Monday, 25 April 2016

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Monday, 18 April 2016

50 anos de calamidades na América do Sul

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50 anos de calamidades na América do Sul

Terremotos e vulcões matam mais, mas secas e inundações atingem maior número de pessoas
MARCOS PIVETTA | ED. 241 | MARÇO 2016

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© UNICEF / AFP
Efeitos do terremoto de 7.7 graus em 31 de maio de 1970 no Peru: 66 mil mortes no desastre com mais fatalidades dos últimos 50 anos na América do Sul
Efeitos do terremoto de 7.7 graus em 31 de maio de 1970 no Peru: 66 mil mortes no desastre com mais fatalidades dos últimos 50 anos na América do Sul
Um estudo sobre os impactos de 863 desastres naturais registrados nas últimas cinco décadas na América do Sul indica que fenômenos geológicos relativamente raros, como os terremotos e o vulcanismo, produziram quase o dobro de mortes do que eventos climáticos e meteorológicos de ocorrência mais frequente, como inundações, deslizamento de encostas, tempestades e secas. Dos cerca de 180 mil óbitos decorrentes dos desastres, 60% foram em razão de tremores de terra e da atividade de vulcões, um tipo de ocorrência que se concentra nos países andinos, como Peru, Chile, Equador e Colômbia. Os terremotos e o vulcanismo representaram, respectivamente, 11% e 3% dos eventos contabilizados no trabalho.
Aproximadamente 32% das mortes ocorreram em razão de eventos associados a ocorrências meteorológicas ou climáticas, categoria que engloba quatro de cada cinco desastres naturais registrados na região entre 1960 e 2009. Epidemias de doenças – um tipo de desastre biológico com dados escassos sobre a região, segundo o levantamento – levaram 15 mil pessoas a perder a vida, 8% do total. No Brasil, 10.225 pessoas morreram ao longo dessas cinco décadas em razão de desastres naturais, pouco mais de 5% do total, a maioria em inundações e deslizamentos de encostas durante tempestades.
© ANTÔNIO GAUDÉRIO / FOLHAPRESS 
Seca no Nordeste...
Seca no Nordeste…
O trabalho foi feito pela geógrafa Lucí Hidalgo Nunes, professora do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (IG-Unicamp) para sua tese de livre-docência e resultou no livroUrbanização e desastres naturais – Abrangência América do Sul (Oficina de Textos), lançado em meados do ano passado. “Desde os anos 1960, a população urbana da América do Sul é maior do que a rural”, diz Lucí. “O palco maior das calamidades naturais tem sido o espaço urbano, que cresce em área ocupada pelas cidades e número de habitantes.”
A situação se inverteu quando o parâmetro analisado foi, em vez da quantidade de mortos, o número de indivíduos afetados em cada tipo de desastre. Dos 138 milhões de vítimas não fatais atingidas por esses eventos, 1% foi alvo de epidemias, 11% de terremotos e vulcanismo, 88% de fenômenos climáticos ou meteorológicos. As secas e as inundações foram as ocorrências que provocaram impactos em mais indivíduos. As grandes estiagens atingiram 57 milhões de pessoas (41% de todos os afetados), e as enchentes, 52,5 milhões de habitantes (38%). O Brasil respondeu por cerca de 85% das vítimas não fatais de secas, essencialmente moradores do Nordeste, e por um terço dos atingidos por inundações, fundamentalmente habitantes das grandes cidades do Sul-Sudeste.
© AFP
...inundação em Caracas, na Venezuela: esses dois tipos de desastres são os que afetam o maior número de pessoas
…inundação em Caracas, na Venezuela: esses dois tipos de desastres são os que afetam o maior número de pessoas
Estimados em US$ 44 bilhões ao longo das cinco décadas, os prejuízos materiais associados aos quase 900 desastres contabilizados foram decorrentes, em 80% dos casos, de fenômenos de natureza climática ou meteorológica. “O Brasil tem quase 50% do território e mais da metade da população da América do Sul. Mas foi palco de apenas 20% dos desastres, 5% das mortes e 30% dos prejuízos econômicos associados a esses eventos”, diz Lucí. “O número de pessoas afetadas aqui, no entanto, foi alto, 53% do total de atingidos por desastres na América do Sul. Ainda temos vulnerabilidades, mas não tanto quanto países como Peru, Colômbia e Equador.”
Para escrever o estudo, a geógrafa com-pilou, organizou e analisou os registros de desastres naturais das últimas cinco décadas nos países da América do Sul, além da Guiana Francesa (departamento ultramarino da França), que estão armazenados no Em-Dat – International Disaster Database. Essa base de dados reúne informações sobre mais de 21 mil desastres naturais ocorridos em todo o mundo desde 1900 até hoje. Ela é mantida pelo Centro de Pesquisa em Epidemiologia de Desastres (Cred, na sigla em inglês), que funciona na Escola de Saúde Pública da Universidade Católica de Louvain, em Bruxelas (Bélgica). “Não há base de dados perfeita”, pondera Lucí. “A do Em-Dat é falha, por exemplo, no registro de desastres biológicos.” Sua vantagem é juntar informações oriundas de diferentes fontes – agências não governamentais, órgãos das Nações Unidas, companhias de seguros, institutos de pesquisa e meios de comunicação – e arquivá-las usando sempre a mesma metodologia, abordagem que possibilita a realização de estudos comparativos.
O que caracteriza um desastre
Os eventos registrados no Em-Dat como desastres naturais devem preencher ao menos uma de quatro condições: provocar a morte de no mínimo 10 pessoas; afetar 100 ou mais indivíduos; motivar a declaração de estado de emergência; ou ainda ser a razão para um pedido de ajuda internacional. No trabalho sobre a América do Sul, Lucí organizou os desastres em três grandes categorias, subdivididas em 10 tipos de ocorrências. Os fenômenos de natureza geofísica englobam os terremotos, as erupções vulcânicas e os movimentos de massa seca (como a queda de uma pedra morro abaixo em um dia sem chuva). Os eventos de caráter meteorológico ou climático abarcam as tempestades, as inundações, os deslocamentos de terra em encostas, os extremos de temperatura (calor ou frio fora do normal), as secas e os incêndios. As epidemias representam o único tipo de desastre biológico contabilizado (ver quadro).
062-065_Desastres climáticos_241O climatologista José Marengo, chefe da divisão de pesquisas do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), em Cachoeira Paulista, interior de São Paulo, afirma que, além de eventos naturais, existem desastres considerados tecnológicos e casos híbridos. O rompimento em novembro passado de uma barragem de rejeitos da mineradora Samarco, em Mariana (MG), que provocou a morte de 19 pessoas e liberou toneladas de uma lama tóxica na bacia hidrográfica do rio Doce, não tem relação com eventos naturais. Pode ser qualificado como um desastre tecnológico, em que a ação humana está ligada às causas da ocorrência. Em 2011, o terremoto de 9.0 graus na escala Richter, seguido detsunamis, foi o maior da história do Japão. Matou quase 16 mil pessoas, feriu 6 mil habitantes e provocou o desaparecimento de 2.500 indivíduos. Destruiu também cerca de 138 mil edificações. Uma das construções afetadas foi a usina nuclear de Fukushima, de cujos reatores vazou radioatividade. “Nesse caso, houve um desastre tecnológico causado por um desastre natural”, afirma Marengo.
Década após década, os registros de desastres naturais têm aumentado no continente, seguindo uma tendência que parece ser global. “A qualidade das informações sobre os desastres naturais melhorou muito nas últimas décadas. Isso ajuda a engrossar as estatísticas”, diz Lucí. “Mas parece haver um aumento real no número de eventos ocorridos.” Segundo o estudo, grande parte da escalada de eventos trágicos se deveu ao número crescente de fenômenos meteorológicos e climáticos de grande intensidade que atingiram a América do Sul. Na década de 1960, houve 51 eventos desse tipo. Nos anos 2000, o número subiu para 257. Ao longo das cinco décadas, a incidência de desastres geofísicos, que provocam muitas mortes, manteve-se mais ou menos estável e os casos de epidemias diminuíram.
Risco urbano 
O número de mortes em razão de eventos extremos parece estar diminuindo depois de ter atingido um pico de 75 mil óbitos nos anos 1970. Na década passada, houve pouco mais de 6 mil mortes na América do Sul causadas por desastres naturais, de acordo com o levantamento de Lucí. Historicamente, as vítimas fatais se concentram em poucas ocorrências de enormes proporções, em especial os terremotos e as erupções vulcânicas. Os 20 eventos com mais fatalidades (oito ocorridos no Peru e cinco na Colômbia) responderam por 83% de todas as mortes ligadas a fenômenos naturais entre 1960 e 2009. O pior desastre foi um terremoto no Peru em maio de 1970, com 66 mil mortes, seguido de uma inundação na Venezuela em dezembro de 1999 (30 mil mortes) e uma erupção vulcânica na Colômbia em novembro de 1985 (20 mil mortes). O Brasil contabiliza o 9º evento com mais fatalidades (a epidemia de meningite em 1974, com 1.500 óbitos) e o 19° (um deslizamento de encostas, em razão de fortes chuvas, que matou 436 pessoas em março de 1967 em Caraguatatuba, litoral de São Paulo).
Também houve declínio na quantidade de pessoas afetadas nos anos mais recentes, mas as cifras continuam elevadas. Nos anos 1980, os desastres produziram cerca de 50 milhões de vítimas não fatais na América do Sul. Na década passada e também na retrasada, o número caiu para cerca de 20 milhões.
062-065_Desastres climáticos_241-02Sete em cada 10 latino-americanos moram atualmente em cidades, onde a ocupação do solo sem critérios e algumas características geoclimáticas específicas tendem a aumentar a vulnerabilidade da população local a desastres naturais. Lucí comparou a situação de 56 aglomerados urbanos com mais de 750 mil habitantes da América do Sul em relação a cinco fatores que aumentam o risco de calamidades: seca, terremoto, inundação, deslizamento de encostas e vulcanismo. Quito, capital do Equador, foi a única metrópole que estava exposta aos cinco fatores. Quatro cidades colombianas (Bogotá, Cáli, Cúcuta e Medellín) e La Paz, na Bolívia, vieram logo atrás, com quatro vulnerabilidades. As capitais brasileiras apresentaram no máximo dois fatores de risco, seca e inundação (ver quadro). “Os desastres resultam da junção de ameaças naturais e das vulnerabilidades das áreas ocupadas”, diz o pesquisador Victor Marchezini, do Cemaden, sociólogo que estuda os impactos de longo prazo desses fenômenos extremos. “São um evento socioambiental.”
É difícil mensurar os custos de um desastre. Mas a partir de dados da edição de 2013 do Atlas brasileiro de desastres naturais, que usa uma metodologia dife-rente da empregada pela geógrafa da Unicamp para contabilizar calamidades na América do Sul, o grupo de Carlos Eduardo Young, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez no final do ano passado um estudo. Baseado em estimativas do Banco Mundial de perdas provocadas por desastres em alguns estados brasileiros, Young calculou que enxurradas, inundações e movimentos de massa ocorridos entre 2002 e 2012 provocaram prejuízos econômicos de ao menos R$ 180 bilhões para o país. Em geral, os estados mais pobres, como os do Nordeste, sofreram as maiores perdas econômicas em relação ao tamanho do seu PIB. “A vulnerabilidade a desastres pode ser inversamente proporcional ao grau de desenvolvimento econômico dos estados”, diz o economista. “As mudanças climáticas podem acirrar a questão da desigualdade regional no Brasil.”

Monday, 4 April 2016

Só descolonização da subjetividade trará mudança à América Latina, diz Walter Mignolo

http://www.dw.com/pt/s%C3%B3-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-da-subjetividade-trar%C3%A1-mudan%C3%A7a-%C3%A0-am%C3%A9rica-latina-diz-walter-mignolo/a-5285265


DA TERRA DO FOGO A TIJUANA

Só descolonização da subjetividade trará mudança à América Latina, diz Walter Mignolo

Para o pesquisador argentino, a criação de Estados nacionais após os movimentos de independência apenas abalou a ordem mundial moderna/colonial, mas só a descolonização do ser e do saber levará a uma mudança.
Walter Mignolo
Walter Mignolo
Deutsche Welle: Os movimentos de independência na América Latina completam 200 anos. Mas até que ponto é historicamente correto falar em independência? Seria possível unificar os movimentos de independência na América Latina em uma única corrente ou foram eles causados por fenômenos históricos distintos?
Walter Mignolo: Seria equivocado limitar a análise dos "movimentos de independência" apenas à América Latina. Pois a "América Latina" não existia no momento em que ocorreu a assim chamada independência. O que houve foi o desmembramento dos vice-reinados espanhóis nas Índias Ocidentais sob o ponto de vista dos espanhóis e da população crioula que buscava a independência da Espanha.
Acho que é hora de deixar para trás o imaginário nacional e ver o que aconteceu como o primeiro abalo da ordem mundial moderna/colonial, quando anglo-crioulos formaram os Estados Unidos na América do Norte, afro-crioulos fundaram a República do Haiti e crioulos hispânicos fundaram diversas repúblicas de Argentina e Chile a Estados Unidos do México.
Como você avalia o caso do Brasil, único dos países latino-americanos a permanecer uma monarquia após a independência?
O Brasil não é necessariamente uma anomalia, mas uma consequência de conflitos imperiais, de diferenças internas entre impérios europeus. No final do século 18, Inglaterra, Alemanha e França assumiram a liderança global, enquanto Portugal e Espanha perderam poder. Portugal transferiu a administração monárquica para o Brasil a fim de escapar dos avanços da França imperial no sul da Europa, antes de colonizar a norte da África.
O Brasil é uma anomalia apenas se os Estados Unidos da América do Norte, o Haiti e as formações republicanas da América espanhola forem tomadas como modelo. Mas não se observarmos a totalidade da formação atlântica desde o século 16, incluindo tanto a formação das colônias quanto os conflitos entre as nações imperiais – Espanha, Portugal, Inglaterra e França.
Alemanha e Itália não são países atlânticos e sua expansão colonial é mínima em relação a eles. Curiosamente, Alemanha e Itália – países sem forte dominação colonial – e Espanha – país imperial que perdeu seu último domínio em 1898 – foram os três países que engendraram Hitler, Mussolini e Franco.
Historicamente, é correto dizer que os movimentos de independência na América Latina foram consequência da Revolução Francesa, da Revolução Gloriosa e da independência dos Estados Unidos?
Pode ser. Mas não acho isso relevante, a menos que ainda estejamos presos na análise moderna, que procura quem influenciou quem, em vez de observar as turbulências do sistema mundial moderno/colonial. Tais revoluções devem ser vistas como parte de um abalo que alterou a formação do mundo atlântico.
A Revolução Inglesa de 1647-1649 e a Revolução Gloriosa nem poderiam ter acontecido sem os alcances extraordinários que a Inglaterra obteve do tráfico negreiro e das plantações no Caribe. Daí se deu a formação de uma burguesia comercial e financeira em Londres, Liverpool e Manchester.
Agora, é preciso fazer uma distinção fundamental entre as revoluções modernas na Europa e asrevoluções modernas/coloniais nas colônias. Antes de uma questão de influência, precisamos entender o campo sistêmico de forças. A diferença básica é que a revolução britânica e a francesa colocaram a burguesia no poder em substituição à monarquia.
Nas Américas, as revoluções não engendraram uma burguesia, mas uma elite colonial que assumiu o controle da economia, da autoridade, do conhecimento, do sexo e da sexualidade, dando continuidade à política imperial com relação aos afro-descendentes e à população indígena.
Enquanto, na Europa, a burguesia subiu ao poder, nas colônias, a elite colonial era basicamente uma elite de proprietários de terras e minas dependente dos efeitos crescentes da Revolução Industrial. Trata-se de uma elite ao serviço da burguesia européia, que fornecia recursos naturais para a Revolução Industrial.
O que definiu o desenvolvimento completamente diferente tomado pelos Estados Unidos após sua independência do destino dos países latino-americanos?
Os EUA, ao contrário dos vice-reinados hispano-americanos e da monarquia brasileira que ocupa quase todo o século 19, eram colônias da Inglaterra, país que estava assumindo a liderança imperial. Nas colônias inglesas que comporão os EUA, surgiu não só uma forte elite comercial mas também política, o que não foi o caso nas colônias inglesas no Caribe insular, por exemplo.
Os EUA se formaram sobre a base da elite política dos dissidentes crioulos, preconizados pelosfounding fathers. Em contrapartida, as demais colônias inglesas eram controladas por plantation owners com interesses estritamente econômicos, e não políticos.
Já as independências nas colônias ibéricas (mais cedo na América hispânica continental e mais tardias no Brasil e na América hispânica caribenha, como em Cuba, Porto Rico e República Dominicana) são independências de países imperiais que, ao final do século 18, haviam perdido a segunda era moderna.
Como se vê, não se trata de influências de causas e efeitos, mas da complexidade dos vínculos histórico-estruturais na formação do sistema-mundo moderno-colonial em seus primeiros 300 anos de existência. Lembre-se que, enquanto isso ocorria na Europa e na América, a Holanda e a Inglaterra começavam já suas incursões na Índia e logo a França o faria no Sudeste Asiático e na África.
Além disso, nas colônias inglesas no chamado Novo Mundo, conquistadores chegaram ao sul e ao Caribe, e peregrinos ao norte. Estes últimos não buscavam conquistas, mas liberdade, eram dissidentes da monarquia inglesa que, até a metade do século 17, não se diferenciava muito da castelhana.
Os peregrinos trouxeram consigo a energia política que os levara a deixar a Inglaterra e os fará construir politicamente o Novo Mundo. Dessa linha provém a formação dos EUA. Na América Ibérica, nada disso aconteceu. Nenhum contingente da coroa castelhana emigrou da península e se refugiou na América.
Até que ponto a América Latina é realmente "latina"? O nome "América Latina" está condenado a desaparecer?
The Idea of Latin America, obra de Walter Mignolo
'The Idea of Latin America', de Walter Mignolo
Se observar bem, cada vez menos se usa América Latina, dando preferência a América do Sul. Como expliquei em meu livro La idea de América Latina, a latinidade diz respeito apenas à população "branca" de ascendência europeia. Não vejo por que a população de ascendência africana teria que aceitar sua latinidade, em vez de sua africanidade. Da mesma forma, poderíamos falar em América Africana em vez de Latina. E de América Indígena, em vez de Africana ou Latina.
A latinidade foi um projeto imperial francês, quando o país, a partir do século 19, tentou recuperar a liderança dos países latinos do sul da Europa (Itália, Portugal, Espanha), a fim de enfrentar a liga anglo-saxônica da Inglaterra e da Alemanha. Esta divisão da Europa entre a Europa do Norte e do Sul, a anglo-saxônica e a latina, a protestante e a católica, se reproduz nas Américas: a América de Jefferson e a de Bolívar.
Pois esta história está chegando ao fim, o termo América Latina "incomoda" muita gente. Não só aqueles cujas memórias não são greco-romanas, e sim africanas ou indígenas, mas também os de ascendência europeia que consideram um atropelo impor a "latinidade" como um marco subcontinental. Tudo está mudando hoje, principalmente no Caribe insular (francês, inglês, holandês e espanhol) e continental. Aí a latinidade se reduz a um mínimo sustentável.
Além disso, é preciso perguntar quão "anglos" são os EUA, com 45 milhões de "latinos". Enquanto, na América do Sul e no Caribe, a latinidade se confunde com um termo hegemônico, nos EUA ela se converte em um desafio para a hegemonia da "anglicidade".
E por que os Estados Unidos reivindicam para si o nome América?
Durante o século 16 e todo o 17, a demografia das Américas era composta de habitantes nativos, europeus principalmente ibéricos e africanos escravizados. Durante quase todo o século 16, não se encontrava um inglês nem por casualidade. Walter Raleigh fundou uma colônia em Ronaoke em 1584, onde hoje é a Carolina do Norte. Os peregrinos chegaram à costa do que seria a Nova Inglaterra no começo do século 17.
Eles escaparam do absolutismo da coroa inglesa e, se não eram revolucionários, atuavam em dissensão. Isso não houve nem na Espanha nem em Portugal. Na Inglaterra, a situação política no século 17 foi acompanhada pelo crescimento econômico das plantações, principalmente no Caribe. Foi aí que a linha da teoria política de Maquiavel a Locke se afirmou na propriedade privada como critério fundamental do indivíduo soberano.
É isso que legitima Locke com relação à Revolução Gloriosa: seu tratado de governo reafirma os direitos da nascente burguesia, da soberania individual em relação à propriedade privada. Nada disso existiu na Península Ibérica, nem nas colônias luso-hispânicas.
Quem explicou o que quero dizer com clareza e erudição foi o venezuelano Enzo del Bufalo, num livro intitulado Americanismos y democracia (2002). Sua tese é de que o sujeito moderno, que já anunciava Cervantes na literatura e Descartes na filosofia, se concretizou politicamente na revolução colonial que gerou os Estados Unidos. Del Bufalo acerta ao distinguir entre americanismo e EUA. O americanismo é um projeto político que levou à formação do sujeito moderno e soberano, fundamentado na propriedade privada e que surge precisamente na América.
Esse projeto culminou com a formação do primeiro Estado moderno, os Estados Unidos da América do Norte (antes mesmo da Revolução Francesa). A historiografia europeia contou a história relegando a revolução americana a segundo plano. O sonho americano não são os Estados Unidos, mas o americanismo que os precede e funda. E esse mesmo Estado pode trair o sonho americano, como aconteceu no governo do segundo Bush. Uma das tarefas de Obama é precisamente restaurar esse americanismo.
Como disse Del Bufalo: "Os Estados Unidos da América são como a prática da América, que não é exatamente igual à América como projeto. Por sua vez, a América como utopia pode ser assumida por outros Estados sem nunca realmente se converter em uma prática, como ocorreu com os Estados latino-americanos".
O fim da Guerra Fria altera o significado e a predominância ideológica e econômica dos Estados Unidos na América Latina (e no mundo)?
Sim, muda muitas coisas, que eu resumiria em dois aspectos. Em primeiro lugar, a euforia e o senso de vitória da Europa Ocidental e dos EUA criaram as condições para os dois pilares da administração Bush: a invasão do Iraque e o colapso de Wall Street. Ou seja, o colapso do controle da autoridade e da economia pelos EUA.
Em consequência disso e do crescimento principalmente da China, mas também de outros países produtores de petróleo (Irã, Venezuela, Rússia), entramos em uma ordem policêntrica interconectada por um tipo de economia, a capitalista.
Quatro trajetórias dominarão o futuro global:
A primeira delas é o fim do ciclo de 500 anos de hegemonia e dominação ocidental, com a qual a administração Bush conseguiu acabar. A segunda é a deswesternização, que está sendo articulada no Leste e no Sudeste Asiático e consiste em aceitar a economia capitalista, mas disputar o controle da autoridade, do conhecimento, dos direitos humanos, das relações internacionais etc.
A terceira é a reorientação da esquerda, que tem várias caras: a esquerda europeia clássica, a esquerda europeia dos países do Sul, ligada ao Fórum Social Mundial, e a esquerda colonial, como é o caso da Bolívia, por exemplo.
E, por último, vem o descolonialismo, que começou durante a Guerra Fria com os movimentos de libertação nas colônias inglesas e francesas na África e na Ásia, mas que tem hoje outra cara, tanto epistêmica quanto política, na América do Sul e no Caribe.
Evo Morales é a primeira concretização desta tendência, enquanto os zapatistas foram o primeiro movimento social a aplicar o descolonialismo. Por mais que não tenham usado o termo, seus dizeres e ações eram descoloniais. Estas quatro tendências serão analisadas mais detalhadamente no meu próximo livro, The darker side of Western Modernity.
Como o senhor avalia o surgimento de uma nova esquerda pós-Guerra Fria no continente? Trata-se de uma ruptura ou é possível observá-la como um desenvolvimento político contínuo desde as independências?
Depois do fim da Guerra Fria, e talvez até o ano 2000, a esquerda boliviana foi, sem dúvida, a que mais contribuiu para a reorientação da esquerda moderno-colonial (que os europeus chamam apenas de esquerda moderna) e que se abriu para a compreensão histórica e as demandas indígenas propostas pelos escritos de José Carlos Mariátegui no Peru. Ela é, ao mesmo tempo, continuidade e câmbio com a esquerda nacionalista.
No entanto, a diferença colonial com projetos indígenas e afros persiste. A esquerda é um projeto "branco", para quem o fenômeno de classe é fundamental, enquanto que projetos indígenas e afros partem da raça como categoria fundamental.
Além disso, existe a questão do patriarcado, mais fácil de relacionar com a questão racial do que com a esquerda que mantém o fenômeno das classes como fundamento. Creio que, no futuro, os movimentos feministas, junto com projetos indígenas e afros, ganharão terreno sobre a primazia do marxismo e a Teologia da Libertação, as duas opções dissidentes que indígenas, afros e mulheres possuíam antes de iniciar seus próprios projetos.
Pode-se dizer que a estrutura colonial mantida desde a vigência do Colonialismo provoca a violação dos direitos humanos, a concentração de renda e a marginalização política de grupos inteiros da sociedade. Será possível superar essa ordem política e social sem uma nova revolução material?
Não se muda o mundo, mas sim as pessoas que fazem, controlam e desfazem o mundo. Uma "revolução" material sem a descolonização do conhecimento e da subjetividade só leva a mudanças de conteúdo, mas não dos termos na organização do mundo. Para isso, falta uma perspectiva que não seja nem o capitalismo nem o marxismo, mas descolonial. Ou seja, que as instituições (governo, economia, educação, saúde, alimentação) sejam postas a serviço da vida e não a vida a serviço das instituições.
Hoje a instituição que se procura salvar é o capitalismo. Nos dizem numa mesma notícia, com frequência, que a economia cresce, mas o desemprego também. A conexão que os jornais não fazem é que o que importa é a instituição, não a vida.
O projeto descolonial do qual faço parte inverte este processo: só a descolonização do ser e do saber levará a um câmbio do horizonte econômico e político. Precisamos concretizar o "sonho descolonial", segundo o qual as instituições estão a serviço da vida, em vez de por as pessoas a serviço das instituições. Esta fórmula é a base da retórica moderna e da lógica do colonialismo (duas caras da mesma moeda), da qual precisamos nos desprender a fim de permitir mudanças radicais.
Revoluções materiais guiadas pela esquerda não nos levam muito longe, pois mantêm os termos do discurso, mudando apenas os conteúdos, com resultados desastrosos até então.
Entrevista: Rodrigo Abdelmalack
Revisão: Roselaine Wandscheer