Friday, 8 July 2022

A LAVAGEM DA BOIADA

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anais da floresta I

Como os gigantes do setor frigorífico impulsionam o desmatamento na Amazônia ao comprar gado de áreas griladas

Allan de Abreu | Edição 190, Julho 2022


Na vastidão da Amazônia, a fazenda Santa Rita está longe de ficar entre as grandes propriedades. Tem apenas 294 hectares e seus pastos alimentam algumas centenas de cabeças de gado. O que a torna peculiar é sua localização ilegal: fica no coração da Floresta Nacional (Flona) de Itacaiúnas, no município de Marabá, sudeste do Pará. A floresta, criada em 1998 para ser um santuário de espécies raras, como a arara-azul e a onça-parda, não pode ser ocupada por fazendas, mas, nestas duas primeiras décadas do século XXI, vem sendo devastada por garimpeiros e ladrões de terras públicas, que buscam madeiras nobres e novas áreas para a criação de gado.

Atualmente, existem 48 grileiros dentro da Flona. Juntos, eles ocupam uma área de 20 848 hectares e são donos de pelo menos 20 mil cabeças de gado. Entre os grileiros, está Luzimarque Veloso, de 50 anos, que se apresenta como proprietário da fazenda Santa Rita. Naquelas terras públicas, ele cria, recria e engorda gado em larga escala para abastecer os grandes frigoríficos do país, entre eles a JBS, a maior processadora de proteína animal do mundo. Como é proibido criar gado naquela terra, e importadores e consumidores tendem a rejeitar comprar carne de origem ilegal, Veloso abastece a JBS por meio de uma operação indireta – como a que aconteceu em 28 de agosto de 2019, no auge do verão amazônico.

Naquela manhã, um caminhão fez umas viagem curta, transportando 54 novilhos, com idades entre 25 e 36 meses, da fazenda Santa Rita para a fazenda Santa Cecília II, que fica a apenas 14 km de distância, mas numa área já legalizada, fora dos limites da Flona de Itacaiúnas. Nos documentos que registraram o transporte, consta que o objetivo era engordar os animais na Santa Cecília II. Embora seja normal levar os animais de fazendas de cria para fazendas de engorda, neste caso era só um disfarce. Menos de uma semana depois, dezoito novilhos fizeram nova viagem, desta vez até uma unidade da JBS, em Tucumã, a 100 km de distância. Nos dias 11 de setembro e 10 de outubro, os outros 36 garrotes foram levados pelo mesmo percurso. Abatidos na JBS, os 54 animais terminaram na forma de peças de filé-mignon, picanha e alcatra nos supermercados.

Para efeitos legais, os animais chegaram aos frigoríficos procedentes da Santa Cecília II, uma fazenda dentro da lei. Na verdade, fizeram ali apenas uma escala de alguns dias porque, de fato, foram criados na fazenda de um grileiro no meio de uma floresta nacional. É a operação “lavagem da boiada”, cada vez mais comum. Entre 2018 e 2021, pelo menos 91 238 animais saíram de terras públicas invadidas no Pará, conforme levantamento inédito feito pela piauí em parceria com três entidades: o Center for Climate Crime Analysis (CCCA), uma ONG que estimula a aplicação da lei contra ações ilegais que agravam as mudanças climáticas e violam direitos humanos, o Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), um consórcio internacional de jornalismo que investiga corrupção e crime organizado, e a Fiquem Sabendo, agência de dados especializada na Lei de Acesso à Informação. O estudo baseia-se nas chamadas Guias de Trânsito Animal (GTAs), documentos geridos pelos estados para fazer o controle sanitário do gado. Mas é provável que o número de cabeças criadas em terras roubadas seja bem maior que 91 mil, considerando os casos em que o transporte do gado de áreas irregulares até fazendas legalizadas é clandestino, sem registro em nenhuma GTA.

Embarcar mais de 90 mil animais é uma operação hercúlea. São necessários 2,5 mil caminhões trucks, que, se colocados em fila, somariam 35 km de extensão. As 91 mil cabeças – que renderam mais de 22,8 mil toneladas de carne pronta para consumo – terminaram em 129 frigoríficos e abatedouros de todos os cantos do Brasil, o que inclui desde um humilde matadouro em Guaraciaba do Norte, no sertão do Ceará, até as instalações de gigantes como a JBS (21 191 animais) e a Marfrig (12 262), passando por frigoríficos médios no Oeste do Paraná e no interior de São Paulo. Dos dez maiores frigoríficos do país, seis adquiriram gado de áreas griladas e desmatadas no Pará nos últimos quatro anos. Parte dessa carne deixou o país e acabou também nos supermercados no exterior.


“O nível de contaminação do gado ilegal não é uma questão de uma ou duas maçãs podres, é um problema do setor como um todo”, afirma Rhavena Madeira, diretora do CCCA no Brasil. “O fato de que grandes empresas conseguem manter (e aumentar) seus lucros ao mesmo tempo em que burlam as restrições cria um sério problema de competitividade, pois coloca aqueles que desejam produzir de forma sustentável em desvantagem econômica, uma vez que incorporam os devidos custos da atividade social e ambientalmente correta.”

piauí procurou Veloso, o dono da Santa Rita, mas ele não quis falar. “Sobre meus negócios, não costumo conversar nem com conhecido, que dirá com estranhos. Vai caçar informação em outro canto.” Veloso tem segurança para dizer o que diz porque não é incomodado pelos órgãos de fiscalização e pode operar à luz do dia. Tanto que sua propriedade está oficialmente proibida de comercializar gado desde 2009 devido ao desmatamento ilegal – e, no entanto, funciona como se fosse um negócio regular.

A JBS informou que, por causa de irregularidades ambientais, deixou de comprar gado na Santa Cecília II em 2020, mas afirma que não encontrou os registros dos 21 191 que, conforme o levantamento da piauí e seus parceiros, passaram pela “lavagem da boiada”. A empresa diz que não tem acesso à base de dados das GTAs. Em nota, a JBS acrescentou: “De toda forma, a empresa vai entrar em contato com todos os seus fornecedores diretos citados [pela piauí], solicitando que façam a verificação de suas cadeias e reforçando a urgência de se cadastrarem na Plataforma Pecuária Transparente.” A plataforma é um cadastro ao qual todos os fornecedores indiretos da JBS deverão aderir até 2025. A empresa informou que já bloqueou 14 mil pecuaristas por irregularidades ambientais e que fornece assessoria técnica gratuita aos seus fornecedores para a regularização ambiental das propriedades. “A JBS está comprometida com uma cadeia bovina sustentável em todos os biomas em que opera”, completou. (No ano passado, a empresa disse que estava empenhada em alcançar o nível de “desmatamento zero” até 2035. Anos antes, fizera a mesma promessa, dizendo que chegaria lá até 2011.)

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A lavagem da boiada não serve apenas para abastecer o mercado de carne. Em novembro do ano passado, o jornal The New York Times publicou uma reportagem mostrando que o esquema da triangulação é usado por curtumes operados pelos mesmos frigoríficos – JBS e Marfrig, além do Minerva. O jornal detalhou a operação em terras griladas na Reserva Extrativista Jaci-Paraná, em Rondônia, e mostrou que parte do couro dos animais criados em fazendas ilegais fora importada para os Estados Unidos pelas grandes fabricantes de automóveis. General Motors, Ford e Volkswagen usam o couro para forrar os bancos de seus carros de luxo.

 

No dia 10 de junho, na Nona Cúpula das Américas, em Los Angeles, o presidente Jair Bolsonaro fez um discurso de dez minutos. Estava pressionado pelos números crescentes de desmatamento e queimadas na Amazônia e também pelo sumiço do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, no Vale do Javari, perto da fronteira com o Peru. Bolsonaro disse que o governo estava fazendo o possível para encontrar os desaparecidos (os corpos de ambos seriam localizados dias depois) e aproveitou a oportunidade para apresentar o Brasil como um exemplo mundial de preservação ambiental. Logo no início do discurso, afirmou que a agropecuária brasileira não precisa avançar sobre a Floresta Amazônica para crescer. “Não necessitamos da região amazônica para expandir nosso agronegócio”, disse.

A declaração não veio acompanhada de números, mas é flagrantemente contrária à realidade. A principal causa de desmatamento na Amazônia é, justamente, o agronegócio. Longe da fiscalização do poder público e amparada no poderoso lobby do setor agropecuário, a criação de gado em áreas griladas e desmatadas ilegalmente vem se alastrando pela floresta. De tal modo que, hoje, a pecuária é a principal causa do desmatamento em larga escala na região. De acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), 90% das áreas desmatadas na região são ocupadas por pastagens. Isso acontece porque, em parte, o custo de criação de gado é baixo, pois, ao contrário de outras culturas, não requer correção do solo nem adubação. Além disso, diante da falta de fiscalização e controle, é enorme a facilidade de se ocupar uma terra ilicitamente.

A Flona de Itacaiúnas é apenas uma das áreas devastadas pela pecuária. A poucos quilômetros de Novo Progresso, a Floresta Nacional do Jamanxim é outra vítima. Dali, saiu quase metade dos 91 mil bois oriundos de áreas griladas no Pará entre 2018 e 2021. Foram exatamente 41 407 animais. A principal fonte é a Fazenda Renascer, campeã em venda de gado entre as áreas griladas do estado: foram 4 770 cabeças nos últimos quatro anos. A Renascer é propriedade do empresário Neivar Zorthea. Conhecido como Nei, ele é de Zortéa, cidadezinha fundada por seus antepassados no meio-oeste de Santa Catarina. Na década de 1980, Zorthea mudou-se para Joinville, em cuja periferia abriu um supermercado e uma transportadora. Antigos vizinhos disseram ser uma pessoa simples e discreta, que costuma circular por Joinville em uma caminhonete Chevrolet s10 branca. Fora desse pequeno círculo, o empresário é desconhecido na cidade, inclusive entre líderes empresariais e políticos.

No início da década passada, Zorthea e uma de suas irmãs, a fisioterapeuta Angelica Zorthea, tomaram posse irregularmente das fazendas Renascer, Morro e Bom Jesus, todas dentro da Flona do Jamanxim. A Renascer é a maior delas, com 2,4 mil hectares, dos quais um terço foi transformado em pastagens. Em outubro, quando visitei a região, encontrei milhares de cabeças de gado da raça Nelore na propriedade, que fica a cerca de 40 km da rodovia BR-163. O acesso é feito por uma estrada de terra malconservada, intransitável em dias de chuva. Desde 2014, parte da fazenda Bom Jesus está interditada devido ao desmatamento ilegal de 76 hectares, o que levou o Ibama a multar Angelica em 380 mil reais. Há seis anos, o Ministério Público Federal pediu à Justiça a expulsão da fisioterapeuta e de outros sete invasores do Jamanxim. A ação até hoje não foi julgada.

Em 2018 e 2019, Zorthea vendeu 1 480 animais para o frigorífico Redentor Foods, seu principal cliente, que na época pertencia à família Bihl, dona de um currículo nada exemplar: em 2007, o patriarca, José Almiro, foi acusado pelo governo federal de dar um calote de 27 milhões na Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Dois anos mais tarde, ele e três filhos foram presos pela Polícia Federal na Operação Abate, acusados de pagar propina a servidores do Ministério da Agricultura para liberar o funcionamento de um curtume em Rondônia.

Para fazer a “lavagem da boiada”, os irmãos Zorthea usam uma fazenda a 30 km de distância, fora dos limites da Flona do Jamanxim. No dia 31 de maio de 2019, por exemplo, 119 bois, quase todos com mais de 36 meses, já prontos para o abate, saíram da Renascer para a fazenda legalizada. Três dias depois, os mesmos animais, “lavados”, foram transportados em caminhões para o Redentor Foods, em Novo Progresso. Duas semanas mais tarde, em 14 de junho, parte dessa carne, na forma de miúdos bovinos, embarcou em um navio no Porto de Itajaí com destino a Hong Kong. A mercadoria fora adquirida por uma subsidiária da dinamarquesa Danish Crown, a maior processadora de carne na Europa. Naquele ano de 2019, Hong Kong importou 329 mil toneladas de miúdos bovinos congelados, dos quais a maior parte foi reenviada para países vizinhos, principalmente Vietnã, Coreia do Sul e Taiwan.

Procurada, a Danish Crown informou apenas que desde 2020 não mantém mais negócios com a Redentor Foods. Giovan Santos, que se apresenta como gestor de sustentabilidade do Grupo Bihl, disse que a empresa, pelo menos quando estava sob o comando da família Bihl, fazia um rigoroso controle sobre seus fornecedores de gado. “Dispensávamos muitos produtores naquela região por conta desses problemas fundiários. Mas um ou outro caso pode passar batido”, diz ele. Neivar Zorthea não quis falar com a piauí. A defesa de Angelica também não se pronunciou.

Bovinos pastam na fazenda Renascer, dentro da floresta nacional do Jamanxim, em Novo Progresso, sul do Pará. Crédito: Raimundo Paccó

 

No dia 10 de maio, a cidade de Parauapebas, a 130 km da Flona de Itacaiúnas, decidiu fazer “o maior churrasco do mundo” para comemorar seus 34 anos. A empreitada reuniu o prefeito Darci Lermen, do MDB, uma rede de supermercados e o sindicato local dos produtores rurais. Foram 20 toneladas de costela bovinas assadas no estilo gaúcho, fincadas no chão em seiscentos espetos, debaixo de dois enormes galpões no parque de exposições do município. “A pecuária no Pará tem uma força imensa e gera muitos empregos, especialmente nos frigoríficos instalados no sudeste do estado”, disse Lermen à piauí. O Pará possui o terceiro maior rebanho bovino do país, com 22,3 milhões de animais, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A carne foi adquirida pelo supermercado Atacadão Macre diretamente da filial do Frigorífico Rio Maria, na vizinha Canaã dos Carajás, e doada à festa. Tudo estaria bem não fosse um problema de origem: o Rio Maria é um infrator ambiental conhecido, com multas aplicadas pelo Ibama que somam 306 mil reais nos últimos seis anos, inclusive por comprar carne de área grilada. Tanto que, nos últimos quatro anos, abateu pelo menos 740 cabeças de gado de terras ilegais do Pará. Se as costelas do maior churrasco do mundo vieram de peças criadas em áreas griladas, o supermercado não sabe. Álvaro José Soares Junior, gerente do Atacadão Macre, disse desconhecer a origem da carne que doou: “Temos apenas uma relação de compra e venda [com o frigorífico]. Investigações ambientais ou de qualquer outra natureza não são de nossa competência.”

Apesar das evidências levantadas pelo estudo da piauí e seus parceiros, o dono do Rio Maria, Roberto Resende Paulinelli, nega que tenha comprado animais de propriedade griladas ou com desmatamento ilegal. “Nunca compramos gado dessas áreas”, disse. “Temos uma empresa terceirizada que monitora toda a compra de gado.” A empresa terceirizada é a NicePlanet Geotecnologia. Procurado, o diretor Jordan Timo Carvalho disse que atualmente a empresa não consegue fiscalizar os fornecedores indiretos do Rio Maria, e que o frigorífico desenvolve um projeto para rastrear o gado dos seus fornecedores por meio de brincos. (A NicePlanet criou uma ferramenta para monitorar as fazendas e as exigências ambientais, mas, depois de três anos de testes, não conseguiu avançar por falta de adesão dos pecuaristas. Um dos que não aderiram foi o próprio Timo Carvalho, que também cria gado. Sua justificativa: “Sou pecuarista de engorda, e o animal magro é minha matéria-prima. Por que eu iria criar uma restrição para mim, encarecer [a mercadoria que compro], se isso não fosse me trazer nada, somente o resultado da pesquisa?”)

O processo de grilagem e destruição ambiental na Amazônia começa diante do computador, quando o grileiro registra uma área dentro de unidades de conservação ou de terras indígenas como se fosse sua propriedade. O registro é feito no chamado Cadastro Ambiental Rural (CAR), um sistema online e autodeclaratório. Regulamentado em lei desde 2012, o CAR é um instrumento importante que se destina a regularizar as áreas de proteção ambiental dentro de cada propriedade rural. Só que, desvirtuado, o CAR vem sendo usado por grileiros para se apossarem ilegalmente de terras públicas.

Feito o registro, o passo seguinte é retirar da área grilada toda a madeira com valor de mercado. Depois, vem o maquinário para “limpar” a área. Quem me explicou em detalhes esse processo foi um dono de tratores em uma oficina mecânica de Novo Progresso, a 500 metros do escritório do Ibama, em outubro passado (como ele não deu uma entrevista formal à piauí, sua identidade será preservada). Segundo explicou, dois tratores andam lado a lado arrastando uma corrente muito grossa que arranca tudo o que encontra pela frente. São necessárias seis horas, em média, para desmatar um alqueire (equivalente a cerca de 2 hectares e meio, ou quase três quarteirões), ao custo de 450 reais a hora. Sobram tocos e pedaços de raízes. “Fica tudo quebrado”, diz o tratorista.

Para ganhar tempo, logo atrás dos tratores vêm pelo menos dez peões jogando sementes de capim no solo. Mas o gado não é colocado ali de imediato, porque os tocos acabam por maltratar os animais. O ideal é que os tratores entrem em ação em outubro ou novembro, para que as chuvas do inverno amazônico, entre dezembro e maio, façam crescer o capim. “Aí, em agosto, com a seca, você põe fogo em tudo. Em pouco tempo o capim nasce de novo e fica tudo limpinho”, concluiu o tratorista. A demanda pelo maquinário naquelas semanas de outubro estava alta. “Estou com meus tratores todos no meio do mato. Só tenho data disponível para daqui a dois meses.”

Nesse processo, derruba-se a floresta para criar gado e não se ganha nada em produtividade. Aliás, a produtividade da pecuária amazônica é a mais baixa do país, de acordo com o Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás. No Pará, criam-se em média dez bois em um espaço de 10 hectares. No Paraná, com a mesma quantidade de terra, cria-se o dobro de cabeças de gado. “A baixa produtividade gera menos tributação e, portanto, reduz a capacidade do estado de modernizar o setor. É um ciclo vicioso”, diz Paulo Barreto, pesquisador do Imazon. O pior é que os estudos mostram que vale mais a pena investir na produtividade de áreas que já foram desmatadas do que devastar novas áreas em busca de mais pastagens.

Nos cálculos de Barreto, é mais barato desmatar um hectare (1,5 mil reais) do que recuperar um hectare degradado (3 mil reais). Diante disso, fica-se com a impressão de que, financeiramente, vale a pena desmatar novas áreas e abandonar áreas degradadas. Mas é exatamente o inverso. Porque, quando se trata de criar boi, 1 hectare recuperado é três vezes mais produtivo do que 1 hectare desmatado. Ou seja: criam-se três cabeças de gado em 1 hectare de pasto reformado ao custo de 3 mil reais, enquanto, para criar os mesmos três animais, é preciso desmatar 3 hectares ao custo total de 4,5 mil reais. É 50% mais caro. “O estudo mostra estatisticamente como a atual pecuária na Amazônia é contraproducente”, diz o pesquisador.

 

Criadas pelo governo federal em 1995, um ano após um surto de febre aftosa no país, as Guias de Trânsito Animal só têm sido usadas com fins sanitários, e não ambientais. Um decreto do governo paraense de 2014 poderia resolver o problema ao proibir a emissão de GTAs para quem esteja irregular no Cadastro Ambiental Rural. No entanto, por pressão do lobby da pecuária, até hoje, oito anos depois, o decreto não foi implementado. “[Os pecuaristas] Reclamam que fazer esse monitoramento é injusto porque as GTAs não foram concebidas com esse fim”, afirma o pesquisador ambiental Mairon Bastos Lima, do Stockholm Environment Institute (SEI), centro sueco de pesquisas ligadas ao meio ambiente. “Soa quase engraçado, se não fosse retrógrado e trágico.” Argentina, Chile, Uruguai, Austrália e países da União Europeia possuem há anos monitoramento individual dos seus rebanhos bovinos, por meio de brincos na orelha do animal ou mesmo chips implantados sob o couro.

É fácil entender por que os maus pecuaristas resistem à fusão das informações do CAR e das GTAs. Em 2014, os fiscais do Ibama encontraram um modo de fazê-lo, cruzando o número do CPF ou do CNPJ, que constam obrigatoriamente das duas bases de dados. Em abril daquele ano, de posse dos dados do CAR, pediram os mesmos dados das GTAs para a Agência de Defesa Agropecuária do Pará (Adepará), já que as informações não estão disponíveis ao público. Só foram atendidos em 2016, depois de apresentar doze pedidos à agência.

Quando finalmente estavam de posse dos dados das GTAs, os fiscais do Ibama selecionaram 29 áreas embargadas por desmatamento ilegal em quatro municípios no Sul e sudeste do Pará, incluindo São Félix do Xingu, que reúne o maior rebanho no estado. As 29 áreas foram visitadas – por terra ou sobrevoo – para verificar se havia nelas a presença de gado, já que o embargo proíbe a exploração econômica da área. Concluído o trabalho, constataram que, entre os anos de 2013 e 2016, quinze frigoríficos instalados em Tocantins, Bahia e no próprio Pará (entre eles, as unidades da JBS de Redenção e Santana do Araguaia, e o Frigorífico Rio Maria, o do megachurrasco) haviam adquirido 58 879 animais de vinte propriedades com áreas embargadas.

Com base nessa descoberta, 48 agentes do Ibama deflagraram a Operação Carne Fria, na manhã do dia 20 de março de 2017, uma segunda-feira. Suspenderam as atividades dos quinze frigoríficos e aplicaram um total de 264 milhões de reais em multas. A reação das empresas, capitaneadas pela JBS, não tardou: políticos do estado aliados do agronegócio passaram a pressionar o Ibama a suspender o embargo, com o argumento de que a medida causaria um grande prejuízo econômico aos municípios. Naquela mesma segunda-feira, o então senador tucano Flexa Ribeiro reuniu-se com o então ministro do Meio Ambiente, Zequinha Sarney, e com a presidente do Ibama, Suely Araújo. Uma coletiva de imprensa de Araújo, prevista para o fim daquela manhã, foi cancelada. Alguns dias depois, na tribuna do Senado, Ribeiro reclamou de Suely Araújo: “Ela precisa ter mais pulso firme com os seus funcionários, que são irresponsáveis.”

Na época, a JBS ainda mantinha laços muito próximos com Michel Temer (MDB). Tanto que, duas semanas antes da Carne Fria, Temer recebera o empresário Joesley Batista, um dos donos da JBS, para aquela conversa cuja gravação rendeu um escândalo nacional que quase levou o então presidente à renúncia. O fato é que, apenas três dias depois da deflagração da Carne Fria, o Ibama suspendeu os embargos das vinte áreas fiscalizadas e demitiu três funcionários de cargos de chefia. Apesar dos números superlativos, a operação teve pouco destaque na imprensa. “A mídia brasileira é amplamente patrocinada pelo agronegócio e pelo setor da pecuária em especial”, diz o pesquisador Mairon Lima, do sei. “O Brasil é um país pitoresco, onde os comerciais em horário nobre são sobre salsicha, carne e presunto.”

O Ibama ainda tentou acionar o Ministério Público Federal, encaminhando a documentação da Carne Fria. Sugeriu que o MPF entrasse com ação judicial pedindo reparação por danos ambientais e multa contra os frigoríficos pelo descumprimento do acordo em que se comprometiam a só comprar gado de terra legalizada e sem desmatamento. Em agosto de 2018, porém, os procuradores Daniel Azeredo e Ricardo Negrini decidiram engavetar as sugestões. “As providências administrativas adotadas pelo Ibama já efetivam certo grau de repressão que se mostra mais que suficiente”, escreveram. O projeto de uma investigação mais ampla da pecuária paraense, no que seria a Operação Carne Fria 2, previsto para 2019, foi engavetado na gestão Bolsonaro.

No fim da gestão de Michel Temer, já em 2018, o Ministério do Meio Ambiente começou a desenhar um novo sistema para a fiscalização das cadeias produtivas da carne e da soja na Amazônia. Chamava-se “e-Controle”. Finalmente, o projeto previa automatizar os dados ambientais do CAR com os dados sanitários das GTAs – e deixar tudo aberto à consulta pública. Os técnicos do ministério estimavam que o e-Controle reduziria gastos, evitando longos deslocamentos, aumentaria o número de embargos e facilitaria o rastreamento da produção da pecuária e da soja. O novo sistema custaria 18 milhões de euros, cerca de 100 milhões de reais em valores de hoje, e seria bancado pelo governo da Alemanha. Mas o projeto foi engavetado já no primeiro ano do governo Bolsonaro.

Gado ocupa fazenda desmatada em 2021 da floresta nacional do Jamanxim. Crédito: Raimundo Paccó

 

Na primeira metade dos anos 2000, a Amazônia brasileira ardia em chamas, com recordes históricos de desmatamento. Em 2004, a floresta perdeu nada menos que 27,7 mil km2. A então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, intensificou as ações do Ibama contra a invasão de terras públicas e, em dezembro de 2007, estabeleceu, pela primeira vez, o embargo de áreas desmatadas ilegalmente, proibindo a exploração econômica desses polígonos e corresponsabilizando aqueles que adquirissem produtos dessas áreas, especialmente gado e soja. No ano seguinte, o Conselho Monetário Nacional (CMN) proibiu os bancos públicos de financiar donos de áreas griladas e desmatadas ilegalmente. Era o Brasil entrando numa era de ouro da preservação ambiental.

No plano judicial, o Ministério Público Federal ingressou com 21 ações civis públicas contra frigoríficos do Pará, acusando-os de “responsabilidade compartilhada” por danos ambientais ao adquirir gado de áreas irregulares. O cerco à pecuária ampliou-se em 2009, quando o Greenpeace, uma das maiores ONGs ambientais do mundo, divulgou o relatório A Farra do Boi na Amazônia, expondo as ilegalidades na cadeia de fornecimento do gado a frigoríficos do Pará e de Mato Grosso. Acuadas, as três maiores empresas do setor (JBS, Marfrig e Minerva) assinaram um acordo com a ONG. Comprometiam-se a não comprar gado diretamente de áreas invadidas ou desmatadas a partir de outubro de 2009. E, a partir de 2011, não comprariam gado de áreas desmatadas nem por fornecedores indiretos. Dois anos depois, os frigoríficos formalizariam acordo semelhante com o Ministério Público Federal, um Termo de Ajustamento de Conduta que ficou conhecido como “TAC da Carne”.

Considerando todas as iniciativas do governo federal na época, o desmatamento na Amazônia caiu gradualmente, chegando ao seu mais baixo ponto em 2012, quando “apenas” 4,5 mil km2 de floresta foram desmatados, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um enorme contraste em relação à devastação de 2004. Apesar da redução do desmatamento, as exportações do agronegócio na Amazônia não caíram. Ao contrário, subiram de 38,9 bilhões de dólares em 2004 para 95,7 bilhões em 2012, segundo dados do próprio Ministério da Agricultura. Na época, o Brasil tornou-se um interlocutor respeitado internacionalmente em questões ambientais e de mudanças climáticas, já que tinha serviços concretos para mostrar.

O quadro começou a se degenerar na segunda gestão de Dilma Rousseff, mas o vento virou em definitivo sob o governo Bolsonaro. A fiscalização sobre os fornecedores indiretos – os ilegais que criam o gado e depois despacham os bichos para fazendas legalizadas – tornou-se virtualmente inexistente. Tanto que os 31 frigoríficos do Pará que assinaram o TAC da Carne compraram pelo menos 73 812 cabeças de gado de áreas griladas no estado, segundo mostra o levantamento da piauí e do CCCA – o que corresponde a 81% do total das 90 mil cabeças de gado. “Os fornecedores indiretos são hoje o grande gargalo do TAC”, admite o procurador Negrini. Uma parte desses animais – quase 2 mil – foi comprada diretamente de fazendas em terras públicas, mostrando que, nesse caso, os frigoríficos nem se deram ao trabalho de fazer a “lavagem da boiada”.

A fiscalização escassa explica fenômenos como o de Domingos Bispo de Oliveira, um baiano que na década de 1990 ganhou um lote do Incra e hoje é um grande pecuarista, com cinco fazendas registradas no CAR – duas delas dentro da Terra Indígena de Cachoeira Seca, no meio-oeste do Pará, a mais desmatada da Amazônia em 2020. Uma de suas propriedades é a Baixão Verde, com 711 hectares. É irregular e integra o esquema da “lavagem da boiada”. No segundo semestre de 2018, a Baixão Verde triangulou ao menos 689 cabeças de gado para 22 frigoríficos, dez deles signatários do TAC da Carne. Entre as fazendas intermediárias está a Cascata, situada em área legalizada, às margens da Transamazônica, que pertence ao próprio Oliveira.

Uma das principais clientes do grileiro é a unidade de Tucumã da Marfrig, segunda maior processadora de proteína animal do Brasil. Como o TAC é assinado por unidade frigorífica, e não por empresa, a Marfrig driblou o acordo com os procuradores, optando por inserir no TAC três de suas quatro unidades no Pará – excluiu a de Tucumã. Assim, enquanto os três frigoríficos dentro do acordo não compraram nenhuma cabeça de gado de áreas griladas (“Para nós, atuar de forma social e ambientalmente responsável pressupõe adotar critérios de compra responsável”, informa o site da empresa), a unidade de Tucumã adquiriu ao menos 12 262 animais que passaram por áreas griladas, segundo o estudo da piauí e parceiros. O frigorífico de Tucumã foi fechado no início de 2020 porque seu desempenho não estava “dentro da expectativa”, segundo a Marfrig.

Em nota, a empresa negou que tenha driblado as restrições do TAC. “A Marfrig, sob nenhuma hipótese, ‘limpa’ suas operações: é uma companhia que opera de maneira idônea e transparente.” Sobre os 12 262 animais oriundos de áreas griladas, a assessoria afirmou que, no momento em que comprou gado dessas fazendas, as propriedades “atendiam integralmente” aos critérios socioambientais da empresa e que todas as unidades da empresa, incluindo a de Tucumã, foram auditadas. “É amplamente conhecida a complexidade da pecuária no Brasil, e a Marfrig tem aplicado todos os esforços para assegurar que 100% de sua cadeia de fornecimento, incluindo fornecedores diretos e indiretos, sejam identificados desde a origem e, consequentemente, controlados e monitorados.” Oliveira, o dono da Baixão Verde, não se manifestou. Em 2020, ele foi multado em 1,5 milhão de reais pelo Ibama por desmatamento ilegal. Somente neste ano, quatro anos depois da “lavagem da boiada” flagrada pela piauí e seus parceiros, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará cancelou o CAR da fazenda ilegal.

Diante dos furos no TAC, ambientalistas criticam o atual estado de letargia do acordo, sob as vistas grossas do MPF. “Mesmo sendo o principal vetor de desmatamento do país há anos, e, portanto, sem executar ações realmente efetivas, as empresas do setor da carne ainda saem grandes nessa história, e o TAC as ajuda”, diz Lima do sei. “Certas empresas que transgridem têm interesse apenas no diálogo. Ou melhor, em serem vistas dialogando. Estar fazendo parte de um processo de governança já lhes permite passar uma imagem de boa-fé, de atores que cooperam, ainda que aquele processo não dê em nada. É uma ingenuidade pouco desculpável, a meu ver. Lá se vão anos.”

Daniel Freire, presidente do Sindicato da Indústria de Carnes e Derivados no Estado do Pará (Sindicarne), defende a importância do TAC atual. “Temos uma transparência de dados que outros estados da Amazônia Legal não têm”, diz. De fato, o Pará tem adotado medidas mais avançadas do que outros estados, num movimento que os ambientalistas têm reconhecido. Freire cita, por exemplo, o programa Selo Verde, criado em 2021 pelo governo paraense, com o objetivo de apontar se o gado vem de uma área desmatada ou não. O problema é que o sistema, embora positivo em seu propósito, é pouco transparente. Além de alcançar apenas as fazendas, e não os frigoríficos, só é possível pesquisar dados por meio do número do registro do CAR, que é quase um código secreto: é composto por cinquenta caracteres numéricos e alfabéticos e está disponível apenas para o próprio dono da área.


Com a colaboração de Luiz Fernando Toledo, Silvio Melatti e Pak Lam Pun. Infografias de Rodolfo Almeida.

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