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Covid, a última herança do Colonialismo
Desde século XVI, impérios europeus produziram mudança antropológica abrupta. Capital converteu a agricultura, antes integrada aos ecossistemas, em commodities cultivadas nas colônias. Daí vieram o latifúndio, o agronegócio e… as pandemias!
Publicado 26/03/2021 às 19:33 - Atualizado 26/03/2021 às 19:59
Por Rob Wallace, no New Internationalist |Tradução: Simone Paz | Imagem: Federico Boyd Sulapas Dominguez
O SARS-CoV-2, o coronavírus por trás da Covid-19, avança. Infecta centenas de milhares de pessoas por dia no mundo inteiro. Em países que não souberam lidar corretamente com o surto — entre eles, os EUA, a Grã-Bretanha e o Brasil — a retórica do governo muitas vezes sugeriu, no início e antes da vacina, deixar o coronavírus “seguir seu curso”. Com pouco apoio científico, políticos como Donald Trump declararam que uma imunidade de rebanho mítica — deixando milhões de mortos em seu rastro — nos salvaria.
O agronegócio também proclama que a indústria que ajudou a desencadear muitos dos surtos letais do século é precisamente o caminho a seguir. Grandes empresas e cartéis dizem que biossegurança, tecnologia e economias de escala — quanto maior, melhor — são a única maneira de nos protegermos de outra pandemia. Sem levar em consideração que a produção do agronegócio (e a grilagem de terras realizada em seu nome) são, comprovadamente, responsáveis pelo surgimento de vários patógenos nas últimas duas décadas.
Como chegamos a nesse momento da história, em que as próprias causas da crise em curso são repetidamente apresentadas como sua solução?
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A agricultura moderna emergiu de mãos dadas com o capitalismo, com o comércio global de escravos e a ciência. Os países europeus empregaram os primeiros cientistas imperiais para decodificar as novas paisagens e povos que seus navios encontravam nas viagens de conquista. A ciência imperial também ajudou a recodificar essas terras e povos para a acumulação de capital.
Da Europa e África, os estágios posteriores do capitalismo expandiram-se pelas Américas, pelo Cáucaso e os trópicos, transformando em commodities de exportação aquelas paisagens alimentares que eram cultivadas localmente. De 1700 a 2017, as áreas de cultivo e pastagens em grande escala se expandiram cinco vezes, para 27 milhões de km2. A prática de industrializar a pecuária e a produção agrícola atingiu novos patamares após a Segunda Guerra Mundial.
Agora, 40% da superfície terrestre livre de gelo é dedicada à agricultura e representa o maior bioma do planeta. Muitos milhões de hectares a mais serão colocados em produção até 2050, especialmente no Sul Global, onde as poucas terras agrícolas “virgens” restantes serão separadas das últimas florestas tropicais e savanas. As aves e o gado, vivos, hoje, representam 72% da biomassa animal global, ultrapassando de longe a biomassa total da vida selvagem dos vertebrados. Animais industrializados estão começando a se espalhar pelo mundo em verdadeiras cidades de porcos e galinhas. O que antes era o Planeta Terra, virou um “Planeta Fazenda”.
Essas expansões estão interligadas por circuitos de capital e consumo. Os circuitos geram um volume crescente de comércio de animais vivos, produtos, alimentos processados e germoplasma. As áreas de monocultura em ascensão, são caracterizadas pelo declínio da diversidade de animais e plantações, à medida que as intervenções técnicas selecionam algumas variante genéticas em detrimento de todas as outras. A diversidade também é perdida à medida que as empresas se consolidam.
Essas mudanças impulsionadas pela economia, produziram profundos impactos em nossa ecologia e saúde pública.
A produção de linhagens limitadas de espécies monogástricas (de “estômago único”), principalmente porcos e aves, faz com que raças adaptadas localmente, de uma ampla variedade de animais, sejam deslocadas em países não-industriais. Tendências semelhantes são encontradas em plantações que alimentam populações humanas e em animais industriais. Com o avanço da agricultura, o habitat natural primário e as populações não humanas contraem-se a taxas recordes, destruindo nesse percurso terras indígenas e de pequenos proprietários — e seus meios de subsistência.
O desmatamento e o desenvolvimento estão aumentando a taxa — e o escopo taxonômico — de transferência de patógenos do universo selvagem para os animais criados com fins de alimentação e seus cuidadores humanos. A Covid-19 representa apenas uma de uma série de novas cepas de patógenos que surgiram ou ressurgiram repentinamente no século XXI como ameaças à humanidade. Esses surtos — gripe aviária e suína, Ebola Makona, febre Q, Zika, entre muitos outros — estão todos vinculados a mudanças na produção ou no uso da terra, em associação à agricultura intensiva, bem como à exploração madeireira e mineração.
Os patógenos surgem de maneira diferente, dependendo do local e da commodity produzida. Mas todos estão interligados na mesma teia de danos ambientais e expropriação global, o que explica a natureza intercontinental desses novos patógenos. SARS na China. MERS no Oriente Médio. Zika no Brasil. H5Nx na Europa. Gripe suína H1N1 na América do Norte.
Como a produção conduz a esses surtos? Em uma ponta, no início da cadeia de commodities de uma região, a complexa diversidade da floresta primária reprime os patógenos “selvagens”. Os potenciais hospedeiros são encontrados irregularmente. Mas a extração transnacional de madeira, a mineração e a agricultura intensiva mudam essa dinâmica. Elas simplificam drasticamente a complexidade natural. Enquanto muitos patógenos morrem junto com suas espécies hospedeiras, um subconjunto de infecções que antes se esgotava de forma relativamente rápida na floresta pode, de repente, se propagar muito mais amplamente.
O Ebola é um exemplo clássico. Desde meados da década de 1970, os surtos de normalmente atingiam uma ou duas aldeias subsaarianas antes de se extinguir. Em 2013-15, a cepa Makona emergiu ao longo de uma fronteira de monocultura de palmas de dendê, em uma paisagem cada vez mais expropriada e globalizada da África Ocidental.
Embora pouco diferenciado em sua genética ou curso clínico, em comparação com os surtos anteriores de Ebola, a cepa Makona iria infectar 35 mil pessoas, matando milhares que viviam em grandes cidades de repente, a apenas um voo de distância de todo o resto do mundo.
A seleção natural da letalidade
Outras doenças surgem na outra ponta da cadeia produtiva. Gripes aviária e suína, mortais e adaptadas aos humanos, geralmente surgem em operações intensivas localizadas perto das principais cidades do norte e do sul. De 1959 em diante, das 39 transições documentadas em gripes aviárias que passaram de baixa para muito alta letalidade, todas, exceto duas, ocorreram em operações avícolas comerciais, tipicamente de dezenas ou centenas de milhares de aves. As operações intensivas estão tão inundadas com a circulação da gripe aviária e suína que agora servem como seus próprios reservatórios para novas cepas. As populações de aves aquáticas selvagens não são mais a única fonte.
O que há nessas fazendas industriais que faz com que gerem tais infecções?
Perus industriais são criados em gaiolas com 15 mil aves. As galinhas poedeiras industriais são espremidas em galinheiros de até 250 mil aves. O cultivo de animais em monoculturas remove os aceiros imunológicos que normalmente eliminariam os surtos em populações mais diversas. Os patógenos evoluem rotineiramente em torno dos genótipos comuns e imunes do hospedeiro do gado industrial. A superlotação e a falta de higiene induzem um forte estresse nesses animais, o que pode deprimir sua resposta imunológica e torná-los mais vulneráveis à infecção. Alojar altas concentrações de gado e aves domésticas favorece as linhagens de patógenos que podem se espalhar mais rapidamente em meio a eles.
Os animais passaram a ser abatidos cada vez mais jovens. O abate de galinhas em apenas 6 semanas, e de porcos em 22 semanas, pode selecionar uma maior letalidade por patógenos, incluindo infecções que são capazes de sobreviver a sistemas imunológicos mais jovens e mais robustos. A produção do tipo “todos dentro todos fora” — uma tentativa de controlar surtos criando gado em lotes — pode acabar selecionando inadvertidamente infecções que se alinham aos tempos de vida que a indústria define para seus rebanhos. Ou seja, as linhagens bem-sucedidas desenvolvem uma duração específica, que mata animais de fazenda adultos perto do abate, quando o estoque é mais valioso.
Com a reprodução local eliminada, e transferida para inseminações externas ao rebanho — principalmente para mercados que demandam mais carne e crescimento rápido — as populações de gado também são incapazes de desenvolver resistência aos patógenos circulantes. Como os sobreviventes não se reproduzem, eles não conseguem transmitir sua resistência.
Do lado de fora dos portões da fazenda, a distância cada vez maior que os animais vivos percorrem em seu transporte expandiu a diversidade dos segmentos genéticos que os patógenos trocam, aumentando a proporção e as combinações pelas quais as doenças exploram suas possibilidades evolutivas. Quanto maior a variação em sua genética, mais rapidamente os patógenos evoluem.
Em resumo, ao industrializar a produção de carne, o agronegócio mundial também industrializa os patógenos que circulam entre rebanhos e aves.
As origens da Covid-19 são uma espécie de mistura dessas duas pontas de nossos circuitos de produção, a floresta e a fazenda industrial.
Os coronavírus são hospedados por morcegos em todo o planeta. Mas a cepa hospedada pelos morcegos na China parece atingir ainda mais os humanos, quando salta com sucesso entre espécies. O ambiente em que vivem esses morcegos também mudou fundamentalmente.
Com a liberalização econômica pós-Mao, a China avançou na rota de desenvolvimento dos BRICS, com a intenção de alimentar seu povo com seus próprios recursos naturais. Milhões de pessoas foram tiradas da pobreza. Milhões foram deixadas para trás. Com seus prós e contras, ao fazer este percurso, o agronegócio chinês e um setor de alimentos silvestres cada vez mais capitalizado atravessam a paisagem do centro e do sul da China, onde habitam muitas dessas populações de morcegos.
Assim como aconteceu com o Ebola, as interfaces entre morcegos, gado, animais selvagens, fazendeiros e mineiros expandiram-se nesta fronteira de commodities, aumentando o tráfego de vários coronavírus semelhantes ao SARS. O aumento das aplicações de pesticidas, em uma escala muito maior até do que a dos exagerados EUA, pode ter reduzido as populações de insetos que alimentavam esses morcegos. Isso pode ter aumentado a interface dos hospedeiros do coronavírus compartilhada com as populações humanas, à medida que os morcegos expandiam seu raio em busca de alimento.
Com os alimentos silvestres e as linhas de produção agrícola aumentando em extensão e velocidade, muitos coronavírus semelhantes ao SARS, que se espalharam com sucesso em animais usados para fins alimentícios ou em humanos, agora podem fazer seu caminho em um curto espaço de tempo, através da paisagem urbana periférica, rumo a capitais regionais como Wuhan — para, então, entrar na rede global de viagens.
As saídas possíveis
Parece que estamos presos numa armadilha. Há algo que se possa fazer a respeito?
Primeiro, é preciso rejeitar o mundo “normal” que nos trouxe essa bagunça. Cultivar alimentos não é fabricar objetos. Alimentos não são aparelhos. A agricultura deve deixar de ser uma economia industrial, para tornar-se algo mais parecido com uma economia natural. Devemos voltar a assimilar o respeito pelo contexto dos alimentos — o solo, a água, o ar, a matriz ecológica e o bem-estar da comunidade dos quais dependem os alimentos e as pessoas que os comem.
Para eliminar os patógenos mais mortais, devemos preservar a complexidade da floresta (e dos pântanos), mantendo barreiras ecológicas entre morcegos, gansos e outros reservatórios de doenças naturais e os animais criados para alimentação. Devemos reintroduzir a agrobiodiversidade nos rebanhos e nas aves para servir como barreira imunológica contra patógenos mortais, tanto em fazendas quanto em paisagens inteiras. Devemos voltar a permitir que o gado se reproduza naturalmente, para que os rebanhos possam se proteger dos patógenos sem necessidade de antibióticos. Essas intervenções requerem a restauração do locus de controle para as comunidades rurais, e a distância do agronegócio.
Ou seja, em primeiro lugar, para evitar que os piores surtos eclodam, devemos nos voltar para um tipo de planejamento estatal com foco na autonomia do agricultor, na resiliência socioeconômica da comunidade, em economias circulares, redes integradas de fornecimento cooperativo e reparações. Devemos desfazer o trauma profundamente histórico de raça, classe e gênero, situado ao centro da grilagem de terras e da alienação ambiental.
Na cena mundial, devemos acabar com as trocas ecologicamente desiguais entre o Norte e o Sul. Curar a fenda metabólica que surgiu no cerne da agricultura moderna — esse abismo entre a ecologia e a economia que impulsiona o surgimento de patógenos e danos climáticos — requer semear uma filosofia política diferente.
Apostar que o agronegócio, principal fonte da crise pandêmica, fornecerá a solução é, no mínimo, fútil. É possível fazer tudo diferente, se estivermos dispostos a voltar a refletir e agir.
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