”. Logo enxerguei que o sonho era utópico. Porque o ser humano nasce com ambições diferentes. Ambição de poder. Ambição de dinheiro. Como então amar ao próximo como a ele mesmo? A palavra de Cristo é genial e por isso utópica. A ambição destrói qualquer amor ao próximo. A inveja e o ódio também.

O pintor Marc Chagall, morto em 1985, dizia que a coisa mais importante na vida era o amor: “Se você tem uma mulher a quem ama, então isso é tudo”.

Encontrei na Stella a mulher e companheira de todas as horas. Na alegria e na tristeza – como nos prometemos no casório. Conseguimos um amor profundo e sonhado em todos os dias.

Um dos seus poucos livros “inéditos” e fora do prelo, Nossa Senhora da Minha Escuridão, é um livro um tanto deísta, meio católico para quem o leu. Você crê mesmo em Deus ou, como a maioria dos poetas, no fundo, no fundo, é um agnóstico?

Eu não sou agnóstico. Eu creio em Deus mesmo. E não precisei ler muito para descrer; eu aprendi alguma coisa lendo. Mas onde eu aprendi mais foi na ignorância. A inocência da natureza humana ou vegetal ou mineral me ensinaram mais. Quem não conhece a inocência da natureza não se conhece. Não há filosofia nem metafísica nisso. O que sei, na verdade, vem das percepções infantis. Que não deixa de ser o ensino pela ignorância.

Por que alguns acham graça na sua poesia? Seria por expor um dialeto infantil? Memórias Inventadas – A Segunda Infância, por exemplo, seria na sua concepção uma brincadeira de criança?

Aprendi com meu filho quando ele tinha 5 anos que a linguagem das crianças funciona melhor para a poesia. Meu filho falou um dia: “Eu conheço o sabiá pela cor do canto dele”. Mas o canto não tem cor! Aí veio Aristóteles e lembrou: “É o impossível verossímil”. Pois não tem disso a poesia? 

Seus versos têm mesmo pernas, bocas, sexo etc.? A humanização das coisas está em sua poesia?

Aprendi que o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mesmal.

Se tivesse que ser crítico de seus poemas, quais temas você diria que são mais recorrentes?

Acho que ser gente é o tema tão mais recorrente. Ou não ser gente. Se o tempo não é humano eu humanizo. Amarro o tempo no poste para ele parar. Boto a Manhã de pernas abertas para o sol. Me horizonto para os pássaros. Uma ave me sonha. O dia amanheceu aberto em mim.

Por que os clássicos são sempre necessários e quais influências na sua literatura, dos “faróis” da poesia mundial, Valéry, Baudelaire e Homero?

Penso que a partir dos “faróis” o poema passou a ser um objeto verbal. Por antes ele andava romântico. Recebia inspirações celestes. E até se falava em mensagens poéticas. Depois de Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, poesia passou a ser feita de palavras e não de sentimentos. Poesia é fenômeno de linguagem e não de idéias.

Quanto tempo da “inspiração súbita” demora para virar um poema?


Inspiração eu só conheço de nome. O que eu tenho é excitação pela palavra. Se uma palavra me excita, eu busco nos dicionários a existência ancestral dela. Nessa busca descubro motivos para o poema.

Você está escrevendo algo no momento? E, além de escrever, o que dá mais prazer ao poeta nos dias de hoje?

Estou escrevendo a terceira parte das minhas Memórias Inventadas. No demais releio minhas velhas preferências literárias. E de tarde, bem na hora do crepúsculo do dia que emenda com o meu crepúsculo, ouço música. A música erudita, principalmente, desabrocha minha imaginação. Acrescento um pouco de álcool que me ajuda a ter visões. Mais tarde elaboro as visões.

De que forma você recebe as críticas positivas e negativas sobre o seu trabalho?

Não sou diferente: as críticas contra fazem um gosto amargo na alma. As boas melhoram o nosso ego.

Você tem fascínio pelo primitivismo e já morou com índios. O que seria o conceito de vanguarda primitiva?

Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios. Gosto muito também de ler as narrativas dos antropólogos.

Na sua concepção, o ódio não se caracterizou muito neste último século? Para o poeta ainda existe alguma esperança no futuro?

Eu me considero um songo no assunto.

****
Vanguarda Primitiva é uma criação coletiva do poeta Manoel de Barros, do jornalista Bosco Martins e do poeta do portunhol selvagem Douglas Diegues
Manoel de Barros - foto (...)
Surgiu inspirada em uma conversa literária que quer transformar o grau de conhecimento em índice de desenvolvimento humano através da fascinação pelo primitivo. Não curralesca e nem esotérica, a vanguarda primitiva já rendeu algumas obras em seu caminho para as origens. Kosmofonia Mbyá Guarani, registro literário-musical, da Editora O Morto q Fabla, de Guilhermo Sequera, organizado por Douglas Diegues, traz o seguinte registro de Manoel sobre a obra: “Ouvi os cantos, a voz, os murmúrios dos MBYA Guaranis. Eles me transportaram para a fonte das palavras. Me levaram para os ancestrais, para os fósseis lingüísticos, lá onde se misturam as primeiras formas, as primeiras vozes! A voz das águas, do sol, das crianças, dos pássaros, das árvores, das rãs... Passei quase duas horas deitado nos meus inícios, nos inícios dos cantos do homem”
Outras obras da Vanguarda Primitiva: o programa de televisão O Outro Lado de la Frontera, de Douglas Diegues; o livro La Máquina de Hacer Paraguayitos, de Wáshington lphidio Cucurto, editado pela Editora Eloísa Cartonera, em capa de papelão; O Poeta É um Ente que Lambe as Palavras e se Alucina, de Arlindo Fernandes; o documentário Wega Nery, a Dama das Artes Plásticas, de Luiz Taques; a revista literária Ontem Choveu no Futuro; O Mandruvá, um site cultural que ficou só no sonho (sonhar faz parte da vanguarda primitiva), e rendeu mais esta entrevista inéditapublicada agora pela Caros Amigos, concedida à jornalista Cláudia Trimarco. O poeta responde escrevendo a mão, uma das formas que escolhe quando quer se expressar poeticamente.

Quais palavras/cores, fatos/fotos melhor explicam o Manoel de Barros? 

Palavra: parvo; cores: o azul; fatos: passei a vida tentando escrever em língua de brincar. Minhas palavras são de meu tamanho; eu sou miúdo e tenho o olhar pra baixo. Vejo melhor o cisco. Minhas palavras aprenderam a gostar do cisco, isto é, da palavra cisco. E das coisas jogadas fora, no cisco. Pra ser mais correto: as coisas que moram em terreno baldio.

Como você define o Poeta? Se pudesse, o que reinventaria?

Poeta é uma pessoa que luta com palavras. Carlos Drummond escreveu: lutar com palavras é uma luta vã. Se eu pudesse, reinventaria outro sinônimo para Poeta. Poeta seria o mesmo que parvo. É um sujeito que, em vez de mexer com borboletas, pedras, caracóis, mexeria com as coisas úteis.

O que o Pantanal significa na vida do Manoel?

Pantanal é o lugar da minha infância. Recebi as primeiras percepções do mundo no Pantanal. Meu olhar viu primeiro as coisas no Pantanal. Minhas ouças ouviram primeiro os ruídos do mato. Meu olfato sentiu primeiro as emanações do campo. E assim com os outros sentidos. O que eu tenho de preciso são as primeiras emanações que Aristóteles chamaria de nossos primeiros conhecimentos.

A poesia extravasa ou explica seus sentimentos?

Eu acho que não explica nada, mas extravasa as minhas primeiras percepções.

Quais são as três coisas mais importantes para você?

As três coisas mais importantes para mim são duas: o amor e a poesia.

Como é o dia-a-dia do “Manoel”?

Tenho uma rotina quase militar. Acordo às 5 horas, tomo um copinho de guaraná em pó, caminho 25 minutos, tomo café com leite, subo para o meu escritório de ser inútil. Desço meio dia, tomo dois uísques, almoço e sesteio. O resto é pra ouvir música. E ver o dia morrer.

O andarilho é um poeta por excelência? É assim que você se sente?

Andarilho é um ser que honra o silêncio. Essa é uma qualidade de escol. Ele não sabe se chegou. Não sabe pra onde vai. E gosta de rio, de árvore e de passarinho. Andarilho é um ser errático – igual a poesia.

Por que o Poeta se esconde da mídia?


Por temperamento? Não tenho outra explicação. Até não sei se me encontro mesmo. Vai ver que me escondo para aparecer!

Como você vê a ação do tempo sobre o homem?


No meu caso, o tempo estragou mais o meu corpo. Não posso mais amar total. Não posso mais correr, dar salto mortal, ver longe, nem ouvir longe. Na minha imaginação criadora, o tempo não se meteu. Sobre os outros homens, cada um tem sua carga.

Qual o futuro que você vê para a Poesia? E o Planeta Terra tem futuro?

Não sei. Acho que os cientistas estão furando tanto o planeta que não sei nada sobre o futuro. Sou um homem de fé e acredito na terra para sempre. Se a terra permanecer e os seres humanos não voltarem ao chipanzé, que Darwin diz que tomará – se isso não acontecer, a poesia permanecerá. Mas não sei.

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Manoel de Barros - foto: Marcelo Buainain
Esta terceira entrevista inédita foi concedida aos jornalistas Bosco Martins e Douglas Diegues, para o programa O Outro Lado de la Frontera, que será exibido no final do ano pela TV Educativa Regional de Mato Grosso do Sul. É também uma raridade, pois o poeta não costuma dar entrevistas da maneira convencional e muito menos aparecer na televisão.

Douglas Diegues – Explica pra nós, poeta, essa história da humanização de todas as coisas, uma língua de brincar.

É um dialeto infantil. Acho que passei a vida inteira brincando, porque todo mundo ri da minha poesia. Riem quando compreendem. Comecei a ler meus versos, são todos assim; quanto à razão, inclusive se você for raciocinar em cima do verso pra procurar o sentido, não acha a idéia, porque a linguagem apaga a idéia, a metáfora destrói qualquer idéia. As idéias depois, se quiserem, inventam. 

Douglas Diegues – Estamos no centro do Brasil ou no umbigo dele, entre as culturas ancestrais e a modernidade. Depois que li Manoel de Barros, quis ir mais pra trás, ler os índios, pra ver se encontrava o Manoel por lá.

É aquela história que nós inventamos do Movimento de Vanguarda Primitiva. É uma vanguarda, mas é primitiva, que renova. Ler a palavra, a poesia, renova a gente. O original vem das palavras, do contato que você tem com o primitivismo, que pra mim é sempre fascinante. Inclusive andei e morei por lá, era uma questão só de fascinação. Não tinha intenção de empregar na minha poesia, não percebia o quanto iria ajudar na minha poesia, depois dessa viagem que fiz pela Bolívia, Equador, Peru, que tive um choque cultural e comecei a mergulhar bem nessa questão. Quando fui morar nos Estados Unidos, chego lá e como a conhecer Picasso, escutar Bach, Beethoven, vou conhecer pessoas que eram artistas de verdade. Era jovem ainda, devia ter meus 27, 28 anos e coisa contemporânea e erudita causou um choque entre o erudito e o primitivo dentro de mim. Eu passava a tarde inteira numa igreja do século 13, que foi transportada de avião pedra por pedra de uma cidadezinha da Itália e construída perto de um parque. A Itália tinha dinheiro e fazia coisas grandiosas. Dentro da igreja tinha bancos, e o dia inteirinho até as 10 horas da noite tinha algum padre tocando Bach, Beethoven, alguma coisa da música barroca e eu me empolgava, porque era uma coisa que alimentava muito a minha sensibilidade.

Bosco Martins – Os poetas só gostam de música erudita?

Não, gosto de tudo. Chico, Paulinho da Viola, tudo que toca, mas estou com meu ouvido meio enferrujado.

Bosco Martins – Te angustia envelhecer?

A gente envelhece mesmo. Desde os 5 anos eu já era velho, porque uso óculos. Desde os 5 anos descobriram e me levaram ao médico e receitaram óculos. Pra longe. Mas isso nunca atrapalhou a poesia. Pra perto eu tiro os óculos. Eu escrevo sem óculos na minha velha Olivetti.

Bosco Martins – Sua obra é autobiográfica, de personagens reais. Quando os personagens vão se esvaindo, o que sobra para inspiração do poeta?

Sabe o que é, Bosco? É aquilo que conversamos sempre. O meu conhecimento vem da infância. É a percepção do ser quando nasce. O primeiro olhar, o primeiro gesto, o primeiro tocar, o cheiro, enfim. Todo esse primeiro conhecimento é o mais importante do ser humano. Pois é o que vem pelos sentidos. Então, esse conhecimento que vem da infância é exatamente aquele que ainda não perdi. Os outros sentidos fomos adquirindo porque era quase uma obrigação. Era como um calço. Por que tem os repentistas, que são analfabetos, sabem fazer uma obra de arte mesmo que não estudaram? Fazem a poesia deles sem nenhuma preocupação estética. Todos têm que ler Homero? Poesias têm que ter palavras, uma feira de idéias.

Douglas Diegues – Mesmo com todas as angústias, você parece que é um dos homens mais felizes que conheci. Você vive em paz?

É a questão do nascimento, da criação. Acho que isso influi muito na vida. Sempre tive uma vida muito tranquila, porque fui criado no Pantanal com minha mãe, meu pai, meus irmãos, sem conflitos, com muito carinho, sem fome, sem notícia de que havia gente passando fome. Tudo isso conta para que minha poesia tenha substância.

Bosco Martins – A editora Planeta já encomendou novo livro? Quando vai pro prelo?

Estou trabalhando direto no meu próximo livro, que é o Memórias Inventadas, agora terceira infância.

Douglas Diegues – Beleza de entrevista no Estadão (sobre o Memórias Inventadas - A Segunda Infância).

Tenho recebido muitos pedidos de entrevistas. Nunca dou entrevista como essa para vocês. Só respondo por escrito. Tem tido uma repercussão muito boa esse livro. 

Bosco Martins – É que você fez esse livro com muito gozo, não é?

Eu só faço com gozo.

Bosco Martins – O poema que abre o livro, Estreante, é muito vigoroso. Estávamos comentando aquele trecho da “pancas”: “fui morar numa pensão na rua do Catete, a dona era viúva e mui vistosa e tinha uma indiana, que tinha pancas...”.

É uma expressão do português antigo. Pancas era peralta.

Douglas Diegues – Começa bem erótica A Segunda Infância.

Foi meu editor. Eu mandei dezesseis poemas e ele falou: “Vamos colocar esse na frente”. Eu pensei: será que vai dar certo? Ele tem a possibilidade pra vender o livro, pra que o livro seja aceito e esse poema parece muito bom.

Bosco Martins – São percepções não só da infância, mas também da sua adolescência...

O que aparece sempre é resultado de percepções. É verdade que eu estudei, tenho conhecimento fora disso, tenho conhecimento de lingüística, estudei tudo. Isso aí só importa para a sua técnica. Porque tem aquele poeta que diz que cultura é o caminho que o homem percorre pra se conhecer. Mas nós somos incompletos, nos sentimos incompletos. Só podemos ser completados pelo mistério. 

Douglas Diegues – Não tem sentido racional, é outro tipo de sentido.

Na verdade não tem sentido nenhum mesmo, essa incompletude nós só podemos completar com o mistério.

Bosco Martins – Uma vez você falou que o mistério é a coisa mais real.

É a coisa mais real. É real.
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Publicado originalmente em: Manoel de Barros: Três momentos com um gênio. "'entrevistas' concedidas a Bosco Martins, Cláudia Trimarco e Douglas Diegues". revista Caros Amigos - edição nº 117 - 2008 | Reproduzida em 13 novembro 2014.

Manoel de Barros - foto: Marcelo Buainain

“Não era apenas um poeta, um recriador de um idioma que, depois dele, se tornou mais nosso. Manoel de Barros era um filósofo que pensava o mundo por via da poesia. Havia uma outra lógica que corremos o risco de perder se não forem vozes como as dele a recuperar. Essa lógica é a da oralidade, da infância e da irreverência. Manoel impôs o valor das pequenas coisas e dos inutensílios num tempo em que tudo se mede pela utilidade e pela rentabilidade. Mais que um poeta, ele foi poesia. E, por isso, não foi”
- Mia Couto. depoimento. publicado no site Livre Opinião


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** Página atualizada em 8.6.2016


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