A história não pode ser apagada ou reescrita. Lembrar que houve ditadura valoriza as conquistas de hoje
O
regime militar merece ser recordado, mas não pelos motivos errados.
Reconhecer o passado enaltece conquistas sociais, como o próprio combate
à corrupção
A história de um país não pode ser apagada, sequer reescrita: é inegável que o Brasil experimentou longo período de restrição de direitos fundamentais e de repressão violenta e sistemática
à dissidência política e aos movimentos sociais. Esse período merece
ser recordado, mas não pelos motivos errados e, sim, como forma de
valorização das conquistas sociais, especialmente aquelas consagradas
pela Constituição Federal de 1988.
Foi a denominada “Constituição Cidadã”
que consagrou um conjunto de garantias, direitos fundamentais e
princípios que a sociedade hoje sequer imagina viver sem, como a
dignidade da pessoa humana, a liberdade de expressão, de imprensa e de
associação, o pluralismo político, a cidadania e a separação entre os
três poderes da República.
O estado democrático de direito instituído em 1988 e gradualmente
fortalecido ao longo de mais de 30 anos, aliado a diversos outros
fatores de ordem social, proporcionou um amadurecimento institucional
que possibilitou o desenvolvimento de um trabalho harmônico de um
conjunto de instituições de fiscalização e controle no combate à corrupção.
Como reflexo dessas atividades, a corrupção chegou a ser considerada a
principal preocupação dos brasileiros, sendo reputada como maior
problema nacional, em pesquisa divulgada em 2017, pelo Latinobarômetro.
O aumento da percepção da corrupção no Brasil nos últimos anos,
período de intensas atividades realizadas pelos órgãos de persecução
criminal, foi demonstrado também pela Transparência Internacional e
revela claramente que, não por obra do acaso, o avanço do combate à
corrupção somente foi possível graças à existência de um ambiente
democrático, com respeito às liberdades individuais, com instituições
funcionando de forma legítima e regular e com uma imprensa livre para
investigar e noticiar à sociedade os fatos apurados.
Ao lado disso, a independência do Ministério Público e do Poder Judiciário,
garantida não apenas formalmente, mas em fatos concretos, como a
escolha do procurador-geral a partir de lista tríplice elaborada pelo
próprio Ministério Público e a autonomia orçamentária do órgão, bem como
a independência de atuação limitada apenas pela Constituição e pelas
leis, constituíram parte do conjunto democrático que impulsionou o
combate à corrupção no Brasil.
Esse desenvolvimento progressivo do combate à corrupção foi
viabilizado, ainda, por diversas criações e alterações legislativas
supervenientes à Constituição Federal de 1988, como a Lei de Improbidade
Administrativa (1992), a Lei de Acesso à Informação
(2011), a Lei das Organizações Criminosas (2013), a Lei Anticorrupção
(2013) e a alteração da Lei de Lavagem de Dinheiro em 2012, demonstrando
a relevância da atuação de todos os três poderes da República, com
respeito aos princípios constitucionais da separação e da independência
entre eles, e a delimitação do sistema de freios e contrapesos, também
para a luta contra a corrupção e impunidade.
A verdade é que o trabalho de combate à corrupção, longe de se
encerrar com o processo e julgamento dos responsáveis pelos crimes de
corrupção, reflete direta e indiretamente na construção de um país
melhor, mais justo e igualitário, onde a lei tenha a mesma validade para
todos e prevaleça o respeito às instituições democraticamente
constituídas, às garantias e liberdades constitucionalmente asseguradas e
ao pluralismo de ideias.
Jerusa Burmann Viecili é procuradora da República e integrante da Força-Tarefa da Operação Lava Jato, em Curitiba.
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