O QUE O FUTURO DO CLIMA RESERVA PARA QUEM NASCEU EM 2021
Estudo publicado na Science mostra como as crianças e jovens de hoje devem enfrentar um futuro muito mais difícil sob as mudanças climáticas
porMETSUL.COM
19 horas atrás
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Episódios meteorológicos extremos como a tempestade de areia do domingo em São Paulo tendem a ficar cada vez mais frequentes e intensos | TWITTER/REPRODUÇÃO
A pesquisa é a primeira a modelar extensivamente eventos extremos e cenários climáticos futuros e a aplicar as projeções em grupos demográficos para quantificar como as pessoas em diferentes faixas etárias ao redor do mundo passarão por desastres climáticos ao longo de suas vidas. Wim Thiery, cientista climático da Vrije Universiteit Brussels, na Bélgica, que liderou a pesquisa, afirmou que todos com menos de 40 anos de idade hoje viverão uma vida sem precedentes em termos de exposição a ondas de calor, secas e inundações mesmo sob os cenários mais conservadores.
O estudo mostra ainda fortes desigualdades entre gerações, mas os pesquisadores disseram que as mudanças climáticas afetarão as crianças nos países em desenvolvimento de forma ainda mais aguda. A carga permanecerá desproporcional, mesmo com os cortes nas emissões de gases de efeito estufa que os países prometeram sob o Acordo de Paris, um pacto climático global assinado por mais de 190 países.
Com o que foi prometido atualmente, 172 milhões de crianças na África Subsaariana poderiam passar por 50 vezes mais ondas de calor e um aumento de seis vezes em eventos extremos ao longo de suas vidas, em comparação com 53 milhões de crianças na mesma faixa etária na Europa e na Ásia Central, disseram os pesquisadores.
Embora os resultados já sejam preocupantes, os autores afirmam ser provável que os impactos nas vidas das pessoas sejam ainda maiores do que as estimativas do estudo. Isso porque o estudo se concentrou apenas na frequência dos eventos extremos, logo não leva em consideração a duração e a gravidade deles. Estudos têm mostrado que as mudanças climáticas estão tornando eventos como ondas de calor, secas e incêndios florestais não apenas mais prováveis de ocorrer, mas também mais intensos. O trabalho também considerou eventos extremos de forma isolada, o que significa que o estudo não cobriu como os impactos de tais desastres poderiam ser amplificados se eles coincidissem, os eventos extremos compostos.
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Os autores, entretanto, dizem que há motivos para esperança. Se os países puderem fazer cortes agressivos em suas emissões de gases de efeito estufa e limitar os efeitos do aquecimento global, alguns dos cenários mais terríveis do estudo podem ser evitados, dizem. Os líderes mundiais devem se reunir de 31 de outubro a 12 de novembro em Glasgow, na Escócia, para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática de 2021, onde os países devem estabelecer metas ambiciosas para reduzir as emissões em 2030.
Temendo rebelião de escravos, fazendeiros tentaram barrar a Lei do Ventre Livre
Aprovação tornou livre os filhos de escravizados que nasceram a partir de 28 de setembro de 1871, mas pais ainda eram cativos. Medo era de conflito no convívio entre escravos e libertos
O Menino de Arthur Timótheo da CostaMASP
RICARDO WESTIN
Neste mês, a Lei do Ventre Livre completa 150 anos. Uma das precursoras da Lei Áurea, a norma determinou que, de 28 de setembro de 1871 em diante, as mulheres escravizadas dariam à luz apenas bebês livres. De acordo com a lei, não nasceria mais nenhum escravizado em solo brasileiro.
Os deputados aprovaram o projeto da Lei do Ventre Livre em três meses e meio. Os senadores, logo depois, em apenas três semanas. A lei foi imediatamente sancionada pela princesa Isabel, que dirigia o Império em razão de uma viagem de D. Pedro II ao exterior.
— Congratulo-me convosco pela lei que decretastes a bem da extinção gradual do elemento servil — discursou a princesa regente aos deputados e senadores. — Esta reforma marcará uma nova era no progresso moral e material do Brasil. Tenho fé que seremos bem-sucedidos, sem prejuízo da agricultura, nossa principal indústria, porque esse cometimento é a expressão da vontade nacional inspirada pelos mais elevados preceitos da religião e da política.
Apesar de rápida, a votação da Lei do Ventre Livre no Parlamento foi tumultuada e conflituosa. Documentos da época hoje guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que houve parlamentares — alguns por questões políticas e partidárias, outros por convicções escravistas — que resistiram ao projeto de “extinção gradual do elemento servil” e se mobilizaram para derrubá-lo ou pelo menos atrasá-lo.
— O projeto fica apresentado, mas tenho a crença que é para ver e constar e que ele precisa morrer — sentenciou o senador Silveira da Mota (GO).
— Qual será o motivo desta urgência? Haverá, porventura, alguma razão oculta que não possa ser revelada ao corpo legislativo? Eu digo que estas medidas podem, sim, ser discutidas em outra sessão [em outro ano] sem nenhum inconveniente — pressionou o senador Joaquim Antão (MG).
Os bebês, na realidade, não seriam livres de verdade. Grosso modo, a Lei do Ventre Livre estabeleceu que os filhos permaneceriam junto da mãe escravizada, vivendo no cativeiro, até os 8 anos de idade. Dos 8 aos 21 anos, continuariam na propriedade do senhor, se ele assim desejasse, ou então passariam para a responsabilidade do Estado.
O poder público, contudo, não se preparou para cuidar das crianças que completassem 8 anos. Elas, então, permaneceram nas fazendas, trabalhando como se fossem escravizados. Na prática, a liberdade prevista na Lei do Ventre Livre só viria mesmo na idade adulta, aos 21 anos.
O trabalho que os filhos das escravizadas prestariam ao longo dos anos gratuitamente ao fazendeiro serviria de compensação pelos gastos com a criação (teto, comida, roupa etc.) e também de indenização pela perda compulsória da “propriedade”.
Na visão dos adversários da proposta, um dos problemas seria a futura convivência de duas classes distintas de negros — os livres e os escravizados — dentro da mesma fazenda, o que fatalmente estimularia rebeliões negras pelo Brasil afora.
Um dos porta-vozes desse discurso do medo, o senador Visconde de Itaboraí (RJ) explicou:
— Estas disposições não podem deixar de produzir descontentamento nos escravos. Não estão eles tão embrutecidos que não conheçam que o mesmo direito que têm os filhos vindouros devem ter seus pais? Que o mesmo princípio que determina a liberdade de uns deve determinar a dos outros? Que se o legislador não a dá aos que ficam na escravidão é porque seus senhores a isto se opõem? Esta ideia há de inspirar nos escravos sentimentos de aversão, irritá-los contra os seus senhores. E daí hão de vir a agitação, a insubordinação, a destruição, a desorganização do trabalho e, nem ouso dizê-lo, as desgraças que todos nós podemos imaginar e prever.
Contra o projeto de lei, ele apelou até para argumentos de humanidade:
— Os nascituros deverão servir como os outros escravos e conviverão com eles, sujeitos aos mesmos castigos e sofrimentos. Na prática, serão escravos. Não entra na minha pobre inteligência a ideia de homens livres sujeitarem-se a trabalhar para outrem como escravos e sem remuneração alguma até a idade de 21 anos. Será isto motivo de contínuas tramas entre eles e os escravos para se libertarem da escravidão. Não haverá um só fazendeiro sensato que, pensando nas agitações e na perda de força moral que há de sofrer, queira sujeitar-se a conservá-los em suas fazendas.
O Visconde de Itaboraí garantiu que os fazendeiros do Brasil tinham bom coração e que não era por perversidade que eles se opunham à proposta de libertar o ventre:
— Se a liberdade dos nascituros não trouxesse consigo tais perigos, acredito que não haveria proprietário que não estivesse muito disposto a libertar todas as crias que lhe nascessem de agora em diante.
Anterior à Lei do Ventre Livre, outra norma precursora da Lei Áurea foi a Lei Eusébio de Queiroz, que em 1850, por pressão britânica, proibiu os portos brasileiros de receber navios negreiros procedentes da África. Por causa dela, uma das fontes de mão de obra escravizada — o tráfico de africanos — secou. A fonte que se manteve foi a do nascimento de bebês escravizados em solo brasileiro.
Na avaliação de Joaquim Antão, o Brasil erraria se secasse também a segunda fonte sem antes tomar as devidas “medidas preparatórias”:
— Todo mundo sabe que, desde a extinção do tráfico, estava julgada a questão da escravidão no Brasil. Mas, se nós quiséssemos que ela chegasse ao seu resultado sem grandes inconvenientes, teríamos que ter tomado a necessária previdência. Era preciso que existisse o ensino do filho dos escravos, como se praticou nas Antilhas. Me refiro ao ensino religioso e moral e ao ensino das primeiras letras. Alguma vez constou ao Senado que se aconselhasse aos presidentes de província que promovessem o estabelecimento de escolas próprias para os filhos dos escravos? Até há em algumas províncias legislação que proíbe que os filhos dos escravos vão aprender a ler nas escolas públicas.
Para reforçar que a Lei do Ventre Livre era inconveniente naquele momento, ele fez uma comparação catastrofista:
— O movimento emancipador é como o da locomotiva. Se o maquinista lhe dá toda a força sem as necessárias cautelas, não há freios que a contenham, e ela precipita-se fora dos trilhos e arroja ao abismo todos os passageiros.
Contra a proposta, Silveira da Mota trouxe outro argumento. Segundo ele, ninguém parecia ainda ter-se dado conta de que esses bebês negros se transformariam no futuro em cidadãos, o que seria inadmissível:
— Devemos não esquecer que a liberdade é um direito que tem consequências. A mais preciosa é o direito de sair dos domínios da escravidão para um outro em que o escravo fica com direitos quase iguais e a certos respeitos iguais aos do senhor. Note-se que temos diante dos olhos um futuro próximo de intervenção dos libertos no direito de votar. Teremos uma massa imensa de cidadãos brasileiros e africanos que hão de querer dar o seu voto nas assembleias paroquiais.
O senador Vieira da Silva (MA) ficou chocado:
— É verdade, podem até ser vereadores. Até sem nem saberem ler e escrever.
O senador Fernandes da Cunha (BA) foi taxativo:
— Eu não concedo direitos políticos aos libertos.
Silveira da Mota então concluiu seu raciocínio:
— Eu, que vejo essa massa negra com direitos políticos nas mãos do governo, não posso deixar de ter apreensões. É uma questão sobre a qual este projeto devia ter dado uma providência. É uma lacuna que deve ser preenchida.
Outro adversário do projeto, o senador Barão das Três Barras (MG) advertiu aos colegas que a libertação do ventre, ao invés de acalmar, inflamaria perigosamente o movimento abolicionista:
— Consagre-se em lei a ilegitimidade do nascimento escravo, como se pretende fazer, declarando ingênuos [livres] os que nascerem da data da lei, e a propaganda [abolicionista] terá direito de exigir a aplicação aos já nascidos.
Ele repetiu a ideia corrente na época de que a escravidão era um mal, mas no Brasil um mal necessário, por ser a base da cafeicultura de exportação:
— Não se pense que defendo a legitimidade da escravidão. Considero-a um fato que não podemos fazer desaparecer repentinamente e que por isso mesmo se conserva. Enquanto se conserva, não se convém desmoralizar. Os lavradores são os únicos que trabalham para encher os cofres públicos.
De acordo com os papéis históricos do Arquivo do Senado, organizações de fazendeiros, como o Clube da Lavoura, enviaram aos senadores 11 representações contra o projeto da Lei do Ventre Livre. Algumas apontavam o risco de caos social e econômico no Império. As petições somaram 2 mil assinaturas.
Do outro lado da trincheira parlamentar, os defensores do projeto contra-atacaram com diversos argumentos favoráveis à liberdade do ventre. Um deles seria que, àquela altura do século 19, a escravidão já se tornara indefensável e que era mais conveniente que a libertação viesse a conta-gotas e sob o controle do governo. O pior cenário, disseram, seria a abolição chegar de supetão e forçada pelas circunstâncias, libertando todos os escravizados do Império e pegando os fazendeiros de surpresa.
Seguindo essa linha de raciocínio, o ministro da Agricultura, Teodoro da Silva, disse aos senadores:
— Na Inglaterra, é sabido que, por não ter o governo em princípio tomado a si a direção da opinião pública sobre a questão da emancipação dos escravos, resultaram as insurreições graves que perturbaram algumas de suas colônias, como a Jamaica. Foram insurreições que só com grande custo e sacrifício de dinheiro e sangue a metrópole pôde extinguir. Depois disso, só em 1833, o governo inglês, amestrado por tão dura experiência, foi que se resolveu a cuidar séria e eficazmente da solução do problema da extinção do elemento servil nas colônias. No Brasil, o governo deve dirigi-la, esta é a verdade, para que não tenha de lamentar fatos como aqueles ocorridos nas colônias inglesas.
O ministro da Agricultura apresentou o possível cenário do Brasil se a abolição viesse abruptamente:
— Semelhante solução traria, no dia em que a emancipação se realizasse, uma completa deslocação no trabalho agrícola, perturbação esta cujos resultados não nos é possível calcular com precisão. Em um dia, 1 milhão de escravos, suponhamos, seriam libertos, mas seriam 1 milhão de homens que não são afeitos ao trabalho livre e fugiriam das fazendas com horror pelas reminiscências do cativeiro. E a ruína dos proprietários e o empobrecimento do Estado seriam completos.
O senador Nabuco de Araújo (BA) resumiu:
— Não quereis os meios graduais? Pois bem, haveis de ter os meios simultâneos. Não quereis as consequências de uma medida regulada pausadamente? Haveis de ter as incertezas da imprevidência. Não quereis os inconvenientes econômicos das Antilhas francesas? Podeis ter os horrores de São Domingos [no Haiti, os escravizados fizeram uma revolução, declararam o país independente e aboliram a escravidão]. A inação é incompatível com o atual estado das coisas. É preciso resolver, e não adiar a questão.
Na avaliação do senador Figueira de Melo (CE), o governo imperial fez bem em não propor ao Parlamento a abolição imediata, pois isso exigiria indenizar os senhores pela perda da “propriedade”:
— Se nós quiséssemos de uma só vez, por uma simples penada, acabar com a escravidão, teríamos ao mesmo tempo a rigorosa obrigação de previamente, na forma da Constituição do Império, indenizar a todos os proprietários com valor correspondente a cada escravo. Mas a nação estaria em circunstâncias de fazer tão grande sacrifício? Poderíamos ter rendas, meios ou impostos suficientes para pagar esses valores? E, se tivéssemos de contrair um empréstimo, que deveria ser avultadíssimo, não levar-nos-iam os respectivos juros quase toda a renda com que atualmente contamos? Decerto.
Uma parte dos escravocratas do Império, mais pragmática, apoiou o projeto. Esse grupo compreendeu que a proibição da entrada de africanos no Brasil, o fim do nascimento de escravizados em território nacional e a concessão e compra de cartas de alforria já seriam medidas suficientes para fazer a escravidão chegar naturalmente ao fim em algum momento do início do século 20. Isso, para eles, descartaria a necessidade de uma temida Lei Áurea.
— É medida [a libertação do ventre] que, por si só, trará o resultado desejado. Desde o dia seguinte da lei, a escravidão começará a diminuir — discursou o senador Visconde de São Vicente (SP). — A lei tratará uma nova ordem coisas sem abalo. Como não se trata de uma emancipação simultânea ou em massa, não se toca no que existe, não se aniquilam os braços, não se desorganiza o trabalho. Por que, pois, tanto temor?
Em 1873, com a Lei do Ventre Livre já em vigor, o senador Zacarias de Góis e Vasconcelos (BA) se referiu a ela num discurso como “Lei Áurea” — dando a entender que a libertação do ventre já era o ápice das medidas abolicionistas.
Nos debates de 1871, algum senador adversário da Lei do Ventre Livre chegou a propor que, no lugar dela, se marcasse a abolição definitiva da escravidão para 1900. Seria uma forma de os fazendeiros mais refratários às mudanças empurrarem a solução para uma época em que provavelmente já não estariam vivos. Nabuco de Araújo rechaçou a ideia:
— Eu não sou contrário à ideia do prazo, não como substitutiva da ideia do projeto, mas como complementar dela. Depois de algumas décadas [da aprovação da Lei do Ventre Livre], ainda poderá haver escravidão, mas a escravidão quase morta, a escravidão desfalecida pelos muitos nascimentos livres e pelos muitos óbitos. Consistindo a escravidão pela maior parte em velhos, não se dará [no futuro] o perigo que se daria hoje com a emancipação simultânea, imediata.
Outro argumento favorável à Lei do Ventre Livre era que o Brasil, se não começasse logo a encaminhar a questão escrava, fatalmente viveria a mesma situação dos Estados Unidos, que poucos anos antes mergulhara numa sangrenta guerra civil motivada pelas divergências entre os estados do norte e os do sul em relação à escravidão. A Guerra de Secessão chegou ao fim com a vitória dos estados do norte e a abolição do trabalho escravo em todo o território americano.
Um dos senadores que recorreram a essa argumento foi Sales Torres Homem (RN). Um dos mais ferrenhos críticos da escravidão, ele era filho de um padre branco e uma quitandeira negra alforriada — o senador, contudo, nunca se identificou como negro. Ele discursou:
— Pergunte-se o que aconteceu a esses arrogantes plantadores do sul dos Estados Unidos, que, repelindo todos os compromissos e emperrados em suas ilusões, blasonavam [vangloriavam-se] de dilatar os territórios da escravidão desde o túmulo de Washington até o palácio de Montezuma. Quando menos esperava-se, o edifício desabou sobre eles, sepultando-lhes as fortunas inteiras debaixo das ruínas ensanguentadas por uma guerra devastadora.
Zacarias de Góis e Vasconcelos afirmou que o Império estava prestes a se tornar um pária internacional. Naquele momento, apenas o Brasil e Cuba insistiam em manter a escravidão na América — a Espanha, porém, já preparava a abolição em sua colônia caribenha. Ele disse:
— Enquanto a grande republicana americana tinha escravos, podia-se relevar à Monarquia o manter essa instituição, mas logo que os acontecimentos de que todos temos notícia impeliram o Norte a empunhar as armas contra o Sul e batê-lo até de todo extinguir a escravidão, nesse dia nós não tínhamos mais escusas. Então, ficando o Brasil país único escravocrata na América, não era possível manter-se entre nós semelhante situação. Nem era preciso que empunhassem armas para compelir-nos a dar um passo no sentido da emancipação; bastava o riso do mundo, bastava o escárnio de todas as nações apontando para o Brasil como país amigo da escravidão, disposto a mantê-la indefinidamente.
De acordo com o Visconde de São Vicente, a escravidão prejudicava inclusive as famílias dos fazendeiros:
— Pelo que toca à segurança externa, é uma nociva causa de enfraquecimento das forças do Estado. Se em vez de 1 milhão de homens escravos, tivéssemos mais esse número de trabalhadores livres, só daí poder-se-ia tirar um exército. O que acontece, porém, é que a população escrava fica nos estabelecimentos dos senhores, e o recrutamento vai pesar sobre o filhos da lavoura. Foi o que aconteceu na Guerra do Paraguai.
Os documentos históricos do Arquivo do Senado mostram que, no dia da votação do projeto da Lei do Ventre Livre, o Senado estava lotado de cidadãos comuns, que vibraram no momento da aprovação. “Das galerias caem flores, de que fica juncado o recinto, e os espectadores prorrompem em prolongados e estrepitosos vivas ao Senado brasileiro”, descreveu o taquígrafo. O presidente da Casa, irritado, acionou a campainha diversas vezes exigindo silêncio, já que o regimento não permitia manifestações do público.
A socióloga Angela Alonso, professora da Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro Flores, Votos e Balas — O movimento abolicionista brasileiro (Editora Companhia das Letras), explica que o Ventre Livre foi mais uma norma da série “leis para inglês ver”.
— A Lei do Ventre Livre não teve o resultado prático que seria o mais óbvio: a liberdade dos bebês. Quem nasceu em 1871 só se tornaria efetivamente livre em 1892, aos 21 anos de idade. A Lei dos Sexagenários, de 1885, foi outra lei para inglês ver. Os escravizados que completassem 60 anos ainda precisariam prestar três anos de serviços ao senhor antes de serem libertados. O movimento abolicionista foi decisivo para que o governo aprovasse essas leis. Como foram poucos os resultados concretos, os abolicionistas decidiram aumentar a pressão.
De acordo com Angela Alonso, é errônea a interpretação ensinada na escola de que D. Pedro II, sendo um imperador ilustrado, esteve continuamente determinado a eliminar a escravidão do Brasil:
— Essa interpretação, criada pelos próprios monarquistas e difundida até hoje, não se sustenta diante de uma pesquisa mais rigorosa. A escravidão e a Monarquia estavam profundamente interligadas. Uma dependia da outra. Uma sustentava a outra. Foi uma imbricação especialmente forte durante o Segundo Reinado. Em várias ocasiões, D. Pedro II teve a oportunidade de avançar com medidas abolicionistas, mas não o fez.
Ela lembra que, no fim da década de 1860, um primeiro-ministro do Partido Liberal propôs a libertação do ventre, mas a reação dos fazendeiros foi tão forte que D. Pedro II imediatamente o derrubou e nomeou um primeiro-ministro da ala escravocrata do Partido Conservador. A questão só avançaria em 1871, com outro primeiro-ministro do Partido Conservador, mas agora da ala moderada.
Com a Lei dos Sexagenários, foi parecido. Antes de 1885, um primeiro-ministro do Partido Liberal pediu não só a libertação dos escravizados mais velhos, mas também a concessão de direitos aos libertos, como salário mínimo e terras na beira de ferrovias. Diante da nova gritaria, D. Pedro II também o destituiu. No lugar, pôs mais um primeiro-ministro escravocrata do Partido Conservador, que aprovou uma Lei dos Sexagenários bastante desidratada.
— Não é verdade que a Monarquia levou a cabo uma abolição gradual que tinha como fim a Lei Áurea. Diante dos resultados pífios da Lei do Ventre Livre e da Lei dos Sexagenários, os abolicionistas perceberam que, se dependesse da boa vontade da política e das instituições, a situação não se resolveria. Eles, então, adotaram ações cada vez mais ousadas e arriscadas, fomentando a fuga e a rebelião dos escravizados. Os fazendeiros reagiram com armas e milícias. O Brasil ficou à beira de uma guerra civil. Em 1888, a Coroa se viu sem alternativa, a não ser aprovar a Lei Áurea. Mas, como uma sempre foi profundamente dependente da outra, assim que a escravidão desapareceu, a Monarquia ficou condenada a também desaparecer.
Angela Alonso avalia que certas questões da sociedade brasileira persistem desde a época da Lei do Ventre Livre:
— No passado, a briga era pelos direitos básicos dos escravizados e dos libertos. Hoje, a briga é pelos direitos básicos dos descendentes dos escravizados e dos libertos. Não me refiro apenas aos quilombolas, mas à população pobre como um todo, que é majoritariamente negra. Tanto antes como agora, a elite se movimenta para impedir a concessão de direitos sob o argumento de que não há verbas públicas suficientes, de que o Brasil quebrará se fizer reformas sociais, de que a prioridade do país é fortalecer o empresariado, os verdadeiros geradores de renda, de que é necessário primeiro crescer para só depois dividir o bolo. O comportamento da elite não mudou muito.
O dis expresso pelos senadores do Império de que os beneficiários da Lei do Ventre Livre ganhassem direitos políticos plenos seria apaziguado uma década mais tarde. Em 1881, o Parlamento aprovou a Lei Saraiva, que proibiu os analfabetos de votar. Tal proibição seria renovada na República e sairia da legislação brasileira apenas em 1985.
A reportagem, publicada originalmente aqui, faz parte da seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre o Jornal do Senado, a Agência Senado e o Arquivo do Senado brasileiro. Reportagem e edição: Ricardo Westin. Pesquisa histórica: Arquivo do Senado. Edição de multimídia: Bernardo Ururahy. Edição de fotografia: Pillar Pedreira.
Os pensamentos humanistas têm um verdadeiro horror ao vício da departamentalização dos saberes e a uma certa cultura analítica que compreende a totalidade a partir da justaposição funcional dos conhecimentos especializados sobre as diferentes esferas da vida social. Nas tradições da filosofia política clássica, renascentista e moderna, o princípio da totalidade elabora as relações de mútua compenetração com as particularidades, o singular e o universal.
Não há maior equívoco do que classificar o pensamento de Paulo Freire na pasta da educação, promovendo uma ruptura ou colocando como mero fundo de inspiração a sua relação com a cultura do humanismo. Mas é assim, como “pensador da educação” que ele tem sido quase invariavelmente identificado.
O mérito exponencial, subversivo e possibilitador de uma nova compreensão do pensamento de Paulo Freire deste livro de Venício Lima, sintético e súmula de cinco décadas de pesquisa e reflexão, é o de identificar Paulo Freire como um pensador da política que se expressa na educação e na cultura. É um passo coerente, que vai além de toda uma trajetória de pesquisa: já a sua tese de doutorado, editada em 1981, trilhava o caminho da interdisciplinaridade e procurava pensar a obra de Paulo Freire a partir do campo da comunicação pública.
Esta departamentalização da recepção das obras de autores que tinham exatamente a busca de uma visão histórica da totalidade, o seu alfa e ômega, não é, decerto, um limite apenas para pensar Paulo Freire: Celso Furtado, “economista”; Antonio Candido, “crítico literário”; Florestan Fernandes, “sociólogo”; Caio Prado Jr., “historiador”; Milton Santos, “geógrafo”. Um caso clássico: Mary Woolstonecraft, a grande pensadora, fundadora do feminismo moderno e autora do clássico A Vindication of the rights of Woman, de 1792, foi, à sua época recebida como uma pensadora da educação...
O que se ganha ao pensar a obra de Paulo Freire como uma criação no interior de uma tradição política moderna, a do humanismo cívico, é nada menos do que a possibilidade de bem compreendê-lo. Esta tradição, de Rousseau a Thomas Jefferson, de Mary Woolstonecraft a Gramsci, em suas várias matrizes modernas, sempre pensou a educação no plano da política ativa na cidade, como fundamento da cidadania, como elixir da liberdade, que se quer pública, comunicativa, intersubjetiva, expressão de sujeitos autônomos que mudam o mundo.
Talvez a singular e de sentido universal contribuição de Paulo Freire a esta tradição de pensar a educação a partir da política da liberdade seja a de, inserido em um contexto periférico de opressão, radicalizá-la como uma práxis de superação de um sujeito historicamente oprimido. Encontramos já em Émile, de Rousseau, a crítica à educação que Freire chama de “bancária” (depósito de conhecimento), a formação como consciência da autonomia do sujeito que se preparara para ser cidadão. Mas Émile não é propriamente um sujeito em estado de opressão: em Paulo Freire, mais do que um exercício da formação | 17 | em liberdade, a educação é umas práxis de libertação. O conflito entre opressor e oprimido está no centro do pensamento de Paulo Freire, no centro mesmo da personalidade do oprimido, e se conecta às estruturas históricas da dominação. Se não se pode ler Émile sem O contrato Social, por uma razão mais forte ainda não se pode ler Pedagogia do Oprimido sem a política da libertação de Paulo Freire.
Por isto, esta obra é visceralmente uma práxis da liberdade. A revolução paulofreireana, a radicalidade de seu pensamento que o tornou hoje objeto central de execração da cultura mais regressiva da história brasileira, desde aquela que legitimava o genocídio de índios ou a escravidão dos negros, é o de ser um verdadeiro epicentro da cultura da emancipação dos brasileiros e latino-americanos.
Neste exato sentido, este livro de Venício Lima é, ao mesmo tempo, um documento de reparação e uma moção de esperança. Porque o que pode refundar a democracia brasileira é este sentimento político radical de liberdade que sopra na obra de Paulo Freire.
UMA POLÊMICA CLÁSSICA E CONTEMPORÂNEA
Devemos às obras de grandes historiadores eruditos do pensamento político clássico, renascentista e moderno a releitura da gê-nese da Modernidade, antes referida de modo antipluralista, à beira do sectário, apenas ao liberalismo. A documentação de um momento maquiaveliano nas revoluções dos séculos XVII e XVIII, a longa viagem do humanismo cívico na fertilização de culturas da emancipação contra o domínio colonial, o patriarcado, a escravidão e o racismo, levaram à incontornável identificação de um conceito de liberdade anterior ao próprio nascimento do liberalismo. Este conceito de liberdade, irmanado à ideia de igualdade, formulado a partir das noções de autonomia do cidadão e da soberania popular, está na origem das declarações de sentido universalizante dos direitos humanos na Modernidade.
Esta verdadeira revolução na consciência do passado que nos formou é, por isso mesmo, uma chave imprescindível para a compreensão dos impasses democráticos da contemporaneidade. A modernidade deixa de ser vista apenas como um desenrolar historicamente progressivo da história do liberalismo e passa ser, ela própria, um lugar, desde sempre, do conflito entre os que querem dominar e os que não querem ser dominados. A cultura da liberdade nasce deste conflito no centro da política.
Esta consciência nova do passado atualiza a presença da obra de Paulo Freire na cultura política brasileira. Não por acaso ele é o único autor brasileiro clássico, no sentido que formou uma irradiação e uma herança de ideias em movimento, que traz a liberdade e a superação de seu outro, a opressão, no título de suas obras nucleares. Em quatro sentidos, a sua concepção de liberdade é afim a este conceito de liberdade que formou as revoluções democráticas da modernidade.
Em primeiro lugar, a sua identificação com o sentido de autonomia, que a vincula à noção de igualdade estrutural: não pode ser livre aquele que está submetido a uma situação de escravidão, servidão ou dependência estrutural de um outro.
Em segundo lugar, o sentido intersubjetivo, público e dialogal da construção da liberdade. Ela não preexiste à comunidade política, não pode ser naturalizada, depende da vida pública.
Em terceiro lugar, ela reivindica o sujeito ativo, não conformado e não conformista, mas criativo e disposto à transformação do mundo como criador.
Por fim, ela só pode existir em uma cultura cívica, que institua o amor à liberdade compartilhada entre os cidadãos e cidadãs, a fraternidade. Ela demanda, pois, uma revolução cultural dos valores que antes legitimavam a opressão.
O modo como Paulo Freire se vincula a esta tradição é através do socialismo democrático. Daí o seu diálogo com Marx e com os autores humanistas do marxismo.
UMA OBRA DE 1968
Esta perspectiva política da obra de Paulo Freire permite melhor situá-la em seu contexto de criação: ela é atravessada pela imaginação libertária de 1968. Pedagogia do Oprimido, identificado como uma espécie de ponto elevado a partir do qual se pode perscrutar toda a obra freireana, é um livro todo ele escrito em fogo e liberdade. Queima nas mãos do leitor. Escrito desde o Chile, parece sair mesmo das barricadas de 1968.
É muito feliz, neste sentido, o segundo capítulo deste livro ao trazer à tona os modos de presença de Frantz Fanon na obra de Freire. A conjuntura de 1968 ligou a luta pela liberdade nos países capitalistas centrais, contra os regimes burocráticos do Leste Europeu e as lutas anticoloniais. Paulo Freire escreve sobre a liberdade em meio ao subdesenvolvimento, ali onde a colonização e suas permanências exerce sobre o oprimido sua potência de desumanização. A moção de Fanon, que reivindica a legitimidade do uso da violência contra o colonizador e seus necropoderes, é recepcionada pela cultura da emancipação de Freire como uma contraviolência, como uma reação a uma violência de origem e estrutural.
Se 1968 marcou o dramático e feliz reencontro das esquerdas no século XX com o fundamento da liberdade, após décadas de dominância do estalinismo, o livro de Paulo Freire é o grande documento na história intelectual dos brasileiros do reencontro de um pensador com Marx livre, fora dos dogmas e pensado a partir da emancipação. Todo o livro é vazado pelas referências e diálogos com as tradições humanistas da leitura de Marx, inspirando-se, mas indo muito além das reflexões dos cristãos brasileiros iniciadas no fim dos anos 1950 pelo jesuíta e eminente filósofo Henrique de Lima Vaz.
No centro do livro, como se fosse uma âncora, o terceiro aforisma das chamadas “Teses sobre Feuerbach”, de Marx, que Freire cita na nota 15:
A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado. Ela tem, por isto, de dividir a sociedade em suas partes – a primeira das quais está colocada acima da sociedade. A coincidência entre a alteração das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária (FREIRE, 1968,).
Esta tese, para ser melhor compreendida, deve ser pensada como uma crítica ao dilema da cultura do iluminismo – educar os homens para mudar as circunstâncias ou mudar as circunstâncias para educar o homem? – e às teses socialistas autoritárias ou substitucionistas. A síntese está escrita em letras garrafais em Pedagogia do Oprimido: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” A coincidência entre o ato da mudança e a mudança do sujeito faz toda a fortuna da obra de Freire.
Paulo Freire, em documento quase perdido e que Venício Lima, que o recebeu do autor manuscrito, publica nesta edição, afirma a pedagogia da revolução, a função pedagógica do partido da transformação, ele próprio transformado no processo de libertação. A sua obra é, neste sentido, uma grande moção de fundação de um socialismo democrático em um período de profundo impasse das vanguardas e da própria história da matriz histórica dominante do marxismo no Brasil, que havia cindido tragicamente socialismo e liberdade.
PAULO FREIRE E O PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO
A relação entre educação e democracia é certamente um dos temas mais ricos e constituidores das tradições do pensamento brasileiro que buscaram um caminho para romper os impasses da formação. Esta relação esteve no centro do pensamento liberal de Rui Barbosa – formulando um progressivismo capacitário de inclusão progressiva dos pobres e negros na ordem política –; do pensamento republicano democrático de Manoel Bomfim – a universalização da educação como modo de constituir a soberania popular e, depois, a necessidade de uma revolução para produzir a reforma almejada da educação –; dos pensamentos desenvolvimentistas – que concebiam a educação como fundamento do progresso soberano e autônomo do país –; das utopias antropológicas e civilizatórias de Darcy Ribeiro – a educação pública como expressão mesma de nossa singularidade como civilização multiétnica.
Paulo Freire dissolve o impasse entre reforma e revolução através da educação como prática da liberdade, isto é, diferenciando a “educação sistemática” após a revolução do “trabalho educativo” que a precede. Ao exaltar o sentido pedagógico da política que se quer libertadora, ao propor uma dialética entre mestre e aluno, entre vanguarda e povo, o que Paulo Freire está fazendo é assentar os fundamentos de um pensamento e de uma perspectiva socialista democrática. Está, pois, fundando ou refundando esta tradição no pensamento político brasileiro, dando corpo a ela, abrindo um caminho para sua formação.
“Não há palavra verdadeira que não seja práxis”, diz Paulo Freire. Romper a dura crosta da cultura do silêncio, formar o direito público de voz, construir com quem nunca pôde falar e ser ouvido a plena expressão e possibilidade de formar o poder, a soberania popular é uma democracia radical, nos fala a obra da vida inteira de Venício Lima.
VENÍCIO E FREIRE
Há, decerto, uma diferença fundamental entre cultuar, fazer o culto, de um autor e cultivar um autor, apropriar-se de suas conquistas e desenvolvê-las criticamente. É desta ordem, a de uma dialogação crítica, que está a relação de cinco décadas de Venício com a obra de Freire e que este livro condensa e atualiza.
O conceito que sintetiza toda a obra de Venício, referência incontornável para quem pretende estudar os dilemas históricos da formação de uma opinião pública democrática no Brasil, e que dialoga com o centro mesmo das teorias freireanas é o de cultura do silêncio. Pois o oprimido começa a superar a sua condição na medida mesmo em que é capaz de falar de si em sua própria linguagem – “não há palavra verdadeira que não seja práxis” –, de biografar-se em uma narrativa de sentido, humanizando-se através do diálogo com o seu mundo e o mundo dos outros. A opressão é um roubo da fala, um silenciamento de voz, “uma estrutura constituinte de mutismo”. A obra de Venício é a crítica da permanência desta “estrutura constituinte de mutismo” na democracia brasileira pós-constituinte de 1988.
A sua pesquisa sobre este conceito, levou-o, necessariamente, ao caminho de sua historicização, das origens da sociedade colonial, da formação do Estado nacional, do Império à República, dos vários regimes da república, da ditadura ao processo de redemocratização: a longa continuidade das estruturas institucionais de silenciamento dos povos indígenas, dos negros, dos trabalhadores, das mulheres, dos camponeses em meio a seus esforços, sempre reprimidos, de fazer emergir as suas vozes livres.
É possível e necessário, pois, escrever a história da formação do Brasil a partir da cultura do silenciamento, nas suas formas coloniais, modernas e contemporâneas. É este o sentido inscrito de classicização da obra do próprio Venício. Pois nenhum outro clássico da formação | 23 | do Brasil trouxe ao centro da narrativa o direito dos brasileiros, o seu direito inalienável, como cidadãos e cidadãs, a falarem em democracia e pluralismo através de sua própria voz.
“Falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa”, afirma Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido. A frase é tipicamente, no sentido autoral, de Venício Lima, no sentido de ser expressiva do seu trabalho crítico sobre a separação entre o direito de voto e o direito de voz na democracia liberal brasileira.
A cultura do silêncio é o par de oposição à educação e à política como dialogicidade que propõe Freire, como bom humanista, que não separa a isonomia da isegoria. A obra de Venício, ao dar um estatuto conceitual e uma documentação histórica à cultura do silêncio, ilumina com luz própria a obra freireana.
Ouro Preto, Inverno de 2021
Juarez Guimarães é Professor de Ciência Política e coordenador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros, Cerbras, UFMG