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Saturday, 23 August 2014

O Manifesto Antropófago e seu papel crucial

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Manifesto Antropófago e seu papel crucial

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Documento de Oswald evoca comunismo, revolução e psicanálise, mas os enxerga em perspectiva radicalmente descolonizada e não-cristã
Por Oswald de Andrade | Imagem: Jean de Léry
Ei-lo, caraíbas, que surge esfomeado: o antropófago.
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Como observa Benedito Nunes, no excelente ensaio, “Antropofagia ao alcance de todos”,Manifesto da Poesia Pau-Brasil “inaugurou o primitivismo nativo”, i ao passo que, no Manifesto Antropófago, esse outro documento básico do nosso modernismoii, já se introduz uma “apreciação da realidade sociocultural brasileira”. iii
Assim, temos um estilo telegráfico, semelhante ao anterior, com os seus aforismos. Estes vêm misturados “numa só torrente de imagens e conceitos”.No texto, podemos acompanhar a “provocação polêmica”, em diálogo com a “proposição teórica, a piada às idéias, a irreverência à intuição histórica, o gracejo à intuição filosófica”. iv
E exatamente, nesse manifesto, escrito em maio de 1928, Oswald de Andrade lança a palavra “antropofagia”, provocando a sensibilidade do leitor com uma experiência decisivamente tabu em nossa cultura.
Em parte, seguindo de perto os caminhos de Bendito Nunes, somos lançados diante de uma imagem que não dará descanso, obsedante. Antropofagia. Ela virá cheia de “ressonâncias mágicas e sacrificiais”, ao mesmo tempo em que se afina com um repertório demolidor de “anedotas de almanaque”. v Isso ocorre enquanto a própria palavra postula funcionar como engenho verbal ofensivo.
Essa mesma palavra, antropofagia, é claramente um “instrumento de agressão pessoal e arma bélica de teor explosivo”. vi
É ainda um “vocábulo catalisador, reativo e elástico”, que mobiliza as mais profundas “negações numa só negação”: a prática do canibalismo. vii Agudamente enquanto metáfora cultural.
Assim, a devoração antropofágica – “Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem.”, como diz Oswald no manifesto – é o “símbolo cruento, misto de insulto e sacrilégio, de vilipêndio e de flagelação pública”. viii
Nessa palavra, que contém em si o próprio homem, podemos entender algo próximo a uma sucessão corrosiva verbal da “agressão física a um inimigo de muitas faces, imaterial e proteico”. ix
E que faces seriam essas? Está em Oswald e em Benedito:
o aparelhamento colonial político-religioso repressivo sob que se formou a civilização brasileira, a sociedade patriarcal com seus padrões morais de conduta, as suas esperanças messiânicas, a retórica de sua intelectualidade, que imitou a metrópole e se curvou ao estrangeiro, o indianismo como sublimação das frustrações do colonizado, que imitou atitudes do colonizador”. x
Bom alimento! (Theotônio de Paiva, editor da seção especial “Oswald 60″)
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
*-*-*-*-*
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.
*-*-*-*-*
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.
*-*-*-*-*
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.
*-*-*-*-*
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
*-*-*-*-*
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
*-*-*-*-*
Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade do ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
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Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Où Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.
*-*-*-*-*
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
*-*-*-*-*
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
*-*-*-*-*
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
*-*-*-*-*
Só podemos atender ao mundo orecular.
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Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
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Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
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Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
*-*-*-*-*
O instinto Caraíba.
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Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Kosmos ao axioma Kosmos parte doeu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.
Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
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Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de Senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.
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Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipejú.
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A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.
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Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o.
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Só não há determinismo, onde há mistério. Mas que temos nós com isso?
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Contra as histórias do homem, que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.
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A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.
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Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
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Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É a mentira muitas vezes repetida.
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Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
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Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.
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Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.
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As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.
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De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.
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O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + falta de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.
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É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
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O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?
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Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
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Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
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A alegria é a prova dos nove.
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No matriarcado de Pindorama.
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Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
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Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.
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Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
*-*-*-*-*
A alegria é a prova dos nove.
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A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura-ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
*-*-*-*-*
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
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A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
*-*-*-*-*
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.
OSWALD DE ANDRADE
Em Piratininga
Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.
(Revista de Antropofagia: São Paulo, ano 1, nº 1, 1º de maio de 1928.)

iNunes, Benedito. “Antropofagia ao alcance de todos”. In: Andrade, Oswald. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias: manifestos, teses de concursos e ensaios. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. xxxvi.
iiVale mencionar esse documento já se encontra, em forma reduzida, no livro de poesias Pau-Brasil (“Falação”).
iiiNunes, 1978, p. xiv.
ivNunes, 1978, p. xxv.
vNunes, 1978, p. xxv.
viNunes, 1978, p. xxv.
viiNunes, 1978, p. xxv.
viiiNunes, 1978, p. xxv.
ixNunes, 1978, p. xxv.
xNunes, 1978, p. xxv. Vale lembrar que o Manifesto Antropófago motivou a Revista de Antropofagia. Na sua primeira fase (maio de 1928 a fevereiro de 1929), foi dirigida por Alcântara Machado. Posteriormente, na chamada “segunda dentição”, circulou como página semanal do Diário de São Paulo e órgão do Clube de Antropofagia (março a agosto de 1929). Na época, tinha como secretários, que se revezaram, os “açougueiros”: Geraldo Ferraz, Jayme Adour da Câmara e Raul Bopp.

Monday, 18 August 2014

Woodstock foi há 45 anos

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http://www.esquerda.net/artigo/woodstock-foi-ha-45-anos/33783


Woodstock foi há 45 anos

A grande vitória da sua geração foi ter contribuído para o fim da guerra do Vietname. O seu exemplo repercutiu-se posteriormente nos ativismos em defesa do meio ambiente e de outras causas. Por António José André
O Festival reuniu cerca de 450 mil pessoas. Foto de Derek Redmond e Paul Campbell
O Festival reuniu cerca de 450 mil pessoas. Foto de Derek Redmond e Paul Campbell
No dia 18 de agosto de 1969, chegou ao fim o Festival de Woodstock, após três dias de “paz, música e amor”. O Festival reuniu cerca de 450 mil pessoas, que assistiram a concertos com Joan Baez, Joe Cocker, Janis Joplin, Santana, Who, Creedence Clearwater Revival, Grateful Dead, Jefferson Airplane, entre outros/as.
Woodstock foi o culminar de vários acontecimentos importantes da época: a escalada norte-americana no Vietname, na década de 60, que criou um forte movimento pacifista entre os jovens e a crescente mecanização da indústria, que dispensou a força física do trabalho, ajudando a demolir o ascetismo puritano norte-americano.
Grandes festivais de rock já tinham acontecido, em Monterey (1967) e na Ilha de Wight, mas foi em Woodstock que a indústria cultural investiu fortemente, pela primeira vez. Um dos momentos marcantes do festival foi quando Jimi Hendrix puniu simbolicamente os militaristas com a implosão do hino norte-americano: "Star-Spangled Banner".
Com Woodstock ganhou repercussão o movimento de paz e amor, que fermentava como desdobramento da Geração Beat. De certa forma, este movimento inspirou-se em teóricos como Wilhelm Reich, Herbert Marcuse e Norman O'Brown, que vincularam o autoritarismo político à repressão instintiva, alegando que a liberdade era cerceada pelos mecanismos sociais que mantinham a estrutura de classes e que condicionavam a plena sexualidade.
A grande vitória da Geração Woodstock foi ter contribuído para o fim da guerra do Vietname. O seu exemplo repercutiu-se posteriormente nos ativismos em defesa do meio ambiente e de outras causas. Além disso, lançou alguns modismos que ainda hoje são evidentes: o ioga, a macrobiótica, a agricultura biológica...
Termos relacionados Cultura

Tuesday, 29 July 2014

O impacto de Poesia Pau-Brasil

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O impacto de Poesia Pau-Brasil

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Em 1924, meses após publicação do manifesto de Oswald, Paulo Prado antevê: acabou tempo da “eloquência balofa”, de imitar Europa decadente. Exigimos “outros poetas, outros versos”
Por Paulo Prado | Imagem Tarsila do Amaral, Morro da Favela (1925)
levante
Contam que houve uma porção de enforcados
E as caveiras espetadas nos postes
Da fazenda desabitada
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Miavam de noite
No vento do mato
Oswald de Andrade, Poemas da Colonização

Com esse artigo do Paulo Prado, “Poesia Pau-Brasil”, escrito em 1924, procuramos avançar no percurso modernista e no entendimento da obra de Oswald de Andrade.
Evidentemente que não estamos desenvolvendo um traçado em linha reta, mecanicamente cronológico. Não teríamos meios, nem essa é nossa intenção. No entanto, procuramos organizar, de algum modo, esse universo modernista no que ele possui de requintado e multifário.
Apenas dois exemplos. O texto do Oswald, “Informe sobre o Modernismo”, escrito em 1945, foi uma maneira de pensarmos a semana de 22 e o modernismo, assim como já havíamos feito com a publicação de um longo ensaio de Mário de Andrade [aqui] e [aqui].
E tem mais. Precisaremos abordar ainda o polêmico tema da antropofagia, assim como os demais trabalhos do escritor, os trabalhos e obras de outros modernistas, como o próprio Paulo Prado, Villa-Lobos, Flávio de Carvalho e Raul Bopp. Mas não é só isso: existem as vanguardas, a relação do modernismo com as diversas práticas culturais e o modernismo hoje. Vamos aos poucos.
No presente artigo, destaca-se claramente a sua função de um documento histórico da experiência modernista. Além disso, nele antevemos algumas preocupações que o seu autor desenvolveria, mais tarde, em “Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira”.
Escrito quando da publicação do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil“, de Oswald de Andrade, o texto de Paulo Prado traz como um dos grandes eixos de discussão, o “problema do nacionalismo”, naquilo que diz respeito à construção de um pensamento modernista.
Mas existe a outra volta do parafuso. Nesse sentido, em que pese o problema da mentalidade colonial, que atravessa, segundo Paulo Prado, a evolução da “vida intelectual do Brasil”, a perspectiva histórica, que ora vivenciamos, nos coloca diante de uma outra questão igualmente sensível.
Conforme observa Pascoal Farinaccio, em seu estudo sobre a crítica literária na obra oswaldiana, há um “núcleo basilar de nosso Modernismo”1 que assimilou a cobrança nacionalista como “critério de aferição do valor artístico das obras”2. E isso em alguma medida está presente no texto do Paulo Prado.
Há ainda o tema da ausência de uma produção de crítica modernista em discrepância com a sua produção artística. Evidentemente que esse é outro motivo para tornar esse texto ainda mais significativo.
Por último, vale prestar atenção na preocupação do seu autor quanto à renovação dos modos de expressão, aliado à permanência do “mal da eloquência balofa” em nossa literatura. Esses dois aspectos podem ser compreendidos no célebre aforismo de que os tempos modernos não cabiam mais na tessitura dos sonetos. Assim, no início do século XX, estamos diante do canto novo nietzschiano. (Theotonio de Paiva, editor de “Oswald 60″)
1 Farinaccio, Pascoal. Serafim Ponte Grande e as Dificuldades da Crítica Literária. São Paulo: Ateliê Editorial: FAPESP, 2001, p. 29.
2 Idem, p.29
____

Poesia Pau-Brasil

A poesia “pau-brasil” é o ovo de Colombo – esse ovo, como dizia um inventor meu amigo, em que ninguém acreditava e acabou enriquecendo o genovês. Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy – umbigo do mundo — descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia “pau-brasil”.
Já tardava essa tentativa de renovar os modos de expressão e fontes inspiradoras do sentimento poético brasileiro, há mais de um século soterrado sob o peso livresco das ideias de importação. Um dos aspectos curiosos da vida intelectual do Brasil é esse da literatura propriamente dita ter evoluído acompanhando de longe os grandes movimentos da arte e do pensamento europeus, enquanto a poesia se imobilizou no tomismo dos modelos clássicos e românticos, repetindo com enfadonha monotonia as mesmas rimas, metáforas, ritmos e alegorias. Veio-lhe sobretudo o retardo no crescimento do mal romântico que, ao nascer da nossa nacionalidade, infeccionou tão profundamente a tudo e a todos. Com a partida para fora da colônia do lenço de alcobaça e da caixa de rapé de D. João VI, emigraram por largo tempo deste país o bom senso terra-a-terra e a visão clara e burguesa das coisas e dos homens.
Em política o chamado “grito do Ipiranga” inaugurou a deformação da realidade de que ainda não nos libertamos e nos faz viver num como sonho de que só nos acordará alguma catástrofe benfeitora. Em literatura, nenhuma outra influência poderia ser mais deletéria para o espírito nacional. Desde o aparecimento dos Suspiros poéticos e Saudades, de Gonçalves de Magalhães, que os nossos poetas e escritores, até os claros dias de hoje, têm bebido inspirações no crânio humano cheio de bourgogne com que se embebedava Childe Harold nas orgias de Newstead. O lirismo puro, simples e ingênuo, como um canto de pássaro, só o exprimiram talvez dois poetas quase desprezados – um, Casimiro de Abreu, relegado à admiração das melindrosas provincianas e caixeiros apaixonados; outro, Catulo Cearense, trovador sertanejo, que a mania literária já envenenou. Foram esses, melancólicos, desalinhados e sinceros, os dois únicos intérpretes do ritmo profundo e íntimo da Raça, como Ronsard e Musset na França, Moeriken e Uhland na Alemanha, Chaucer e Burns na Inglaterra, e Whitman nos Estados Unidos. Os outros são lusitanos, franceses, espanhóis, ingleses e alemães, versificando numa língua estranha que é o português de Portugal, esbanjando talento e mesmo gênio num desperdício lamentável e nacional.
O verso clássico:
“Sur des pensers nouveaux, faisons des vers antiques” está também errado. Não só mudaram as ideias inspiradoras da poesia, como também os moldes em que ela se encerra. Encaixar na rigidez de um soneto todo o baralhamento da vida moderna é absurdo e ridículo. Descrever com palavras laboriosamente extraídas dos clássicos portugueses e desentranhadas dos velhos dicionários, o pluralismo cinemático de nossa época, é um anacronismo chocante, como se encontrássemos num Ford um tricórnio sobre uma cabeça empoada, ou num torpedo a alta gravata de um dândi do tempo de Brummel. Outros tempos, outros poetas, outros versos. Como Nietzsche, todos exigimos que nos cantem um canto novo.
A poesia “pau-brasil” é, entre nós, o primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro. Na mocidade culta e ardente de nossos dias, já outros iniciaram, com escândalo e sucesso, a campanha de liberdade e de arte pura e viva, que é a condição indispensável para a existência de uma literatura nacional. Um período de construção criadora sucede agora às lutas da época de destruição revolucionária, das “palavras em liberdade”. Nessa evolução e com os característicos de suas individualidades, destacam-se os nomes já consagrados de Ronald de Carvalho, Mário de Andrade e Guilherme de Almeida, não falando nos rapazes do grupo paulista, modesto e heroico.
manifesto de Oswald, porém, dizendo ao público o que muitos aqui sabem e praticam, tem o mérito de dar uma disciplina às tentativas esparsas e hesitantes. Poesia “pau-brasil”. Designação pitoresca, incisiva e caricatural, como foi a do confetismo e fauvismo para os neo-impressionistas da pintura, ou a do cubismo nestes últimos quinze anos. É um epíteto que nasce com todas as promessas de viabilidade.
A mais bela inspiração e a mais fecunda encontra a poesia “pau-brasil” na afirmação desse nacionalismo que deve romper os laços que nos amarram desde o nascimento à velha Europa, decadente e esgotada. Em nossa história já uma vez surgiu esse sentimento agressivo, nos tempos turbados da revolução de 93, quando “pau-brasil” era o jacobinismo dos Tiradentes de Floriano. Sejamos agora de novo, no cumprimento de uma missão étnica e protetora, jacobinamente brasileiros. Libertemo-nos das influências nefastas das velhas civilizações em decadência. Do novo movimento deve surgir, fixada, a nova língua brasileira, que será como esse “Amerenglish” que citava oTimes referindo-se aos Estados Unidos. Será a reabilitação do nosso falar quotidiano,sermo plebeius que o pedantismo dos gramáticos tem querido eliminar da língua escrita.
Esperemos também que a poesia “pau-brasil” extermine de vez um dos grandes males da raça – o mal da eloquência balofa e roçagante. Nesta época apressada de rápidas realizações a tendência é toda para a expressão rude e nua da sensação e do sentimento, numa sinceridade total e sintética.
“Le poète japonais
Essuie son couteau:
Cette fois l’éloquence est morte.”
diz o haicai japonês, na sua concisão lapidar. Grande dia esse para as letras brasileiras. Obter, em comprimidos, minutos de poesia. Interromper o balanço das belas frases sonoras e ocas, melopeia que nos aproxima, na sua primitividade, do canto erótico dos pássaros e dos insetos. Fugir também do dinamismo retumbante das modas em atraso que aqui aportam, como o futurismo italiano, doze anos depois do seu aparecimento, decrépitas e tresandando a naftalina. Nada mais nocivo para a livre expansão do pensamento meramente nacional do que a importação, como novidade, dessas fórmulas exóticas, que envelhecem e murcham num abrir e fechar de olhos, nos cafés literários e nos cabarés de Paris, Roma ou Berlim. Deus nos livre desse esnobismo rastacuérico, de todos os “ismos” parasitas das ideias novas, e sobretudo das duas inimigas do verdadeiro sentimento poético – a Literatura e a Filosofia. A nova poesia não será nem pintura, nem escultura, nem romance. Simplesmente poesia com P grande, brotando do solo natal, inconsciente. Como uma planta.
O manifesto que Oswald de Andrade publica encontrará nos que leem (essa ínfima minoria) escárnio, indignação e mais que tudo – incompreensão. Nada mais natural e mais razoável: está certo. O grupo que se opõe a qualquer ideia nova, a qualquer mudança no ramerrão das opiniões correntes é sempre o mesmo: é o que vaiou oHernani de Victor Hugo, o que condenou nos tribunais Flaubert e Baudelaire, é o que pateou Wagner, escarneceu de Mallarmé e injuriou Rimbaud. Foi esse espírito retrógrado que fechou o Salon oficial aos quadros de Cézanne, para o qual Millerand pede hoje as honras do Panthéon; foi inspirado por ele que se recusou uma praça de Paris para o Balzac de Rodin. É o grupo dos novos-ricos da Arte, dos empregados públicos da literatura, Acadêmicos de fardão, Gênios das províncias, Poetas do “Diário Oficial”. Esses defendem as suas posições, pertencem à maçonaria da Camaradagem, mais fechada que a da política; agarram-se às tábuas desconjuntadas das suas reputações: são os bonzos dos templos consagrados, os santos das capelinhas literárias. Outros, são a massa gregária dos que não compreendem, na inocência da sua curteza, ou no afastamento forçado das coisas do espírito. Destes falava Rémy de Gourmont quando se referia a “ceux qui ne comprennent pas”. Deixemo-los em paz, no seu contentamento obtuso de pedra bruta, ou de muro de taipa, inabalável e empoeirado.
Para o glu-glu desses perus de roda, só há duas respostas: ou a alegre combatividade dos moços, a verve dos entusiasmos triunfantes, ou para o ceticismo e o aquoibonismo dos já descrentes e cansados, o refúgio de que falava o mesmo Gourmont, no Silêncio das Torres (das Torres de marfim, como se dizia).
Maio, 1924.

Sunday, 22 June 2014

A Semana de 22, por Oswald de Andrade

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A Semana de 22, por Oswald de Andrade

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Os protagonistas da Semana encontram-se no Hotel Therminus, em S.Paulo. Oswald é o primeiro, sentado no chão
Os rotagonistas da Semana encontram-se no Hotel Therminus, S.Paulo. Oswald é o primeiro, sentado no chão
Num texto de 1954, a construção do movimento modernista, o papel de seus protagonistas, a interminável vaia que elite paulista lhes dirigiu… 
Por Oswald de Andrade
O modernismo” de Oswald de Andrade, publicado em 1954, na revista Anhembii, conta o surgimento e a consolidação das idéias da Semana de Arte Moderna.
O artigo apresenta uma visão sem grandes parcialismos, embora recheada de opiniões contundentes, por vezes agressivas, tão comuns no escritor: “Ninguém imagina o esforço feito para liquidar em mim essa primeira timidez. Quando dela saí, saí por explosão.” Embora isso possa parecer paradoxal, exprime com precisão a própria personalidade do escritor paulista, tão complexa, quanto contraditória, conforme escreve lindamenteAntonio Candido sobre ele.
Há elementos importantes no artigo, como chama a atenção Maria Eugenia Boaventura, em seu ensaio “Do órfico e mais cogitações”. Nesse sentido, vale registrar “o papel desempenhado por cada uma das figuras modernistas mais representativasii”, como foi o caso de Graça Aranha, Paulo Prado, Mário de Andrade, além da precisão com que o escritor nomeia os financiadores da festa.
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A autora assinala ainda uma contradição curiosa nesse artigo, ao deixar claro que Oswald de Andrade pressupõe a “existência de uma unidade política no movimento mesmo depois do surgimento da devastadora Antropofagiaiii”.Ora, parece que o escritor se esquecera da grande dissidência ocorrida na segunda fase da Revista de Antropofagia, justamente em função na “condução política do movimentoiv”.
Por último, e esse é um palpite nosso, o artigo nos ajuda a estabelecer um diálogo com um outro texto, “O movimento modernista”, de Mário de Andrade, publicado pelo Outras Palavras, em duas parte: [aqui] e [aqui]. (Theotonio de Paiva, editor da seção especial “Oswald60”)
[Na próxima semana:“Quereis saber com certeza como é que se produziu a Semana de Arte de 22? Vou dizer:” (Oswald de Andrade)]

O Modernismo

Na garçonnière da Praça da República1, começou o Modernismo. Arrastei para lá Mário de Andrade. Ali estiveram Di Cavalcanti, Menotti del Picchia, Ribeiro Couto e até uma vez o futuro acadêmico Gustavo Barroso.
Como qualquer movimento literário, esse se processou no início sem esquema, sem passaporte e sem justa definição. Tratava-se apenas de oposição e de revolta que, refletindo as agitações da Europa, se erguia sobre o marasmo das letras e das artes nacionais.
Mário de Andrade era um show. Sua alta estatura, sua mulatice risonha exprimindo-se numa dentadura faustosa, sua voz cálida e cantarolada, seu amor pela música e pelo folclore e sua cultura incipiente esplendendo no deserto letrado de Piratininga, tudo fazia com que em torno dele se congregassem amigos e medrassem devotações. A confusão reinava. Ninguém sabia ao certo o que era ser moderno. Este conceito vinha se propondo através das mutações do século. Mas nossas forças, abafadas pelo servilismo colonial, procuravam dele se libertar.
No livro excelente e fartamente documentado que Mário da Silva Brito está publicando sobre o Modernismo2, fica patente que a renovação se anunciava de há tempos atrás. Eu mesmo dera, pelos jornais e revistas onde colaborava, sinais da inquietação que tomava conta de nossa época.
A literatura e as artes eram o que havia de frustrado e cadavérico. Um longo reinado içara sem contestação, ao topo das gloríolas, a dupla Bilac-Coelho Neto. Lembro-me de que, quando ainda meninote, viajara com meus pais para a Caxambu, aí fui encontrar nas moçoilas locais um apaixonado êxtase pelos versos de Bilac. Havia uma certa Corruxa que recitava pasma a versalhada bem medida e lânguida do poeta. Não se conhecia outra coisa.
No Rio, a Academia Brasileira de Letras, que com o reinado de Machado de Assis alcançara seu apogeu, agora tinha decaído lamentavelmente. A eleição de Amadeu Amaral, para que contribuí, ainda procurou levantar suas forças. Mas o critério de fechar a porta aos novos e só admitir lá dentro os expoentes esclerosavas a instituição.
Quem eram os novos? Apareceu Gustavo Barroso com seus contos regionais, e melhor que ele, uma figura centralizou as atenções. Foi Monteiro Lobato. João do Rio fizera sua aparição fulgurante. Lobato teve a imensa “chance” de ser lançado pela mais alta voz do país, a de Rui Barbosa. E tinha O Estado de S. Paulo para a divulgação de sua literatura.
Foi em Lobato que a renovação teve de fato o seu impulso básico. Ele apresentava, enfim, uma prosa nova. Sua curiosidade como sua cultura, ambas limitadas, não lhe permitiam ir além do seu esforço pessoal. Talvez tivesse receito de se encantar no movimento modernista. Isso trazia, sem dúvida, responsabilidades culturais. Era para homens que haviam sofrido Paris na pele como eu, Di Cavalcanti e Sérgio Milliet. Era para um audacioso original como Mário de Andrade, que arrastava pela sua sedução pessoal inúmeros seguidores. Lobato sofreu sem dúvida a timidez de suas origens provincianas, apesar das leituras que teve, o que demonstra A Barca de Gleyre3Mas seu terrível orgulho não o deixou fazer fila com gente desconhecida que se aventurava numa empresa temerária e incerta. Ele trazia em si o “Mal de Taubaté”. Nascera para ser promotor de Justiça, advogado ou fazendeiro. Mas, desastrado nos negócios como todo homem votado à literatura, viu logo grandes dificuldades em seu caminho. Foi então que, na utilização de sua poderosa imaginativa que o fez o precursor entre nós, tanto da literatura infantil como dos problemas do petróleo e do ferro, ele se lembrou de fazer uma editora. Ligara-se àRevista do Brasil, centralizava largo círculo de escritores, tinha fãs por toda parte. Mas o comércio não lhe sorriu. A Editora Monteiro Lobato faliu quase arrastando em sua queda o autor de Urupês. Quem o herdou foi um sabido que batia à máquina no escritório, pequeno empregado que se tornou o grande editor Octales Ferreira. Lobato não foi tocado na sua literatura pelo desastre. Ao contrário, seu nome subiu por todo o Brasil.
O Modernismo medrou ao seu lado. Já em 1915, pela revista O Pirralho, que eu fundara muitos anos atrás eu havia publicado um artigo reclamando uma pintura nacional contra as cópias litográficas que abafavam toda nossa intervenção. É verdade que meu artigo trazia um endereço errado. Minhas esperanças se fixavam no pintor Wasth Rodrigues. Não havia outro no momento.
Posso afirmar e já afirmo que sem a presença catalítica de Mário de Andrade o Modernismo teria sido, pelo menos, retardado. Expliquei em minhas Memórias a minha formação tímida, incapaz de afrontar mesmo qualquer situação normal. Na Escola Modelo Caetano de Campos, com sete anos de idade, incumbiram-me de recitar para a professora uma versalhada, feita por um poetastro do nordeste que se hospedara em casa de minha tia Carlota. Eu fiz um escândalo. Chorei, berrei e não me exibi em público. O que me importava era minha casa e minha mãe. Fora dessa dupla tutela me sentia um inútil. Ninguém imagina o esforço feito para liquidar em mim essa primeira timidez. Quando dela saí, saí por explosão. E isso explica muito de minhas atitudes agressivas e insólitas. Era o meio de me recuperar.
Minha longa amizade com Guilherme de Almeida o coloco ao meu lado no movimento modernista. Com ele veio gente do Rio, Ronald de Carvalho, Ribeiro Couto, este trazido por Di Cavalcanti. O movimento engrossava. Mas sem a publicação de Pauliceia Desvairada, o grande livro de versos de Mário, nada se teria precisado.
Mesmo antes da publicação de Pauliceia, eu abri o escândalo, lancei pelas colunas doJornal do Comércio, edição de São Paulo, um artigo sobre o inédito Mário de Andrade. Esse artigo intitulava-se “O Meu Poeta Futurista”. Era a palavra da época. O “futurismo” se desitalianizara. Em Portugal, por exemplo, Fernando Pessoa lançava nesse momento o seu “Ultimatum Futurista”.
A princípio, aceitou-se sem hesitação o epíteto “futurista”. Depois, começaram os escrúpulos partidos, sobretudo, de Mário de Andrade. Ele, nacional e nacionalista como era, não se sentia à vontade dentro do rótulo estrangeirante. Assim, pouco a pouco, foi encontrada a palavra “modernista”, que todo mundo adotou.
Nunca será demais exaltar uma figura central do movimento modernista. Foi Paulo Prado. A sua modéstia de fidalgo, a sua dupla personalidade de escritor e comerciante, o fato de ter aparecido tarde em nossas letras e mais possíveis complexos fizeram com que Paulo Prado nunca desejasse o primeiro plano. Ele colocava em sua frente Graça Aranha, geralmente confuso e parlapatão, filho duma abominável formação filosofante do século XIX, mas grande homem nacional, pertencente à nossa Academia de Letras, e autor de um livro tabu, Canaã, que ninguém havia lido e todos admiravam.
Era evidente que para nós sobretudo o apoio oficial de Graça Aranha representava um presente do céu. Com seu endosso, seríamos tomados a sério. Do contrário, era difícil.
Sem a inteligência e a compreensão de Paulo Prado, nada teria sido possível. Ele foi o ativo agente de ligação entre o grupo que se formara e o medalhão Graça Aranha.
Paulo Prado abriu-nos sua casa em Higienópolis. Recebia magnificamente. Os seus almoços dos domingos eram faustosos. Além de se comer e beber dentro duma grande tradição civilizada, ali se debatiam os problemas candentes da transformação das letras e das artes.
Pode-se dizer que, depois da pobreza de minha garçonnière na Praça da República, foi a casa de Paulo Prado o centro ativo onde se elaborou o Modernismo.
Acredito que foi Di Cavalcanti que teve a ideia de realização de uma Semana de Arte Moderna. Num paradoxo, muito peculiar a São Paulo, quem prestigiou a Semana revolucionária foi um grupo conservador. Dele faziam parte Samuel Ribeiro e René Thiollier4. Conseguiram eles para nós, de graça, o Teatro Municipal, o primeiro da cidade.
Os elementos do Rio tinham entrado em contato conosco através de Di Cavalcanti. Ele nos tinha revelado um músico estranho que tocava piano num bar e compunha coisas espantosas. Chamava-se Heitor Villa-Lobos.
A esse tempo eu, muito ligado a Menotti del Picchia, que era redator-chefe do Correio Paulistano, fazia com ele grandes descobertas. Tínhamos desencavado, num atelier, do Palácio das Indústrias, um escultor que nos pareceu tímido e pessimista, querendo mudar-se para a República Argentina, pois não encontrava aqui nem repercussão nem mercado para as suas obras. Esse homem, chamado Victor Brecheret, que deve sobretudo a mim a sua carreira e a sua ascensão, tornou-se, depois de milionário, o mais sórdido avarento da história do Brasil. Sem deixar, no entanto, a sua ascensão de artista. O que significa que nada tem a ética com a inspiração e a maestria da fortuna. Dizem, aliás, que Celini foi um miserável assassino. Está certo!
Menotti e eu nos tomamos de paixão pelo escultor e sua obra. O Correio Paulistano, órgão oficial do governo, ficou em matéria de arte e literatura uma pura subversão. Aí, com o pseudônimo Hélios, Menotti desancava o passadismo. Tendo mesmo tido um pega físico na rua com o matusalém da literatura, Aristeo Seixas5.
Desse modo, por toda parte alentava-se o movimento que eclodiu no movimento de 22. Esse foi o instante útil. Festejava-se o centenário da nossa independência política. Exposições e festas por toda parte. Brecheret exibia com escândalo as suas novidades que não passavam, no entanto, de arrojos copiados do balcônico Mestrovick6.
Marcou-se a Semana para o começo do ano. Teve ela início no Teatro Municipal a 13 de fevereiro. Sala cheia, galerias repletas. Graça Aranha, com seu prestígio, fez o discurso de abertura7, um bom discurso que se acha publicado no O Estado de S. Paulo da época. Não houve nenhuma manifestação hostil. Mas nos dias subsequentes produziu-se a estralada.
Nos corredores do Municipal, achavam-se pendurados quadros modernistas, particularmente de Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Rego Monteiro, Nina Aira, Moya8.
Anita Malfatti celebrizara-se por um episódio ocorrido antes, em 1917. Tinha ela, de regresso de seus estudos nos Estados Unidos, onde sofrera o contato da pintura moderna, exposto seus trabalhos num salão da Rua Líbero Badaró. São Paulo, com seu espírito de acampamento, sem tradição nem lei, aceitou aquilo como aceitava os ocasos inflamados do pintor Bassion ou as mediocridades floridas de Paulo Rossi9. Todo mundo ia, gostava, deixava o nome no livro. Acontece, porém, que um dia surge num jornal uma diatribe terrível assinada por Monteiro Lobato, cuja autoridade crescia nas letras nacionais. O título do artigo era simplesmente este: “Cinismo ou Paranóia”10. Lobato xingava de todos os nomes a pintura de Anita.
Essa posição de Lobato em face da arte moderna, ele a conservou até a morte. Foi a posição de um inculto rebelde. Aliás, numa curiosa confissão, ele contou com muita verve como tinha querido ser pintor e fracassado desde a primeira experiência, quando confundiu óleo com aquarela. Ficou, sem dúvida, o complexo, e ele, não tendo nem o instinto nem a cultura necessários à compreensão das transformações plásticas do mundo, arrepiou-se logo com o que lhe feria a embotada sensibilidade provinciana.
Anita, menina nesse momento, sofreu um grande choque. Houve compradores que devolveram os seus quadros. E ficou no ar a onda de hostilidade que depois continuou a persegui-la. Pelas colunas do Jornal do Comércio11eu tentei defendê-la, mas fi-lo timidamente, pois não tinha autoridade para enfrentar Lobato e sua grei. Meu artigo era assinado pelas iniciais O.A.
A Semana, como disse, realizou-se com grande alarido, particularmente a sessão em que foram apresentados ao público os novos poetas e escritores. A ausência de qualquer padrinho nos atirou às feras. No palco, nos alinhamos Menotti del Picchia, eu, Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Ronald de Carvalho, o poeta suíço Henri Mugnier e Agenor Barbosa.
A tela subiu e vi que o teatro estava repleto. Menotti, de pé, iniciou a apresentação dos novos escritores, aproveitando o primeiro silêncio. Ouviram-no atenciosamente até o fim, Aí, disse ele, apontando-me, que, para dar um exemplo do que era a prosa nova, ia eu ler um trecho de romance inédito.
Eu levara comigo umas laudas contendo uma página evocativa d’Os Condenados12que nada tinha de excessivamente moderno ou revolucionário. Mas a pouca gente interessava o que eu ia ler e apresentar. O que me interessava era patear. Apenas Menotti se sentou e eu me levantei e o teatro estrugiu numa vaia irracional e infrene. Antes mesmo d’eu pronunciar uma só palavra. Esperei de pé, calmo, sorrindo como pude, que o barulho serenasse. Depois de alguns minutos, isso se deu. Abri a boca então. Ia começar a ler, mas nova pateada se elevou, imensa, proibitiva. Nova e calma espera, novo apaziguamento. Então, pude começar. Devia ter lido baixo e comovido. O que me interessava era representar meu papel, acabar depressa, sair, se possível. No fim, quando me sentei e me sucedeu Mário de Andrade, a vaia estrondou de novo. Mário, com aquela santidade que às vezes o marcava, gritou: “Assim não recito mais”. Houve grossas risadas.
O mais gozado de todos foi o estrangeiro Henri Mugnier, que se exprimiu em francês, meio estonteado, sem compreender e aceitou o que se passava. Ronald de Carvalho, teso, pequenino, reagiu. Gritou para os vaiadores que ladravam e soltavam das galerias bexigas sonoras: “Homenzinho do cachorro! Homenzinho do balão! São versos de Manuel Bandeira! São versos de Ribeiro Couto!”
Os concertos de Villa-Lobos tiveram a mesma acolhida terrível. A música nova parecia estapafúrdia àquela gente educada nas doçuras lânguidas de Puccini e de Verdi. O possante sopro do nosso maior compositor foi completamente desencorajado nas noitadas do Municipal. O barulho era tamanho que Armando Leal Pamplona13 decidiu subir ao galinheiro e me convidou para segui-lo. Lá, gritou: “Quem é que está vaiando assim?” Um sujeito pôs-se de pé e gritou violentamente, batendo no peito: “Eu! Eu!” Retiramo-nos. Eu ria. Ronald, que era grande jornalista, certa tarde interpelou-me à saída do Municipal: “Seu Oswald, vieram me dizer que foi você quem organizou essas vaias!” “Eu? Como?” “É, isso é muito desagradável, principalmente para mim que fui premiado pela Academia Brasileira de Letras!”
Como se vê, todos os movimentos se processam da mesma maneira, confusos, heteróclitos, desiguais. O que importa é o impulso e a meta. Essas foram atingidas pelo movimento de 22.
Se procurarmos a explicação do porquê o fenômeno modernista se processou em São Paulo e não em qualquer outra parte do Brasil, veremos que ele foi uma consequência da nossa mentalidade industrial. São Paulo era de há muito batido por todos os ventos da cultura. Não só a economia cafeeira promovia os recursos, mas a indústria, com sua ansiedade do novo, sua estimulação do progresso, fazia com que a competição invadisse todos os campos de atividade. Desde ginasiano eu me habituara a frequentar uma grande livraria da Rua 15 de Novembro, a Casa Garraux, onde o editor José Olympio iniciou a sua carreira. Aí se encontravam todas as novidades da Europa. Editoras, livros e revistas sempre foram preocupações paulistas. Assim, um conjunto feliz de circunstâncias, entre as quais a presença entre nós de dois bons padrinhos, Graça Aranha e Paulo Prado, fez eclodir a Semana no ano em que se comemorava o primeiro centenário da independência nacional.

Texto publicado na revista Anhembi,São Paulo, nº 49, 1954.
i#A Revista Anhembi foi criada em 1950 e dirigida, desde o início, por seu principal mentor, Paulo Duarte (1899-1984), jurista, arqueólogo, jornalista e escritor paulista, ligado a Julio de Mesquita Filho e ao grupo do jornal “O Estado de S. Paulo”. O projeto editorial circulou até 1962, como parte do projeto intelectual e pessoal de seu editor. Com claros vernizes elitistas, a publicação, no entanto, tratava de assuntos os mais variados, das ciências às artes.
ii# Boaventura, Maria Eugenia. “Do órfico e mais cogitações”. In: Andrade, Oswald.Estética e política. São Paulo: Globo, 1992, p. 10.
iii# Idem, p. 10.
iv# Idem ibidem, p. 10.
1#Oswald teve, a partir de 1920 até 1922, um estúdio na Rua Pedro Américo, esquina com Praça da República
2#História do Modernismo Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1958.
3#A Barca de Gleyre: Quarenta Anos de Correspondência Literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel, São Paulo, Nacional, 1944.
4#Samuel Ribeiro (1882-1952), engenheiro, presidente da Caixa Econômica Federal em São Paulo. René Thiollier (1884-1968), jornalista e escritor, membro da Academia Paulista de Letras.
5#Aristeo Seixas (1881-1965), empresário e escritor.
6#Ivan Mestrovick (1883-1962), escultor iugoslavo, produziu esculturas baseadas em temas nacionalistas e religiosos.
8#Antônio Garcia Moya (1891-1949), arquiteto e artista plástico, participante também da Semana de 22.
9#Paulo Cláudio Rossi Osir (1890-1959), pintor, desenhista e arquiteto, integrou a Família Artística Paulista.
10#O artigo de Monteiro Lobato “A Propósito da Exposição Malfatti” foi publicado em O Estado de S.Paulo de 20 de dezembro de 1917. Pode ser lido emhttp://outraspalavras.net/brasil/paranoia-ou-mistificacao/.
11#O artigo de Oswald “Anita Malfatti” saiu no Jornal do Comércio de 11 de janeiro, de 1918. Pode ser lido em http://outraspalavras.net/oswald60/a-exposicao-anita-malfatti/.
12#Os Condenados foi lançado pela Editora Monteiro Lobato, com capa de Anita Malfatti, em 1922. Outras Palavras está publicando-o, em capítulos, aqui:http://outraspalavras.net/category/os-condenados/
13#Armando Leal Pamplona, modernista de primeira hora, pioneiro do documentário cinematográfico brasileiro.