Céu sem lei – e controlado por garimpeiros
https://reporterbrasil.org.br/2021/06/ceu-sem-lei-e-controlado-por-garimpeiros/
Durante sobrevoo à Terra Indígena Yanomami, um avião ilegal de pequeno porte tentou interceptar a aeronave da reportagem, que constatou o cenário de devastação na floresta e nos rios deixado pela mineração
A visão não é a de um formigueiro humano como no garimpo de Serra Pelada, no Pará. Na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, o garimpo ilegal destrói a floresta amazônica de forma pulverizada, mas não menos feroz. Os núcleos de mineração de ouro se dispersam ao longo dos rios Uraricoera, Parima, Mucajaí e Couto de Magalhães. Em cada um deles, os solos expostos em extensas clareiras tingem a paisagem antes verde de um marrom dourado, quase ferrugem. São como cicatrizes abertas. Uma água barrenta escorre de lagoas de sedimentos e jorra para os rios. Há muito mercúrio, ainda largamente utilizado na extração do cobiçado minério. Mas carrega também o sangue dos Yanomami, que pedem socorro.
“Vocês verão muitas coisas ruins do avião; altos maquinários. Você vai se sentir triste, como nunca viu, como uma pessoa que entra na sua casa e estraga seu terreno. Vai ver que estamos falando a verdade. Você pode olhar, para você acreditar”, alertou o líder indígena Davi Kopenawa Yanomami. Reconhecido mundialmente como um grande defensor na luta pelos direitos da Terra Indígena (TI) Yanomami, Davi Kopenawa autorizou o sobrevoo feito no dia 30 de abril pela reportagem sobre as áreas de garimpo ilegal. Ele sabia que haveria riscos.
O avião da reportagem partiu de Boa Vista, capital de Roraima, e demorou uma hora até chegar à primeira área de garimpo. O verde da floresta amazônica predominava na paisagem nos primeiros 30 minutos de sobrevoo, já dentro dos limites da TI Yanomami, quando um avião de pequeno porte cruzou na frente da aeronave que transportava a reportagem. Localizada no extremo Norte do Brasil, a terra indígena de 9,6 milhões de hectares fica entre os estados de Roraima e Amazonas, e se estende até a fronteira com a Venezuela. À medida que as imagens da devastação do garimpo ilegal avançavam, aumentava também a presença de aviões e helicópteros que sobrevoavam o local, como se céu e terra pertencessem aos garimpeiros ilegais. É a terceira grande corrida do ouro desde os anos 1970.
A Amazônia Real se uniu à Repórter Brasil para investigar a fundo o problema do garimpo ilegal na maior terra indígena do Brasil. Foram quatro meses de apuração e a análise de mais de 5 mil páginas de documentos para traçar a rota do ouro, identificar as principais empresas compradoras, compreender as fragilidades na legislação (que isenta os compradores de qualquer responsabilidade), destrinchar o antigo interesse dos políticos na atividade e revelar como a rápida aproximação do garimpo com o tráfico internacional de drogas. A investigação teve acesso a dois inquéritos da Polícia Federal por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e às acusações do Ministério Público Federal, feitas com base em operações de combate ao garimpo na TI Yanomami feitas desde 2012.
O especial Ouro do Sangue Yanomami – que conta com sete reportagens – mostra que nesse exato instante há uma profusão de atores se enriquecendo com a atividade ilegal nas terras indígenas do país. É um crime contínuo, defendido pelo governo do presidente Jair Bolsonaro e tolerado pela sociedade.
Os voos irregulares
A bordo de um avião modelo Caravan, a equipe de reportagem da Amazônia Real sobrevoou cinco pontos da TI Yanomami em abril deste ano, duas semanas antes dos ataques a tiros à comunidade Palimiu por garimpeiros ligados à facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). Paapiu, Homoxi, Xitei, Parima e Waikás foram as áreas identificadas pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) por serem as mais críticas. É onde há muitos garimpeiros, presença ostensiva de balsas, de maquinários e voadeiras, contaminação das águas por mercúrio e extração das árvores em larga escala.
Aviões e helicópteros, mesmo voando de maneira irregular, parecem não se incomodar e muito menos temer o fato de estarem invadindo um espaço aéreo. É como se ali nem existissem os três Pelotões Especiais de Fronteira do Exército para impedi-los. Em céu de garimpeiro, eles dão as ordens.
Na região do Homoxi, um dos aviões permaneceu voando em círculos abaixo do Caravan da reportagem até que fôssemos embora. O risco de “levar tiro de garimpeiro”, expressado pelo piloto, impediu que voássemos mais baixo e acelerou a passagem do avião por algumas áreas garimpeiras para não chamar a atenção.
Em uma conversa de piloto para piloto, o que trabalhava para os garimpeiros perguntou ao que conduzia a equipe de reportagem quem é que estava na aeronave e se ele iria pousar. O piloto optou por não contar que estava com um fotógrafo e uma repórter a bordo. Segundo ele, era mais seguro seguir assim.
As aeronaves em áreas de mineração cumprem funções essenciais: transportar sondas, bombas, motosserras, calhas de lavagem, mangueiras, detectores de metais e o mercúrio, necessários para a mineração do ouro, suprimentos para manter os garimpeiros confinados por semanas e deixar claro que ali há donos. São eles que recolhem a pedra preciosa, prospectam novas lavras e mantêm a atividade aurífera a pleno vapor. Os produtores rurais repetem um mantra: “Olho de dono é que engorda boi”. No garimpo, o boi se chama ouro.
O rastro de destruição
Nas duas horas de duração do sobrevoo, o rastro de destruição causado pelo garimpo ilegal é constante. Há poucos locais em que a vista descansa para apreciar os trechos de floresta preservada sem invasores e os imensos buracos causados por homens e máquinas à procura de ouro. A proximidade das lavras garimpeiras, dos acampamentos não indígenas e de pistas clandestinas com as malocas e roçados das comunidades Yanomami mostra a ousadia dos invasores na certeza da impunidade.
Invasores que parecem porcos com fome, como afirma Davi Kopenawa. “Homem garimpeiro é como um porco de criação da cidade, faz muito buraco procurando ouro e diamante.” Kopenawa já presenciou a consequência e a violência das invasões com o episódio do massacre de Haximu, no Alto Orinoco, na Venezuela, em 1993, quando garimpeiros armados, numa série de ataques a tiros e facas, mataram 16 Yanomami. Foi o primeiro caso de genocídio reconhecido pela Justiça brasileira. Davi teme ver a história se repetir.
Sobrevoando a uma altura de 2 mil pés (600 metros do solo), a reportagem flagrou invasores trabalhando nas imensas crateras para extrair o ouro das cavas e dos barrancos. É intensa a movimentação de embarcações nos rios para abastecimento do garimpo. De cima, é nítido o funcionamento de uma complexa organização logística terrestre, fluvial e aérea que viabiliza a extração ilegal desse ouro de aluvião na TI Yanomami em uma escala intensa e frenética.
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O relatório “Cicatrizes na Floresta – Evolução do Garimpo Ilegal na Terra Indígena Yanomami”, lançado em março de 2021 pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) e Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume), aponta cerca de 20 mil garimpeiros ilegais no território. No entanto, os próprios garimpeiros dão um número maior. Segundo o aviador e histórico minerador José Altino Machado seriam mais de 26 mil homens nesta que é conhecida como a terceira corrida do ouro em Roraima. Zé Altino, como é mais conhecido, é presidente da União Sindical dos Garimpeiros da Amazônia Legal e foi o responsável pela primeira e segunda invasões no território nos anos 1970 e 1980.
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Pistas clandestinas
Além dos aviões e helicópteros, dos maquinários, das balsas e voadeiras previamente antecipadas por Davi Kopenawa, há incontáveis pistas clandestinas, de diferentes tamanhos, que rasgam a floresta. Algumas são coladas às malocas dos Yanomami. Assim como balsas e maquinários pesados, que também estão próximos de algumas comunidades e dos roçados indígenas.
Na região do Homoxi, na fronteira com a Venezuela, os garimpeiros levantaram um alojamento a alguns metros de distância de uma comunidade. De um lado da margem de um igarapé contaminado pela ação do mercúrio, uma grande maloca e mais duas menores aparecem circundadas pela área de roçado, onde é cultivado o alimento de toda a aldeia. Do outro lado da margem, está o acampamento dos invasores. A cena é marcada por lavras de garimpo, rio assoreado, imensos buracos de terra escavada e as lagoas de sedimentos deixados pela fúria da atividade ilegal.
São muitas as cicatrizes deixadas pelos garimpeiros na TI Yanomami. Uma vez exaurida a extração do ouro, é hora de levantar o acampamento, recolhendo as improvisadas barracas de lonas azuis para serem usadas num outro ponto de garimpagem. Se a lavra for “rentável”, os garimpeiros ficam meses nela. Caso contrário, partem para outra localidade no que eles consideram ser uma terra sem dono. Em uma lavra, a concentração de um metal tão raro quanto o ouro é de apenas alguns gramas por tonelada de terra minerada.
A Força Aérea Brasileira, segundo o Ministério da Defesa, faz o monitoramento do espaço aéreo 24 horas por dia, e caso haja aeronaves suspeitas e não identificadas sobrevoando a TI Yanomami, há procedimentos de interceptação. Em nota enviada à reportagem, o ministério afirma atuar “permanentemente no combate a delitos transfronteiriços e ambientais” e que as ações são coordenadas pelo Centro de Operações Militares 4, do 4º Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta), localizado em Manaus.
2.430 hectares destruídos
Tal avizinhamento e o risco que isso acarreta foram alvo de denúncia no relatório produzido pelos Yanomami. De um lado, há o agravamento no quadro epidemiológico, como a disparada nos casos de malária. Com o desmate florestal, a proliferação do mosquito Anopheles é facilitada, potencializando a disseminação da doença. Entre 2014 e 2019, os casos de malária quintuplicaram na TI Yanomami. E o garimpo também está relacionado a altas taxas de contaminação por mercúrio, usado para separar o ouro (o metal pesado e tóxico cria um amálgama que depois, ao ser incinerado, se volatiza e é levado pelo vento), causando danos de longo prazo e irreversíveis na saúde dos indígenas, além de gerar desestruturação econômica e levar a conflitos violentos.
O tamanho da destruição do garimpo ilegal do ouro já chega a 2.430 hectares na TI Yanomami, o equivalente a 2.430 campos de futebol, segundo o relatório mais recente da HAY, divulgado em maio deste ano. Somente em 2020, a degradação avançou 500 hectares, associada à intensificação do uso de material pesado e sofisticado para a extração do minério. A atividade garimpeira se prolifera no território, subindo os rios, com crescentes núcleos de invasores e novas rotas de acesso ao interior da floresta amazônica.
A região do Waikás, conhecida como Tatuzão do Mutum, continua no topo do ranking da devastação. Em 2017, o local contava com uma estrutura até então inédita em terras indígenas de Roraima, com casas, mercearia, pontos de acesso à internet e cabeleireiros.
É possível avistar pela janela do avião que, mesmo a área já tendo sido alvo de operações do Exército, a atividade clandestina continua a funcionar com alojamentos instalados ao longo do leito do rio Uraricoera, mas também adentrando a mata. Waikás já teve cerca de 35% do total de suas terras degradadas.
A área fica a poucos minutos da comunidade Palimiu, onde aconteceram os primeiros ataques a tiros contra o povo Yanomami por garimpeiros ligados ao PCC, conforme noticiou em primeira mão a Amazônia Real. A sensação, mesmo do alto, é de destruição acelerada e de impotência. Como disse Kopenawa à reportagem: “nossos inimigos são muitos e nós somos poucos”.
Equipes da série Ouro do Sangue Yanomami
Amazônia Real: Kátia Brasil (editora-executiva); Eduardo Nunomura (editor de especiais); Alberto César Araújo (editor de fotografia), Elaíze Farias (editora de conteúdo); Maria Fernanda Ribeiro, Clara Britto e Alicia Lobato (repórteres); Bruno Kelly (fotografia do sobrevoo) e Paulo Dessana (fotógrafo); Lívia Lemos (mídias sociais); Maria Cecília Costa (assistente executiva); Giovanny Vera (mapa); César Nogueira (montagem); e Nelson Mota (desenvolvedor).
Repórter Brasil: Ana Magalhães (coordenadora de jornalismo); Mariana Della Barba (editora); Mayra Sartorato (editora de redes sociais); Piero Locatelli e Guilherme Henrique (repórteres); Joyce Cardoso (estagiária).
* crédito da imagem em destaque: Instituto Socioambiental (ISA)