Friday, 9 April 2021

O vírus, a vida


O vírus, a vida
-- por Carlos Rodrigues Brandão

Van Lieshout

Um vírus novo nos habita, e ele é vida
e, como nós, deseja ser eterno
e em nosso corpo semeia a sua herança.
Estranhos tempos, indesejados dias.
As ruas desertas, e do alto dos pinheiros
as aves espiam e se perguntam: “e elas
as pessoas, para onde foram
entre praças sem cachorros e crianças?”


Nos bares o vinho de ontem envelhece
enquanto em casa moramos, como em celas.
Entre amigos o abraço proibido
e o beijo entre amantes, condenado.
Sofrem sem aulas velhas professoras
e as prostitutas fogem das esquinas.
Há em tudo um ar de mundo antigo,
portas fechadas como se a Idade Média
de novo fosse agora, entre castelos.

Mas não, somos modernos, e internautas
nos amamos de longe, entre telas.
O ar que é tanto e é livre e democrático,
e existe na mansão e no barraco
falta no peito da mulher que morre
e sonha com anjos, azuis e o paraíso.

A palavra “vírus” viaja e viraliza
e na tela da TV seu corpo é quase como
um divertido brinquedo de criança.
Um ser invisível e o mais livre viajante
que os nossos corpos ameaçam mais que um tigre.
Cobrimos meio rosto com três máscaras
e as moças são todas agora muçulmanas.
Escondidos esperamos quem nos salve.

E a vida, a casa amada em que vivemos
nos acolhe ainda e vela, e nos pergunta:
“O que fizeram do mundo em que vivemos?”
“E o que fazem de mim, que os amo tanto?”


*

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