Tuesday, 23 February 2016

Corte na carne negra: Política de titulação de territórios quilombolas tem encolhimento orçamentário de 80% em 2016

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Corte na carne negra: Política de titulação de territórios quilombolas tem encolhimento orçamentário de 80% em 2016

Por Fernando G. V. Prioste, assessor jurídico da Terra de Direitos
A destinação de verbas federais para a titulação de territórios quilombolas em 2016 sofreu corte de 80%, se comparada com a destinação de 2015. Assim, passados 484 anos do início da escravidão negra no Brasil, outros 128 anos da sua abolição formal e inconclusa e, ainda, outros 28 anos da promulgação da Constituição Federal que finalmente reconheceu às comunidades quilombolas direitos às suas terras tradicionais, para o ano de 2016 estão destinados para titulação de territórios quilombolas apenas 5 milhões de reais, em contraposição aos 25 milhões destinados ano passado. Mais uma vez é a população negra que sofre no momento de arrocho econômico do Estado: o corte orçamentário mais profundo é na carne negra.
A destinação orçamentária para a política quilombola nunca esteve à altura das necessidades da política federal, ainda que em alguns momentos históricos tenha apresentado pequenos avanços. O quadro abaixo apresenta a evolução da destinação orçamentária da política de titulação de territórios quilombolas desde sua criação.
01 - Provisão orçamentária do INCRA para titulação de territórios quilombolas em milhões de reais
Fonte: Lei Orçamentária Anual
Como se vê, a destinação orçamentária iniciou com 5 milhões em 2009, pouco recurso frente à demanda nacional. Cresceu até chegar ao patamar de 51 milhões em 2012, quando então iniciou uma queda vertiginosa até este ano de 2016, com um orçamento de 5 milhões de reais. Qual a justificativa política para esse rebaixamento inaceitável da destinação de recursos para desapropriação de áreas quilombolas?
Realizando uma avaliação da eficiência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) quanto ao trabalho realizado, isto tendo em referência o recurso a este órgão destinado para a titulação dos territórios quilombolas de 2009 a 2015, observa-se que, conforme o quadro abaixo, apenas nos anos de 2012 e 2015 a execução orçamentária esteve aquém do quanto disponível para desapropriações, quando foram executados, respectivamente, 92% e 57% da verba disponível.
02 - relação provis incra empenho
Fonte: Lei Orçamentária Anual
Logo, a diminuição do valor disponível para desapropriação de terras em favor das comunidades quilombolas não tem como fundamento a baixa execução orçamentária do INCRA. Isto, apesar do crescente sucateamento da autarquia agrária, que conta a cada ano com menos servidores, com menores recursos para atividades meio e pouco apoio político do alto escalão do Governo Federal. Os motivos da não priorização da ação quilombola são políticos e estruturais, e seus reflexos são sentido diretamente pelos quilombolas que têm seus direitos violados.
Assim, apesar de desde 1988 a Constituição Federal garantir às comunidades quilombolas o direito fundamental de acesso aos seus territórios tradicionais, o Governo Federal emitiu apenas 30 títulos em favor das comunidades, sendo que muitas dessas titulações são parciais, não abrangendo a totalidade das áreas das comunidades. Abaixo segue um quadro que evidencia o ritmo das titulações de territórios quilombolas ao longo do tempo, analisando-se o desenvolvimento a partir das principais fases dos processos de titulação.
03 - fases dos processos de titulação
Fonte: Instituto Nacional  de Colonização e Reforma Agrária
Pelo quadro se observa que houve algum crescimento da política de titulação até o ano de 2009, havendo uma acentuada queda a partir de 2010, com uma pequena recuperação em 2014 e nova desaceleração em 2015. Se o atual ritmo de titulações permanecesse estável, e fossemos levar em conta que as titulações dos territórios quilombolas iniciaram apenas no ano de 2004, logo após à edição do Decreto Federal 4887/03, tendo ainda como referência que hoje oficialmente existem 2.648 comunidades quilombolas reconhecidas pelo Estado, seriam necessários mais de 970 anos para que o Estado brasileiro cumprisse com a determinação constitucional de titular todos os territórios quilombolas. A simples evidência de que o Estado brasileiro poderia levar quase mil anos para titular todos os territórios quilombola no Brasil é gravíssima prova do profundo racismo institucional que persiste em nossa sociedade.
04 infográfico 1
Relevante destacar que atualmente existem 36 territórios quilombolas em fase final de avaliação para desapropriação pelo INCRA, situação que levaria a desapropriar cerca de 800 imóveis em favor de comunidades quilombolas. A estimativa do INCRA para o pagamento das indenizações dessas desapropriações é de R$ 425 milhões. Assim, com um orçamento de apenas 5 milhões de reais, que corresponde a apenas 1,17% da demanda já existente para desapropriações, são os quilombolas que pagarão, muitos com a vida, pela falta de priorização política do Governo Federal.
Essa dinâmica de desaceleração da já insuficiente ação do Estado para titular os territórios das comunidades quilombolas impõe o estabelecimento de um Plano Nacional de Titulação dos Territórios Quilombolas. Isto, pois atualmente o Estado não tem metas claras para a titulação de territórios, muito menos um plano estratégico para que se monitore a execução da política. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, LXXVIII, reconheceu a duração razoável do processo como direito fundamental. Sabendo que a política pública de titulação dos territórios quilombolas se dá através de processos administrativos, é possível afirmar que o Estado brasileiro viola frontalmente a Constituição também nesse quesito. A adoção de um plano estratégico nacional para as titulações dos territórios com metas, indicadores e prazos de execução é juridicamente impositiva, politicamente necessária e moralmente indispensável.
Ademais, à restrição orçamentária que praticamente inviabiliza o trabalho do INCRA neste ano de 2016, somam-se outras ameaças aos direitos das comunidades quilombolas. Neste ano de 2016 a PEC 215 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239 serão, novamente, foco de atenção e mobilização das organizações quilombolas, pois podem desconstituir, ou mesmo restringir, a base jurídica que sustenta a titulação dos territórios das comunidades quilombolas. Assim, a falta de priorização política do Governo Federal, somada à grande ofensiva ruralista no Judiciário e no Legislativo, compõe o cenário desalentador para a política de titulação de territórios quilombolas neste ano de 2016.
04 infográfico 2
Logo, a dura restrição orçamentária da política pública de titulação dos territórios quilombolas não é fruto do acaso. No momento de arrocho financeiro do Estado os cortes são mais profundos onde não há prioridade política. Esse é o principal fundamento que relegou a política de titulação de territórios à total inoperância neste ano de 2016, dado seu orçamento pífio. O projeto político de país do Governo Federal não tem como prioridade resolver o histórico problema de excessiva concentração fundiária no Brasil, muito menos viabilizar condições reais para a reprodução física, social, econômica e cultural das comunidades quilombolas. Assim, apesar da existência de diversas políticas e programas federais para a população negra, a falta de recursos impede o avanço real na efetivação de direitos para a construção da dignidade social do povo negro.
A prioridade do Governo Federal é alavancar um processo neoextrativista baseado na exportação de commodities agrícolas e minerais que supostamente equilibram a balança comercial brasileira. Nesse contexto ainda estão mega projetos hidrelétricos, ferroviários, hidroviários e portuários, entre outros, que se destinam a viabilizar a expansão de uma cultura econômica reprimarizada e subalternizada na geopolítica mundial. Na escala social e econômica mundial cabe ao Brasil o papel de fornecedor de matéria prima barata para os países desenvolvidos, sendo que os capitais nacional e internacional são os principais responsáveis por empurrar o Estado brasileiro para essa degradante posição na estrutura produtiva mundial.
O setor agropecuário ligado ao grande capital já tem disponível neste momento R$ 10 bilhões em financiamento de pré-custeio para a safra 2016/2017. Ou seja, o Governo Federal antecipou 10 bilhões de reais para financiamento da produção de commodities agrícolas do plano safra que só deve ser anunciado em julho deste ano. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a antecipação desse recurso tem o  objetivo de “estabilizar a economia e recuperar o crescimento e o emprego”.
Ou seja, a política quilombola de acesso à terra não é vista, nem de longe, como ação social e política de combate às desigualdades sociais estruturais. Ao mesmo tempo, no final do ano de 2015, no auge da austeridade fiscal seletiva do Governo Federal, foram disponibilizados R$ 1,5 bilhão apenas financiar o plantio de 400 mil hectares de cana-de-açúcar. Ainda hoje, a mesma indústria açucareira que utilizou por quase quatro séculos a mão de obra escrava de negros e negras tem financiamento e apoio político absolutamente desproporcional quando comparada com as demandas quilombolas. A escravidão ainda não acabou.
Para Isabela da Cruz, jovem liderança da comunidade quilombola Paiol de Telha, “o corte no orçamento do INCRA vai afetar diretamente o andamento dos processos de titulação que já estão em fase final de desapropriação. Com isso, apesar da luta quilombola e do fortalecimento do movimento social, a presente geração do povo quilombola pode não viver para ver o resultado”. No ano de 2015 faleceu a liderança quilombola Domingos Gonçalvez dos Santos, aos 86 anos. Após lutar por mais de quarenta anos pela titulação de seu território e ver, em outubro de 2014, o INCRA assinar a portaria de reconhecimento das terras da comunidade Paiol de Telha, não viveu para ver a titulação do território, que até hoje não se efetivou.
Esse não é o primeiro grande desafio que os povos e comunidades quilombolas enfrentam, pois são mais de quinhentos anos de lutas, vitórias e derrotas contra o colonialismo racista que oprime o povo negro nas Américas. Os capitais nacionais e internacionais turbinam e determinam a priorização política estatal relativa às atividades neoextrativistas, como se este fosse um suposto modelo de desenvolvimento para a nação. Nesse contexto, o achatamento do orçamento quilombola é sintoma de uma política que deve ter como foco de luta popular a superação do atual modelo macroeconômico capitalista, que subordina os interesses do povo e do Estado brasileiro aos interesses do capital. Que Xangô nos guie nessa luta!
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