Monday, 3 January 2022

PARECE REVOLUÇÃO, MAS É SÓ NEOLIBERALISMO

 PARECE REVOLUÇÃO, MAS É SÓ NEOLIBERALISMO 


O professor universitário em meio às cruzadas autoritárias da direita e da esquerda

piauí
Benamê Kamu Almudras|Edição 172, Janeiro 2021

Um amigo que leciona na área de humanas em uma grande universidade pública paulista, ao chegar para a sua aula em um curso de pós-graduação, percebeu um burburinho inusual entre os alunos. Perguntou-lhes se estava tudo bem, e um deles disse: “Não. Estamos fazendo um motim.” Outros expuseram o motivo da rebelião: a excessiva carga de leitura da disciplina. Meu amigo ficou surpreso, pois a carga de leitura era pequena. Os alunos tinham que ler e debater semanalmente apenas dois ou três projetos de colegas, cada um com vinte páginas no máximo.

O professor perguntou se os alunos teriam alguma sugestão para resolver o problema. Eles propuseram que cada um escolhesse por conta própria os projetos que quisesse ler e os colegas com quem discutir, formando pequenos grupos auto-organizados. Dessa forma, terminariam o semestre mais cedo. Atordoado, o professor disse que pensaria no assunto, para então negociar uma solução satisfatória para todos. Mas um aluno retrucou: “Não, professor. Você sempre quer negociar. O que nós queremos é romper hierarquias e questionar o seu poder.” O professor respirou fundo, disse que lhes escreveria a respeito mais tarde e continuou sua aula.

Depois de consultar colegas e enfrentar uma noite maldormida, o professor respondeu aos alunos, dizendo que manteria a dinâmica inicial do curso. Vários alunos lhe enviaram longos e-mails de protesto, qualificando sua decisão como autoritária e reivindicando que a vontade deles fosse respeitada. Tomados por um misto de revolta e euforia, diziam estar lutando pela democratização da universidade e contra as estruturas de poder.

Na aula seguinte, o professor apontou aos alunos a pouca razoabilidade das demandas que faziam e explicou a importância da leitura e do diálogo intelectual para a formação de cada um. Resolveu tornar opcional a participação no resto do semestre. Para sua surpresa, ninguém deixou o curso. Os participantes do motim – um terço da turma – lhe pediram desculpas e agradeceram a preleção. Final feliz.

 

Só que não. Narro esse episódio (sem citar nomes para não expor as pessoas) porque, a meu ver, ele exemplifica um fenômeno mais geral que tem ganhado força e se tornado mais frequente nas universidades brasileiras e do exterior. Para descrevê-lo, tomo emprestada do mesmo amigo uma expressão usada por ele em sua preleção aos revoltosos. Adaptando uma famosa frase de Renato Russo (“Parece cocaína, mas é só tristeza”), esse professor disse aos alunos sobre o motim: “Parece revolução, mas é só neoliberalismo.” A primeira metade dessa analogia é, claro, puramente metafórica: refere-se à agitação política dos alunos. A segunda é metonímica, pois o neoliberalismo é fonte de tristeza e angústia para qualquer pessoa que tenha apreço pela educação pública e por ideias progressistas.

A rebelião contra esse professor é um exemplo de atitude neoliberal da parte dos estudantes. Não me refiro ao neoliberalismo como ideologia político-econômica, mas como forma cultural, em que o mercado, a ética individualizante e o espírito do consumismo são erigidos como o modelo cognitivo e normativo da vida social. Apesar de os alunos apresentarem sua pauta como democrática ou mesmo subversiva, o que eles estavam de fato exigindo era que a universidade fosse como um supermercado ou um restaurante, onde quem decide o que consome (que textos ler), quanto consome (quantos textos ler), por quanto tempo consome (quantas aulas ter) e como consome (como as aulas devem ser) são os consumidores. Subjacente à revolta estava a ideia de que o professor tem função parecida à de um gerente de hotel ou um alfaiate: servir ao cliente e satisfazer seus desejos. E o cliente, sabemos, tem sempre razão!

O episódio que narrei pode ter sido particularmente teatral e pedagógico, mas abundam casos semelhantes nas universidades. Em uma instituição pública fluminense da área de saúde, um aluno exigiu que o programa de pós-graduação desse aos estudantes garantias (termo tipicamente mercantil) de que todos terminariam seu doutorado com êxito. Levando ao extremo a mesma suposição de que o título (note bem, o título, e não o acesso à educação) é um direito de todos, uma aluna de história de uma universidade pública europeia que não escreveu sua tese de doutorado processou o departamento onde estudou, exigindo o diploma ou uma indenização pelo tempo investido (um termo-fetiche do neoliberalismo).

Outra professora de uma universidade pública localizada no Planalto Central recebeu de um aluno um e-mail em que ele declarava ter decidido que o melhor para ele seria não escrever o trabalho final da disciplina – e solicitava ser aprovado mesmo assim. Uma amiga que leciona ciências exatas em uma universidade mineira recebeu de seus alunos uma lista de temas que eles queriam ver tratados na palestra a ser dada por uma pesquisadora visitante. No meio da pandemia, um pós-graduando – bolsista com dedicação exclusiva – enviou uma mensagem de última hora a seu orientador, dizendo que não participaria de uma reunião online de seu grupo de pesquisas porque estava cansado.

Outra colega, da área de comunicação social e residente em uma grande cidade do Nordeste, se assustou quando um aluno de graduação criticou duramente em aula um importante texto que ele não tinha lido nem queria ler, pois tinha ouvido falar mal do autor em um documentário (outro fetiche neoliberal: o consumo doméstico de informação midiática). Quando a professora retrucou, dizendo que o aluno não poderia atacar o texto sem tê-lo lido, ela foi acusada de autoritarismo.

Parece, entretanto, que, aos olhos de tão exigentes consumidores, os professores também podem errar ao propor mais diálogo. Um estudante de ciência política questionou em público o método didático de um colega (baseado em discussões e debates) e solicitou que o professor desse mais aulas expositivas. Alegou que era muito disperso e se perdia ao ouvir os colegas. A mim um aluno sugeriu que eu modificasse o programa de um curso porque ele achava parte da bibliografia “maçante”. É também corriqueira a impolidez de pós-graduandos brasileiros, que não agradecem a seus orientadores por esforços que foram muito além de suas obrigações, não pedem desculpas por falhas que cometem e exigem reuniões, atestados e assinaturas, amiúde com prazos impraticáveis, em vez de pedi-los com boa antecedência e de forma cortês, como se espera em interações com professores, colegas, amigos e… prestadores de serviços.

Não uso estes últimos termos por acaso. A privatização do público denunciada por Hannah Arendt é hoje uma realidade tão abrangente e onipresente que, como o ar que respiramos ou como o diabo que vive nos detalhes, já nem a percebemos mais. Quando a coletividade política se transforma em um conjunto de indivíduos-consumidores competindo no mercado, perde-se a ideia de que o professor é um servidor público dedicado a formar cidadãos instruídos e qualificados. Mesmo na educação pública, e entre aqueles que falam em seu nome, cresce o desejo de que ela passe a servir, de modo neoliberal, a esse consumidor autocentrado e oportunista que busca minimizar custos e maximizar benefícios. Assim, o professor universitário é tratado cada vez menos como um servidor público e cada vez mais como um prestador de serviços a indivíduos – um serviçal privado.

 

Aforça do neoliberalismo como fenômeno cultural se revela até nos ambientes mais progressistas, entre pessoas identificadas (por elas mesmas e por outros) como sendo de esquerda e que dizem estar lutando contra injustiças sociais. Mais assustador é que tais pessoas apresentam sua fantasia neoliberal como se fosse um projeto emancipador. Com isso, expande-se a suposição devastadora de que o professor, caso não aceite o papel de um serviçal privado, só pode ser um opressor.

Suspeito que isso se deva, em parte, à maneira distorcida como alguns alunos veem a assimetria inerente à educação, imaginando que os corpos docente e discente são como classes sociais – de um lado, a classe exploradora; de outro, a explorada. Eles supõem que o professor detenha uma superioridade essencial e que a posição de aluno seja involuntária e permanente. Esquecem que ninguém nasce professor e que a assimetria da sala de aula é contextual e temporária. O professor é apenas alguém com mais experiência e conhecimento em determinada área, e não um sujeito social dotado de um poder inerente ou de mais conhecimentos genéricos que os alunos. Aliás, muitos alunos de universidades públicas com atitudes como as que descrevi têm eles próprios a intenção de seguir a carreira docente, o que torna ainda mais absurda a identificação que fazem do professor com o opressor.

Essa identificação enganosa provavelmente se deve também ao perfil demográfico do corpo docente. A despeito de variações que possam ocorrer nas diferentes instituições e áreas de conhecimento, há em geral, entre professores universitários, uma sub-representação de grupos discriminados e oprimidos por razões raciais, étnicas, religiosas, de gênero, de sexualidade ou de classe. Como muitos alunos são afetados por essas discriminações, não é de estranhar que alguns vejam seus professores como sujeitos privilegiados e dotados de grande poder.

Se isso ajuda a explicar a visão de que o professor é um opressor, é certo que não a justifica, pois há vários problemas nessa concepção. Primeiramente, ela ignora a desigualdade de posições sociais e institucionais entre professores, pois pressupõe que todos somos oriundos de setores sociais dominantes ou privilegiados, ou associados a eles. Embora algumas formas de hierarquização e discriminação sejam facilmente visíveis e identificáveis, outras não são. Há, por exemplo, muitos professores de universidades conceituadas que passaram por grandes dificuldades econômicas em sua juventude, sofreram preconceito e opressão ao longo da vida e, por terem estudado em universidades de menor prestígio (ou até de mais prestígio, mas estrangeiras), nunca são plenamente aceitos como pares por seus colegas, que julgam ter melhor pedigree social e acadêmico. E, dadas as desigualdades de ordem salarial, origem geográfica e classe entre professores, muitos enfrentamos dificuldades materiais reais, além do desprestígio social que marca toda a categoria.

Fora isso, a identificação do professor com o opressor e as revoltas contra docentes fazem com que se gaste tempo e energia atacando pessoas que, na maior parte das vezes, são aliadas dos alunos e lutam pelas mesmas bandeiras que eles, a começar pela defesa de uma universidade pública mais justa, inclusiva e democrática. O motim que descrevi no início deste texto, por exemplo, aconteceu em 2017, quando a democracia se deteriorava e o autoritarismo crescia aceleradamente no Brasil. Tenho certeza de que os revoltosos viam a situação nacional com a mesma preocupação que seu professor, mas preferiram usar seu tempo e energia lutando por “causas” miúdas como os supostos direitos de estudar menos e de decidir o que ler. Há algo de muito errado e perigoso quando estudantes tentam transformar em pauta política a redução do rigor e da qualidade da educação.

 

Grave é também o desvio feito pela ofensiva política progressista quando ela passa a atacar seus aliados. A expressão mais atroz dessa deturpação é a proliferação de acusações infundadas de racismo, sexismo, classismo, homofobia e transfobia feitas contra professores. Todas as denúncias desse tipo devem ser levadas a sério e investigadas, pois disso depende a luta por uma universidade mais justa e inclusiva. Sabendo que preconceitos e assédios são uma realidade cotidiana da academia, como de tantas outras áreas, defendo veementemente a importância política dessas denúncias e o direito de todas as pessoas de fazê-las.

O fato de que o racismo, o sexismo, o classismo, a homofobia e a transfobia sejam frequentes nas escolas não significa, porém, que todas as denúncias sejam verdadeiras. Pode-se dizer o mesmo, imagino, de outros ambientes profissionais, mas esse fenômeno ganha contornos específicos no caso da universidade. Embora raramente tenhamos a coragem ou o interesse de falar disso em público, não é segredo para acadêmicos brasileiros e estrangeiros que parte dessas acusações são atos oportunistas de pessoas movidas por objetivos mais imediatos e pouco louváveis, como obter uma aprovação não merecida, diminuir a carga de estudo e conseguir facilidades na concessão de um diploma. A manipulação de injustiças, violências e exclusões para benefício individual é talvez a expressão mais feroz e perversa da neoliberalização cultural da educação pública.

A refinada perversidade dessa manipulação interesseira se dá em diferentes níveis. Para começar, os professores mais comumente acusados são os que estão em situações profissionais mais frágeis, em estágios iniciais da carreira, sem grandes vantagens imediatas a oferecer a seus alunos e cuja destruição moral não traz prejuízo a seus difamadores. Outro alvo comum de acusações infundadas são professores oriundos de grupos sociais discriminados e fragilizados. O preconceito de alguns indivíduos contra o próprio grupo oprimido é uma triste realidade, mas o que quero salientar é que muitas vezes os professores mais atacados e desrespeitados – por calúnia e difamação, assim como por outros atos cotidianos e discretos – são os mais desprovidos de poder, tanto dentro quanto fora da universidade.

Outras vítimas preferenciais são professores altamente mobilizados por questões políticas. Um professor de filosofia pós-colonial ou de história contemporânea tem muito mais probabilidade de ser atacado por uma afirmação que algum aluno considere inapropriada do que um professor de filosofia medieval ou de história antiga. Abundam os casos de professores feministas e ativistas de direitos LGBTQIA+ acusados de sexismo, homofobia e transfobia por darem aula sobre textos tidos como politicamente inapropriados ou por cometerem eventuais deslizes de linguagem passíveis de punição pela impiedosa e infatigável milícia do vocabulário.

Recentemente um professor de uma respeitada universidade pública do Sudeste, especializado em pensamento afro-atlântico, foi chamado de racista por uma mestranda. Ela havia sido reprovada em sua disciplina por não frequentar as aulas, não apresentar um seminário obrigatório, não escrever o trabalho final e não responder a repetidas tentativas de contato. O oportunismo da calúnia fica evidente ao sabermos que a aluna só fez a denúncia seis meses depois de sua reprovação, e no momento que estouraram os recentes protestos antirracistas nos Estados Unidos. Mordendo a isca, os defensores dela não se furtaram a equiparar a reprovação ao brutal assassinato de George Floyd! Quando foi demonstrado que a denúncia era falsa, outro aluno de “pós” – de pós-graduação e de pós-verdade – defendeu os ataques dizendo que, sendo o professor um homem branco (aliás, abertamente gay e em estágio probatório na universidade), não importava se as acusações eram verdadeiras ou não. Se o professor fosse menos forte e decidido, talvez tivesse deixado de dedicar seu ensino e pesquisa a questões raciais, e a luta antirracista teria perdido, graças ao neoliberalismo de esquerda, um aliado em uma instituição de grande visibilidade.

O uso oportunista e individualista de questões sociais seríssimas prejudica a luta política não apenas por alimentar as conhecidas reações conservadoras e preconceituosas, mas também por silenciar vozes aliadas e privatizar bandeiras coletivas fundamentais. Muitas vezes as acusações são tão egocêntricas que supõem que, caso um indivíduo não seja beneficiado da maneira que exige, isso demonstra que toda sua categoria está sendo prejudicada. Há casos em que um candidato a pós-graduação, ao não ser admitido em processos seletivos com cotas para grupos discriminados (como todos os programas devem incluir), afirma que sua não admissão é sintoma de preconceito – mesmo que, obviamente, a vaga que ele não obteve seja destinada a outra pessoa da mesma categoria (vemos aqui o problema do fogo amigo: programas que não praticam ações afirmativas não correm o risco desse tipo de acusação e seu racismo passa incólume). É mais uma vez o “eu” autocentrado exigindo direitos de consumidor, sequestrando e usando como disfarce o “nós” coletivo que reivindica direitos sociais justos e corretos.

Essa privatização é mais uma expressão do poder do neoliberalismo cultural no ensino público. Ao contrário do que afirmam alguns, tal privatização não defende a educação: nega a própria ideia de educação. Não é à toa que muitos estudantes (mas não apenas eles) julgam que o incontestável direito à educação equivale a um suposto direito universal a um título, o bem maior almejado pelos consumidores da universidade. Tive a oportunidade de ler várias cartas de alunos, endereçadas a professores e a instituições, que defendiam não tanto o direito de estudar, mas sobretudo o de receber um diploma acadêmico, independentemente do mérito do estudante. Reivindicações desse tipo, fantasiadas de luta democrática e igualitária, negam o pressuposto de que algumas pessoas têm certos conhecimentos específicos que podem ensinar a outras, em geral mais jovens, que ainda não os têm – e que para adquiri-los é preciso estudar. Tais reivindicações impedem a formação de cidadãos esclarecidos e transformam o direito à educação em direito a boas notas, aprovações e títulos.

Mas a força do neoliberalismo cultural na educação não para por aí. Como observou o professor Wilson Gomes, da Universidade Federal da Bahia, apenas a lógica competitiva de mercado permite entender a proliferação de cruéis, rasos e injustos ataques militantes a intelectuais politicamente engajados. Em suas palavras, “para os atacantes, são chances de melhor se posicionarem no mercado epistêmico: quem mais lacrar e mais humilhar mais acumula capital” (Folha de S.Paulo, 11/08/2020).

O artigo não se refere unicamente a agressões a docentes, mas não é coincidência que tenha sido escrito por um professor universitário a respeito de ataques sofridos por uma colega de profissão. Entre os vários supostos erros de que esta professora – a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz – foi acusada, estava o de, apesar de ser branca (judia, vale lembrar), ter dedicado décadas de pesquisa e atuação pública ao combate ao racismo. Afinal, como bem argumentou Gomes, a lógica do mercado raras vezes recompensa e estimula ataques a pessoas retrógradas e conservadoras. Racistas, sexistas, homofóbicos, transfóbicos, antissemitas e semelhantes seguem ilesos em suas reputações e fortalecidos em suas posições de poder, voz e visibilidade. Punindo e calando intelectuais progressistas, o neoliberalismo de esquerda dá mais espaço, mais vigor e mais protagonismo ao neoliberalismo stricto sensu que, pelo lado direito, ataca o ensino público e seus professores de forma igualmente atroz.

Infelizmente, contudo, a esse problema nós, os professores, temos também reagido de maneira tipicamente neoliberal. Por um lado, tendemos a atribuir a particularidades de certas situações e de indivíduos cada caso de abuso, desrespeito, privatização, calúnia ou difamação. Por outro, seguimos com o pacto não declarado de silêncio sobre essas questões por temermos, com razão, punições no mercado acadêmico. E muitas vezes cedemos na concessão das benesses exigidas pelos sujeitos neoliberais, seja por medo de eventual repercussão, seja por autoengano político. Com isso, acabamos por contribuir para a privatização da educação, no sentido amplo e cultural, e, claro, para a deterioração do ensino. Enquanto não entendermos que estamos diante de um fenômeno coletivo – o individualismo é um fenômeno coletivo – e enquanto não agirmos politicamente, ou seja, debatendo publicamente um problema político, a educação pública seguirá sendo atacada não apenas de forma espetacular, mas também rotineira e capilar; não apenas por governos e ideólogos de direita, mas também nos campi, nas ruas e nas mal denominadas redes sociais.

 

Assim, os professores universitários, sobretudo os de instituições públicas brasileiras, sofremos hoje duas virulentas ofensivas neoliberais. A direita nos ataca de modo neoliberal, combatendo em nome do mercado tudo que nossa educação pública conquistou a duras penas nas últimas décadas: inclusão social, expansão do ensino, ações afirmativas, financiamento à pesquisa, reflexões sofisticadas sobre a sociedade. A esquerda, usando camuflagens progressistas para disfarçar seu neoliberalismo, transforma alunos em consumidores, a educação em distribuição de diplomas, o rigor acadêmico em forma de opressão, os servidores públicos em serviçais privados.

Um lado defende abertamente o neoliberalismo, o outro pensa ser revolucionário. Mas ambos agem de forma mercantil e compartilham o ataque à educação pública e ao pensamento crítico. Ao castigarem os professores por ensinar, pensar e escrever, uns encontram nos outros os melhores aliados de suas cruzadas neoliberais autoritárias contra a liberdade de pensamento e de expressão. Assim como, em 1815, europeus católicos, protestantes e ortodoxos juntaram suas forças retrógradas em uma Santa Aliança contra os ideais republicanos, hoje em dia fanáticos à direita e à esquerda se unem religiosamente em uma aliança, desta vez não declarada, para combater a educação pública e os professores.

Quase todos os docentes de universidades públicas concordamos sobre os graves e evidentes perigos do neoliberalismo autoritário da direita, e fazemos o possível para combatê-lo. Mas para continuar e fortalecer essa luta devemos também romper nosso pacto de silêncio e reconhecer os perigos igualmente autoritários, igualmente violentos e igualmente neoliberais que vêm do outro lado – inclusive de nossos alunos.

É como um passo em direção a esse reconhecimento e a um debate amplo e democrático que escrevo este artigo. Apenas lamento que tenha de assiná-lo com um pseudônimo. O motivo disso está evidente. Nestes tempos de cruzadas autoritárias moralistas e de narcisismo midiático neoliberal, uma crítica como a que fiz aqui tem de lançar mão da privacidade autoral como escudo e refúgio.

Um amigo que leciona na área de humanas em uma grande universidade pública paulista, ao chegar para a sua aula em um curso de pós-graduação, percebeu um burburinho inusual entre os alunos. Perguntou-lhes se estava tudo bem, e um deles disse: “Não. Estamos fazendo um motim.” Outros expuseram o motivo da rebelião: a excessiva carga de leitura da disciplina. Meu amigo ficou surpreso, pois a carga de leitura era pequena. Os alunos tinham que ler e debater semanalmente apenas dois ou três projetos de colegas, cada um com vinte páginas no máximo.

O professor perguntou se os alunos teriam alguma sugestão para resolver o problema. Eles propuseram que cada um escolhesse por conta própria os projetos que quisesse ler e os colegas com quem discutir, formando pequenos grupos auto-organizados. Dessa forma, terminariam o semestre mais cedo. Atordoado, o professor disse que pensaria no assunto, para então negociar uma solução satisfatória para todos. Mas um aluno retrucou: “Não, professor. Você sempre quer negociar. O que nós queremos é romper hierarquias e questionar o seu poder.” O professor respirou fundo, disse que lhes escreveria a respeito mais tarde e continuou sua aula.

Depois de consultar colegas e enfrentar uma noite maldormida, o professor respondeu aos alunos, dizendo que manteria a dinâmica inicial do curso. Vários alunos lhe enviaram longos e-mails de protesto, qualificando sua decisão como autoritária e reivindicando que a vontade deles fosse respeitada. Tomados por um misto de revolta e euforia, diziam estar lutando pela democratização da universidade e contra as estruturas de poder.

Na aula seguinte, o professor apontou aos alunos a pouca razoabilidade das demandas que faziam e explicou a importância da leitura e do diálogo intelectual para a formação de cada um. Resolveu tornar opcional a participação no resto do semestre. Para sua surpresa, ninguém deixou o curso. Os participantes do motim – um terço da turma – lhe pediram desculpas e agradeceram a preleção. Final feliz.

 

Só que não. Narro esse episódio (sem citar nomes para não expor as pessoas) porque, a meu ver, ele exemplifica um fenômeno mais geral que tem ganhado força e se tornado mais frequente nas universidades brasileiras e do exterior. Para descrevê-lo, tomo emprestada do mesmo amigo uma expressão usada por ele em sua preleção aos revoltosos. Adaptando uma famosa frase de Renato Russo (“Parece cocaína, mas é só tristeza”), esse professor disse aos alunos sobre o motim: “Parece revolução, mas é só neoliberalismo.” A primeira metade dessa analogia é, claro, puramente metafórica: refere-se à agitação política dos alunos. A segunda é metonímica, pois o neoliberalismo é fonte de tristeza e angústia para qualquer pessoa que tenha apreço pela educação pública e por ideias progressistas.

A rebelião contra esse professor é um exemplo de atitude neoliberal da parte dos estudantes. Não me refiro ao neoliberalismo como ideologia político-econômica, mas como forma cultural, em que o mercado, a ética individualizante e o espírito do consumismo são erigidos como o modelo cognitivo e normativo da vida social. Apesar de os alunos apresentarem sua pauta como democrática ou mesmo subversiva, o que eles estavam de fato exigindo era que a universidade fosse como um supermercado ou um restaurante, onde quem decide o que consome (que textos ler), quanto consome (quantos textos ler), por quanto tempo consome (quantas aulas ter) e como consome (como as aulas devem ser) são os consumidores. Subjacente à revolta estava a ideia de que o professor tem função parecida à de um gerente de hotel ou um alfaiate: servir ao cliente e satisfazer seus desejos. E o cliente, sabemos, tem sempre razão!

O episódio que narrei pode ter sido particularmente teatral e pedagógico, mas abundam casos semelhantes nas universidades. Em uma instituição pública fluminense da área de saúde, um aluno exigiu que o programa de pós-graduação desse aos estudantes garantias (termo tipicamente mercantil) de que todos terminariam seu doutorado com êxito. Levando ao extremo a mesma suposição de que o título (note bem, o título, e não o acesso à educação) é um direito de todos, uma aluna de história de uma universidade pública europeia que não escreveu sua tese de doutorado processou o departamento onde estudou, exigindo o diploma ou uma indenização pelo tempo investido (um termo-fetiche do neoliberalismo).

Outra professora de uma universidade pública localizada no Planalto Central recebeu de um aluno um e-mail em que ele declarava ter decidido que o melhor para ele seria não escrever o trabalho final da disciplina – e solicitava ser aprovado mesmo assim. Uma amiga que leciona ciências exatas em uma universidade mineira recebeu de seus alunos uma lista de temas que eles queriam ver tratados na palestra a ser dada por uma pesquisadora visitante. No meio da pandemia, um pós-graduando – bolsista com dedicação exclusiva – enviou uma mensagem de última hora a seu orientador, dizendo que não participaria de uma reunião online de seu grupo de pesquisas porque estava cansado.

Outra colega, da área de comunicação social e residente em uma grande cidade do Nordeste, se assustou quando um aluno de graduação criticou duramente em aula um importante texto que ele não tinha lido nem queria ler, pois tinha ouvido falar mal do autor em um documentário (outro fetiche neoliberal: o consumo doméstico de informação midiática). Quando a professora retrucou, dizendo que o aluno não poderia atacar o texto sem tê-lo lido, ela foi acusada de autoritarismo.

Parece, entretanto, que, aos olhos de tão exigentes consumidores, os professores também podem errar ao propor mais diálogo. Um estudante de ciência política questionou em público o método didático de um colega (baseado em discussões e debates) e solicitou que o professor desse mais aulas expositivas. Alegou que era muito disperso e se perdia ao ouvir os colegas. A mim um aluno sugeriu que eu modificasse o programa de um curso porque ele achava parte da bibliografia “maçante”. É também corriqueira a impolidez de pós-graduandos brasileiros, que não agradecem a seus orientadores por esforços que foram muito além de suas obrigações, não pedem desculpas por falhas que cometem e exigem reuniões, atestados e assinaturas, amiúde com prazos impraticáveis, em vez de pedi-los com boa antecedência e de forma cortês, como se espera em interações com professores, colegas, amigos e… prestadores de serviços.

Não uso estes últimos termos por acaso. A privatização do público denunciada por Hannah Arendt é hoje uma realidade tão abrangente e onipresente que, como o ar que respiramos ou como o diabo que vive nos detalhes, já nem a percebemos mais. Quando a coletividade política se transforma em um conjunto de indivíduos-consumidores competindo no mercado, perde-se a ideia de que o professor é um servidor público dedicado a formar cidadãos instruídos e qualificados. Mesmo na educação pública, e entre aqueles que falam em seu nome, cresce o desejo de que ela passe a servir, de modo neoliberal, a esse consumidor autocentrado e oportunista que busca minimizar custos e maximizar benefícios. Assim, o professor universitário é tratado cada vez menos como um servidor público e cada vez mais como um prestador de serviços a indivíduos – um serviçal privado.

 

Aforça do neoliberalismo como fenômeno cultural se revela até nos ambientes mais progressistas, entre pessoas identificadas (por elas mesmas e por outros) como sendo de esquerda e que dizem estar lutando contra injustiças sociais. Mais assustador é que tais pessoas apresentam sua fantasia neoliberal como se fosse um projeto emancipador. Com isso, expande-se a suposição devastadora de que o professor, caso não aceite o papel de um serviçal privado, só pode ser um opressor.

Suspeito que isso se deva, em parte, à maneira distorcida como alguns alunos veem a assimetria inerente à educação, imaginando que os corpos docente e discente são como classes sociais – de um lado, a classe exploradora; de outro, a explorada. Eles supõem que o professor detenha uma superioridade essencial e que a posição de aluno seja involuntária e permanente. Esquecem que ninguém nasce professor e que a assimetria da sala de aula é contextual e temporária. O professor é apenas alguém com mais experiência e conhecimento em determinada área, e não um sujeito social dotado de um poder inerente ou de mais conhecimentos genéricos que os alunos. Aliás, muitos alunos de universidades públicas com atitudes como as que descrevi têm eles próprios a intenção de seguir a carreira docente, o que torna ainda mais absurda a identificação que fazem do professor com o opressor.

Essa identificação enganosa provavelmente se deve também ao perfil demográfico do corpo docente. A despeito de variações que possam ocorrer nas diferentes instituições e áreas de conhecimento, há em geral, entre professores universitários, uma sub-representação de grupos discriminados e oprimidos por razões raciais, étnicas, religiosas, de gênero, de sexualidade ou de classe. Como muitos alunos são afetados por essas discriminações, não é de estranhar que alguns vejam seus professores como sujeitos privilegiados e dotados de grande poder.

Se isso ajuda a explicar a visão de que o professor é um opressor, é certo que não a justifica, pois há vários problemas nessa concepção. Primeiramente, ela ignora a desigualdade de posições sociais e institucionais entre professores, pois pressupõe que todos somos oriundos de setores sociais dominantes ou privilegiados, ou associados a eles. Embora algumas formas de hierarquização e discriminação sejam facilmente visíveis e identificáveis, outras não são. Há, por exemplo, muitos professores de universidades conceituadas que passaram por grandes dificuldades econômicas em sua juventude, sofreram preconceito e opressão ao longo da vida e, por terem estudado em universidades de menor prestígio (ou até de mais prestígio, mas estrangeiras), nunca são plenamente aceitos como pares por seus colegas, que julgam ter melhor pedigree social e acadêmico. E, dadas as desigualdades de ordem salarial, origem geográfica e classe entre professores, muitos enfrentamos dificuldades materiais reais, além do desprestígio social que marca toda a categoria.

Fora isso, a identificação do professor com o opressor e as revoltas contra docentes fazem com que se gaste tempo e energia atacando pessoas que, na maior parte das vezes, são aliadas dos alunos e lutam pelas mesmas bandeiras que eles, a começar pela defesa de uma universidade pública mais justa, inclusiva e democrática. O motim que descrevi no início deste texto, por exemplo, aconteceu em 2017, quando a democracia se deteriorava e o autoritarismo crescia aceleradamente no Brasil. Tenho certeza de que os revoltosos viam a situação nacional com a mesma preocupação que seu professor, mas preferiram usar seu tempo e energia lutando por “causas” miúdas como os supostos direitos de estudar menos e de decidir o que ler. Há algo de muito errado e perigoso quando estudantes tentam transformar em pauta política a redução do rigor e da qualidade da educação.

 

Grave é também o desvio feito pela ofensiva política progressista quando ela passa a atacar seus aliados. A expressão mais atroz dessa deturpação é a proliferação de acusações infundadas de racismo, sexismo, classismo, homofobia e transfobia feitas contra professores. Todas as denúncias desse tipo devem ser levadas a sério e investigadas, pois disso depende a luta por uma universidade mais justa e inclusiva. Sabendo que preconceitos e assédios são uma realidade cotidiana da academia, como de tantas outras áreas, defendo veementemente a importância política dessas denúncias e o direito de todas as pessoas de fazê-las.

O fato de que o racismo, o sexismo, o classismo, a homofobia e a transfobia sejam frequentes nas escolas não significa, porém, que todas as denúncias sejam verdadeiras. Pode-se dizer o mesmo, imagino, de outros ambientes profissionais, mas esse fenômeno ganha contornos específicos no caso da universidade. Embora raramente tenhamos a coragem ou o interesse de falar disso em público, não é segredo para acadêmicos brasileiros e estrangeiros que parte dessas acusações são atos oportunistas de pessoas movidas por objetivos mais imediatos e pouco louváveis, como obter uma aprovação não merecida, diminuir a carga de estudo e conseguir facilidades na concessão de um diploma. A manipulação de injustiças, violências e exclusões para benefício individual é talvez a expressão mais feroz e perversa da neoliberalização cultural da educação pública.

A refinada perversidade dessa manipulação interesseira se dá em diferentes níveis. Para começar, os professores mais comumente acusados são os que estão em situações profissionais mais frágeis, em estágios iniciais da carreira, sem grandes vantagens imediatas a oferecer a seus alunos e cuja destruição moral não traz prejuízo a seus difamadores. Outro alvo comum de acusações infundadas são professores oriundos de grupos sociais discriminados e fragilizados. O preconceito de alguns indivíduos contra o próprio grupo oprimido é uma triste realidade, mas o que quero salientar é que muitas vezes os professores mais atacados e desrespeitados – por calúnia e difamação, assim como por outros atos cotidianos e discretos – são os mais desprovidos de poder, tanto dentro quanto fora da universidade.

Outras vítimas preferenciais são professores altamente mobilizados por questões políticas. Um professor de filosofia pós-colonial ou de história contemporânea tem muito mais probabilidade de ser atacado por uma afirmação que algum aluno considere inapropriada do que um professor de filosofia medieval ou de história antiga. Abundam os casos de professores feministas e ativistas de direitos LGBTQIA+ acusados de sexismo, homofobia e transfobia por darem aula sobre textos tidos como politicamente inapropriados ou por cometerem eventuais deslizes de linguagem passíveis de punição pela impiedosa e infatigável milícia do vocabulário.

Recentemente um professor de uma respeitada universidade pública do Sudeste, especializado em pensamento afro-atlântico, foi chamado de racista por uma mestranda. Ela havia sido reprovada em sua disciplina por não frequentar as aulas, não apresentar um seminário obrigatório, não escrever o trabalho final e não responder a repetidas tentativas de contato. O oportunismo da calúnia fica evidente ao sabermos que a aluna só fez a denúncia seis meses depois de sua reprovação, e no momento que estouraram os recentes protestos antirracistas nos Estados Unidos. Mordendo a isca, os defensores dela não se furtaram a equiparar a reprovação ao brutal assassinato de George Floyd! Quando foi demonstrado que a denúncia era falsa, outro aluno de “pós” – de pós-graduação e de pós-verdade – defendeu os ataques dizendo que, sendo o professor um homem branco (aliás, abertamente gay e em estágio probatório na universidade), não importava se as acusações eram verdadeiras ou não. Se o professor fosse menos forte e decidido, talvez tivesse deixado de dedicar seu ensino e pesquisa a questões raciais, e a luta antirracista teria perdido, graças ao neoliberalismo de esquerda, um aliado em uma instituição de grande visibilidade.

O uso oportunista e individualista de questões sociais seríssimas prejudica a luta política não apenas por alimentar as conhecidas reações conservadoras e preconceituosas, mas também por silenciar vozes aliadas e privatizar bandeiras coletivas fundamentais. Muitas vezes as acusações são tão egocêntricas que supõem que, caso um indivíduo não seja beneficiado da maneira que exige, isso demonstra que toda sua categoria está sendo prejudicada. Há casos em que um candidato a pós-graduação, ao não ser admitido em processos seletivos com cotas para grupos discriminados (como todos os programas devem incluir), afirma que sua não admissão é sintoma de preconceito – mesmo que, obviamente, a vaga que ele não obteve seja destinada a outra pessoa da mesma categoria (vemos aqui o problema do fogo amigo: programas que não praticam ações afirmativas não correm o risco desse tipo de acusação e seu racismo passa incólume). É mais uma vez o “eu” autocentrado exigindo direitos de consumidor, sequestrando e usando como disfarce o “nós” coletivo que reivindica direitos sociais justos e corretos.

Essa privatização é mais uma expressão do poder do neoliberalismo cultural no ensino público. Ao contrário do que afirmam alguns, tal privatização não defende a educação: nega a própria ideia de educação. Não é à toa que muitos estudantes (mas não apenas eles) julgam que o incontestável direito à educação equivale a um suposto direito universal a um título, o bem maior almejado pelos consumidores da universidade. Tive a oportunidade de ler várias cartas de alunos, endereçadas a professores e a instituições, que defendiam não tanto o direito de estudar, mas sobretudo o de receber um diploma acadêmico, independentemente do mérito do estudante. Reivindicações desse tipo, fantasiadas de luta democrática e igualitária, negam o pressuposto de que algumas pessoas têm certos conhecimentos específicos que podem ensinar a outras, em geral mais jovens, que ainda não os têm – e que para adquiri-los é preciso estudar. Tais reivindicações impedem a formação de cidadãos esclarecidos e transformam o direito à educação em direito a boas notas, aprovações e títulos.

Mas a força do neoliberalismo cultural na educação não para por aí. Como observou o professor Wilson Gomes, da Universidade Federal da Bahia, apenas a lógica competitiva de mercado permite entender a proliferação de cruéis, rasos e injustos ataques militantes a intelectuais politicamente engajados. Em suas palavras, “para os atacantes, são chances de melhor se posicionarem no mercado epistêmico: quem mais lacrar e mais humilhar mais acumula capital” (Folha de S.Paulo, 11/08/2020).

O artigo não se refere unicamente a agressões a docentes, mas não é coincidência que tenha sido escrito por um professor universitário a respeito de ataques sofridos por uma colega de profissão. Entre os vários supostos erros de que esta professora – a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz – foi acusada, estava o de, apesar de ser branca (judia, vale lembrar), ter dedicado décadas de pesquisa e atuação pública ao combate ao racismo. Afinal, como bem argumentou Gomes, a lógica do mercado raras vezes recompensa e estimula ataques a pessoas retrógradas e conservadoras. Racistas, sexistas, homofóbicos, transfóbicos, antissemitas e semelhantes seguem ilesos em suas reputações e fortalecidos em suas posições de poder, voz e visibilidade. Punindo e calando intelectuais progressistas, o neoliberalismo de esquerda dá mais espaço, mais vigor e mais protagonismo ao neoliberalismo stricto sensu que, pelo lado direito, ataca o ensino público e seus professores de forma igualmente atroz.

Infelizmente, contudo, a esse problema nós, os professores, temos também reagido de maneira tipicamente neoliberal. Por um lado, tendemos a atribuir a particularidades de certas situações e de indivíduos cada caso de abuso, desrespeito, privatização, calúnia ou difamação. Por outro, seguimos com o pacto não declarado de silêncio sobre essas questões por temermos, com razão, punições no mercado acadêmico. E muitas vezes cedemos na concessão das benesses exigidas pelos sujeitos neoliberais, seja por medo de eventual repercussão, seja por autoengano político. Com isso, acabamos por contribuir para a privatização da educação, no sentido amplo e cultural, e, claro, para a deterioração do ensino. Enquanto não entendermos que estamos diante de um fenômeno coletivo – o individualismo é um fenômeno coletivo – e enquanto não agirmos politicamente, ou seja, debatendo publicamente um problema político, a educação pública seguirá sendo atacada não apenas de forma espetacular, mas também rotineira e capilar; não apenas por governos e ideólogos de direita, mas também nos campi, nas ruas e nas mal denominadas redes sociais.

 

Assim, os professores universitários, sobretudo os de instituições públicas brasileiras, sofremos hoje duas virulentas ofensivas neoliberais. A direita nos ataca de modo neoliberal, combatendo em nome do mercado tudo que nossa educação pública conquistou a duras penas nas últimas décadas: inclusão social, expansão do ensino, ações afirmativas, financiamento à pesquisa, reflexões sofisticadas sobre a sociedade. A esquerda, usando camuflagens progressistas para disfarçar seu neoliberalismo, transforma alunos em consumidores, a educação em distribuição de diplomas, o rigor acadêmico em forma de opressão, os servidores públicos em serviçais privados.

Um lado defende abertamente o neoliberalismo, o outro pensa ser revolucionário. Mas ambos agem de forma mercantil e compartilham o ataque à educação pública e ao pensamento crítico. Ao castigarem os professores por ensinar, pensar e escrever, uns encontram nos outros os melhores aliados de suas cruzadas neoliberais autoritárias contra a liberdade de pensamento e de expressão. Assim como, em 1815, europeus católicos, protestantes e ortodoxos juntaram suas forças retrógradas em uma Santa Aliança contra os ideais republicanos, hoje em dia fanáticos à direita e à esquerda se unem religiosamente em uma aliança, desta vez não declarada, para combater a educação pública e os professores.

Quase todos os docentes de universidades públicas concordamos sobre os graves e evidentes perigos do neoliberalismo autoritário da direita, e fazemos o possível para combatê-lo. Mas para continuar e fortalecer essa luta devemos também romper nosso pacto de silêncio e reconhecer os perigos igualmente autoritários, igualmente violentos e igualmente neoliberais que vêm do outro lado – inclusive de nossos alunos.

É como um passo em direção a esse reconhecimento e a um debate amplo e democrático que escrevo este artigo. Apenas lamento que tenha de assiná-lo com um pseudônimo. O motivo disso está evidente. Nestes tempos de cruzadas autoritárias moralistas e de narcisismo midiático neoliberal, uma crítica como a que fiz aqui tem de lançar mão da privacidade autoral como escudo e refúgio.

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