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necropolítica
Apresentação
Edição do mêsDetalhe da tela “O triunfo da morte” (1562), de Pieter Bruegel, o Velho
“No inconsciente, cada um de nós está convencido de sua imortalidade.” Foi com essa fórmula que Sigmund Freud descreveu o desafio de pensar a morte. Todos nós sabemos que somos mortais, mas, no fundo, não acreditamos nisso. Entre cognição e afeto, há um abismo. A morte não tem representação no inconsciente. É por isso que desejamos, a todo tempo, “matar a morte com o silêncio”, nossa estratégia-padrão diante da morte. Estamos sempre em exceção em relação a ela. Contudo, certas situações históricas, certos arranjos sociais tornam essa atitude vã. Diante da guerra, de um genocídio (declarado ou renegado, explícito ou não), de uma pandemia ou no interior de certas zonas de exclusão social nas quais a morte violenta faz parte da vida cotidiana, nossa hipocrisia diante da morte falha miseravelmente – ou deveria falhar. Quando já não se contam mortos um a um, precisamos nos perguntar: a morte verdadeiramente nos iguala a todos? Embora ela pareça se distribuir igualmente entre os humanos, o modo como a economia psíquica da morte incide nos corpos é claramente segmentada conforme marcadores de raça, classe, gênero, idade, religião e outros.
Outro conceito fundamental da psicanálise, tão crucial quanto o próprio inconsciente, é a pulsão. Mais uma vez, Freud não se furtou a incluir a morte na metapsicologia, formulando a pulsão de morte como uma tendência inerente a todo ser falante, que nos impele a retornar ao passado, a repetir o que não nos traz prazer, a sermos agressivos, a destruirmos a nós mesmos e aos outros. Dada a centralidade da morte na teoria analítica, não é de se espantar que a teoria psicanalítica do luto seja ainda hoje tão central não apenas para pensar a clínica, mas a própria política.
A morte tem muitas faces. Ela faz parte da política em muitos sentidos e em diversos aspectos. O poder soberano de decidir sobre a morte ou a vida dos súditos é um capítulo importante do que somos. As guerras, a escravidão, o nazifascismo, o colonialismo, o racismo, os totalitarismos e assim por diante caracterizam-se por capturar a morte como um ingrediente fundamental da ação política. Recentemente, o filósofo camaronês Achille Mbembe cunhou o conceito de necropolítica, que rapidamente se mostrou uma das ferramentas mais poderosas para ler o mundo contemporâneo. A necropolítica pode ser descrita como a gestão política da morte, isto é, como o conjunto de dispositivos e de técnicas que decidem quais corpos são matáveis e quais não são. Por quais mortes choramos, lamentamos e nos enlutamos? Quais mortes merecem nome, rosto e lágrimas? Quais, ao contrário, não passam de um número, às vezes nem mesmo isso? De quais mortes nos orgulhamos, zombamos e com quais nos deleitamos?
Necropolítica é um conceito em constante atualização e em rápida absorção não apenas no mundo acadêmico, mas no discurso. Em sua formulação mais conhecida, o conceito dialoga com o pensamento político do filósofo francês Michel Foucault, especialmente com a concepção de biopolítica. Grosso modo, na era da biopolítica, com suas viscerais relações com o liberalismo e o neoliberalismo, vivíamos sob a égide do “fazer viver, deixar morrer”.
O que Mbembe demonstra, em linhas gerais, é que as experiências colonial e pós-colonial complicam o quadro, uma vez que, nessas sociedades, o Estado abria mão do monopólio da morte violenta não para refreá-la, mas, ao contrário, para disseminá-la. Na era da pós-soberania, a mera submissão do cidadão às instituições “não garante nem sobrevida nem o empenho dessas instituições na sobrevida”, como formulou com precisão Hilan Bensusan. Se, em nome da cultura, eu renuncio à liberdade ou à soberania em troca de segurança, minha vida passa a funcionar como moeda de troca macroeconômica, o que anula o próprio fundamento do contrato social. Na era necropolítica, a morte violenta é como que terceirizada, insinuando-se de modo capilarizado e pulverizado no tecido social. Conforme sintetiza Silvio Almeida, “não é preciso que o Estado mate; basta que ele deixe morrer ou deixe matar. Ou ainda: que deixe que se matem uns aos outros”. Por esse conjunto de razões, a necropolítica deixa de ser uma exclusividade do Estado e passa a emprestar energia à população armada, seja ela composta por indivíduos fanáticos solitários, seja ela organizada como facções criminosas, milícias, grupos paramilitares e assim por diante. O monopólio estatal do uso da violência transforma-se numa espécie de oligopólio paraestatal. Foi o estudo rigoroso da violência racista da experiência colonial que permitiu a Mbembe descrever essa lógica ainda mais cruel e mais brutal que, modernamente, torna-se o paradigma da política contemporânea. No conceito de necropolítica convergem diversas linhas do pensamento político contemporâneo, mas nem sempre fica claro o papel central desempenhado pela psicanálise como um dos componentes principais do pensamento de Mbembe. Não por acaso, Freud é mobilizado em diversos momentos de sua obra, desempenhando um papel crucial.
O dossiê que o leitor tem em mãos realiza duas tarefas. Primeiramente, busca compreender o papel da leitura de Freud na formulação do conceito de necropolítica; em segundo lugar, busca trazer a necropolítica como chave de leitura da realidade brasileira atual. Essas duas tarefas se cruzam e se sobrepõem na argumentação dos articulistas convidados.
Gilson Iannini é professor do Departamento de Psicologia da UFMG.
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