Monday 26 December 2022

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As razões da inimizade

Edição do mês
As razões da inimizade
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Morador do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, almoça em um restaurante na presença de policiais militares (Antonio Scorza/Shutterstock)

 

Políticas da inimizade, de Achille Mbembe, publicado na França em 2016 e no Brasil pela n-1 edições em 2020, é uma reflexão implacável acerca da constituição de uma “sociedade da inimizade”, que caracterizaria a nossa época. Já na introdução, o livro nos fala de sua aspereza, a qual nenhum som romântico de violino pode atenuar. Ao contrário, é como se a paisagem que é nossa contemporânea fosse atravessada pela “presença de um osso, de uma caveira ou de um esqueleto”, que sinalizaria, no limite, o “retorno da relação de inimizade a uma escala global”. Nessa perspectiva, nossa época é marcada pelo signo da guerra, consequência direta dos conflitos surgidos pelo processo de colonização. A colonização e o imperialismo desmascarariam o sonho das democracias liberais de fundar uma comunidade baseada na união e na associação entre os diferentes povos, de tal modo que caberia questionar se o Outro ainda seria o meu semelhante, ou ainda, de maneira mais radical, se repartiríamos, de fato, uma mesma “humanidade”. No centro de nossa vida cotidiana não estão, portanto, a paz e a harmonia, mas a guerra e a morte. Guerras de todo tipo, de conquista e ocupação, de extermínio e em especial as guerras coloniais, que reune num único movimento o sitiamento, a intrusão e o racismo.

No interior dessa questão, ou seja, a presença no cerne das culturas ditas civilizadas de um desejo de produzir inimigos, de cultivar inimizades e, com isso, legitimar as diversas formas de assassínio e extermínio, Mbembe apela para Freud, tomando para sua interlocução o artigo “Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte”, publicado em 1915, logo depois da irrupção da Primeira Guerra Mundial. Do mesmo modo, ele nos relembra uma passagem do Seminário 1, na qual Lacan, já no começo dos anos 1950, caracterizava a nossa época como uma “civilização do ódio”. Essas duas referências apenas ratificam o lugar fundamental e necessário que a psicanálise, sobretudo a vertente freudo-lacaniana, ocupa no pensamento de Mbembe.

“Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte” marca um deslocamento importante no pensamento de Freud. É curioso que também em 1915 ele tenha escrito outro texto, “Transitoriedade”, cuja origem data de dois anos antes, no famoso passeio pelas Dolomitas, no verão de 1913, com Rainer Maria Rilke e Lou Andreas-Salomé, escondida no texto sob a figura do “amigo taciturno” do poeta. A conversa nesse passeio gira justamente em torno da transitoriedade da vida e da beleza, num momento em que os conflitos na região fronteiriça entre a Áustria e os países dos Balcãs já se acentuavam. Poderíamos chamar de otimista e esperançosa a conclusão de Freud nesse texto, pois tudo o que foi destruído pela guerra será reconstruído e tudo será mais belo do que antes. Nas “Considerações contemporâneas”, porém, o diagnóstico de Freud tem a aspereza que Mbembe atribui a seu próprio livro. Não seria a primeira nem a última vez que Freud apresenta duas perspectivas diferentes sobre a mesma questão no decorrer de sua obra. E Mbembe privilegia as “Considerações contemporâneas”, já que Freud faz aí uma leitura bastante crítica dos destinos dos ideais civilizatórios, marcados pela experiência da guerra.

Relembremos rapidamente esses aspectos críticos para, em seguida, retornar a Mbembe, na tentativa de mostrar em que medida as análises de Freud repercutem na produção do pensador africano. Em outras palavras, indagamos qual a amplitude do diagnóstico freudiano para que entendamos aspectos significativos dessa conjunção mortífera entre o desejo do inimigo, o desejo do apartheid e a fantasia do extermínio.

A guerra recém-iniciada representou para Freud a destruição de bens preciosos comuns à humanidade e também provocou uma confusão nas mais “lúcidas inteligências”. Nem a ciência, que perdeu sua “apaixonada imparcialidade” e contribuiu para uma rápida modernização tecnológica de armas de destruição, nem a antropologia, que precisou legitimar o caráter inferior e degenerado do adversário, e muito menos a psiquiatria, que diagnosticava o inimigo como perturbado mental, escaparam de um apelo, que parecia tão forte quanto difícil de evitar: de que o amor à pátria era infinitamente superior ao amor pela humanidade.

Entretanto, para Freud e grande parte de sua geração, a guerra provocou uma desilusão, tanto em relação às esperanças depositadas no progresso científico a serviço da melhoria da humanidade, amplamente presente no ideário positivista do século 19, ao qual ele não ficou imune, quanto na mudança que promoveu em relação à imagem da morte, ou seja, à medida que a violência e a destruição se tornaram a moeda corrente, o inimigo deve e precisa ser morto para que a civilização possa continuar de pé. Do ponto de vista das nações que se autointitulam civilizadas, o herói é sempre aquele que está do seu lado, seja quando precisa matar para salvar vidas, seja quando sacrifica sua própria vida para salvar seus companheiros e, por extensão, a pátria. Para Freud, entretanto, essa lógica contradiz inteiramente as esperanças depositadas na ideia do progresso da humanidade caucionada pela própria ciência, e não, é claro, pela metafísica ou pela religião.

Freud denuncia no seu texto – e isso certamente é fundamental para Mbembe – o fracasso das “grandes nações de raça branca que dominam o mundo”, que tomaram para si a tarefa de “condução do gênero humano”, cujos bens mais elevados seriam o domínio da natureza pelo progresso técnico e o cultivo de valores culturais artísticos e científicos. Freud refere-se explicitamente às guerras entre as “raças humanas separadas pela cor da pele”. Acreditava-se que essas “grandes nações” representassem o império da racionalidade e eram, portanto, legítimas para conduzir a humanidade, em especial os povos e nações considerados inferiores, bárbaros, selvagens, primitivos. Para isso, o Estado civilizado havia também erigido um conjunto de normas morais, que visavam garantir a coesão dos povos, ao mesmo tempo que um aparato jurídico deveria garantir o seu funcionamento e evitar as transgressões. Em suma, prevalecia a idealização da existência de um bem comum a ser preservado, de tal modo que um estado de tolerância em relação às diferenças pudesse se constituir plenamente, e “estrangeiro” e “hostil” não poderiam mais se fundir num único conceito, rompendo assim uma imagem vigente desde a Antiguidade Clássica.

A guerra, entretanto, pôs abaixo essa idealização: rompeu os laços comunitários que havia entre as nações combatentes, provocando rancor e impedindo uma possível reconciliação a curto prazo, assim como tornou manifesto que mesmo povos ditos civilizados pouco se conhecem e se compreendem, e podem se voltar uns contra os outros com “ódio e repulsa”. Logo, todo inimigo, até mesmo aquele que é civilizado, torna-se um bárbaro a ser exterminado. Finalmente, no Estado em guerra passa a vigorar um “estado de exceção”, no qual ocorre uma suspensão de diversos direitos para permitir que as formas de matar se tornem legítimas. Assim, a injustiça se torna a regra, as normas morais podem ser desrespeitadas e o exercício brutal do poder pode se instaurar sem muitas objeções.

Essa constatação, entretanto, precisa ser traduzida em termos psicanalíticos. A persistência da brutalidade – Brutalismo é o título do livro de Mbembe publicado imediatamente após Políticas da inimizade –, quando submetida à “investigação psicológica, em sentido mais estrito a psicanalítica” (a expressão é de Freud), retoma um problema clássico da filosofia: o do mal, o da sua origem, o da sua natureza, o da possibilidade de ser eliminado. A resposta de Freud para esse problema é áspera (para retomar mais uma vez essa imagem tão eloquente de Mbembe): o mal não pode ser extirpado, e todo ser humano, sem exceção (ou seja, as diferenças entre nações, entre raças, não valem), é constituído na sua essência mais profunda de “moções pulsionais”, cuja meta é a satisfação de “certas necessidades originárias”. Entre essas moções, as egoístas e as cruéis são consideradas pela nossa cultura como as representações por excelência dessas motivações primitivas – representações do mal, portanto, que nos habitam e nos constituem, e das quais não escapamos. Para isso basta um estopim. A guerra é o maior de todos.

É evidente que Mbembe não apenas copia e reproduz Freud. Para ele, Freud fornece uma espécie de explicação mais ampla, mais aguçada, ao permitir uma ligação entre o psíquico e o social e, com isso, ultrapassar certas explicações demasiado mecanicistas a respeito da existência das guerras. Entretanto, ele vai mais longe. Seu intuito, me parece, é mostrar o que podemos fazer com o esquema freudiano no começo do século 21, um século depois da publicação do texto de Freud.

Nessa perspectiva, a atualidade de Freud consiste no fato de que o processo regressivo do civilizado ao primitivo, ao “homem primitivo”, ao “homem das priscas eras”, aquele que de algum modo gozava com a morte do inimigo ainda vive em nós, escondido, invisível para a nossa consciência. Embora o progresso civilizatório tenha contribuído para uma vasta remodelação da vida psíquica, ele não conseguiu apagar esse movimento regressivo do aparelho psíquico. Ao relacionar o texto de 1915 com Além do princípio do prazer (1920) e com “O problema econômico do masoquismo” (1924), Mbembe então retoma o duplo movimento da “pulsão de morte” ou de “destruição”: se, por um lado, a pulsão de morte pode ser em grande parte desviada para o exterior ou direcionada para objetos do mundo exterior, de tal modo que muitas outras partes dessa mesma pulsão podem escapar aos processos civilizatórios de domesticação, por outro, a pulsão de destruição, acompanhada dos elementos sadomasoquistas nela implicados, inicialmente voltada para o exterior, pode ser redirecionada para o interior do sujeito. É o Outro interno agora o alvo. O exemplo de Mbembe é inicialmente a Shoah: se o extermínio do povo judeu significava eliminar a parte pútrida, que supostamente habitava o corpo do povo alemão, essa potência de destruição, por sua vez, volta-se, num segundo movimento, para o interior do próprio sujeito, agora autorizado a destruir e aniquilar a si mesmo. Esse retorno do mundo supostamente externo para o sujeito, acrescenta Mbembe, dá nascimento às três formas, às vezes extremas, às vezes patológicas, que retiram as máscaras de um mundo supostamente civilizado: o colonialismo, o fascismo e o nazismo.

Essa ordem – colonialismo, fascismo e nazismo – não é casual na sua cronologia estrita. Por meio dela, Mbembe mostra que a forma “campo”, referindo-se aos campos de concentração da Alemanha nazista, teve como modelo e foi antecipada pelos diversos experimentos de extermínio, destruição e morte durante a colonização. São vários os modelos coloniais mencionados por Mbembe. Entretanto, se podemos dizer que a singularidade do Terceiro Reich foi a planificação da morte em massa, podemos também dizer que os próprios alemães já haviam experimentado diversas formas desse planejamento nas suas colônias do sudoeste africano desde 1904. A forma “campo” já estava presente, de maneira eloquente, nas guerras coloniais e imperialistas. E, como já apontavam, cada um a seu modo, Hannah Arendt, Michel Foucault e Frantz Fanon, no cruzamento desses experimentos está o racismo. É no racismo que as potências destrutivas invisíveis à consciência encontram lugar privilegiado para sua expressão. Nele e por ele, as ditas raças inferiores naufragam na ignomínia provocada pela crueldade e pelo assalto aos corpos e aos bens, por decapitações, desmembramentos, torturas e abusos sexuais. Nele, ideais caros à civilização – dignidade humana, compaixão, solidariedade – sucumbem às manifestações do sadismo, ao desejo implacável de destruir e ser indiferente, de não sentir nenhuma empatia pelas vítimas e, principalmente, de considerar os povos a serem destruídos os responsáveis por sua própria destruição. Desse modo, o diagnóstico “pessimista” de Freud em 1915 constitui, lamentavelmente, um acerto.

Ernani Chaves é professor da Faculdade de Filosofia da UFPA.

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