Saturday, 17 September 2022

O que é fundamental entender no 6º relatório do IPCC sobre mitigação das mudanças climáticas

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O que é fundamental entender no 6º relatório do IPCC sobre mitigação das mudanças climáticas


FOTO: SIMON DAWSON/REUTERS - 19.OUT.2018
CARRO ELÉTRICO SE ABASTECE EM PONTO DE RECARGA NO CENTRO DE LONDRES, REINO UNIDO
IPCC publica novo relatório que sintetiza as mais recentes contribuições da ciência sobre as ações que podem reduzir as emissões globais de gases de efeito estufa

No âmbito do sexto ciclo de avaliação (AR6), o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) já publicou dois relatórios com a liderança dos Grupos de Trabalho 1 e 2 dedicados ao recente diagnóstico sobre o estado atual do clima e a necessidade de adaptação às mudanças climáticas, respetivamente. No último dia 4 de abril de 2022, foi divulgado um novo relatório, desta vez coordenado pelo Grupo de Trabalho 3 (WG III) sobre as perspectivas de mitigação do aquecimento global. Assim, complementando os estudos anteriores, o novo documento analisa a situação atual e as possíveis configurações futuras do conjunto de atividades humanas que causam o aquecimento do planeta, com foco na avaliação de opções tecnológicas, de infraestrutura e comportamentais para reduzir as emissões globais de GEE (gases de efeito estufa).

O relatório contou com a colaboração voluntária de aproximadamente trezentos cientistas de 65 países diferentes com formações diversas em engenharia, economia e outras ciências sociais. Ao longo dos últimos cinco anos, trabalharam colaborativamente para sintetizar o conhecimento mais atualizado de cerca de 18 mil artigos científicos, sobre mitigação das mudanças climáticas. Quem se dedica ao estudo e ao combate das mudanças climáticas sabe a dificuldade de expressar mensagens, muitas vezes, angustiantes para a população, como bem é retratado no filme “Não olhe para cima” (“Don’t look up”, original em inglês). Nosso objetivo aqui é expor as principais orientações da ciência a respeito do que podemos (e não podemos) fazer para reverter esse panorama desafiante, buscando soluções possíveis para estabilizar o aquecimento global do planeta o mais rápido possível. É agora ou nunca!

1. Quem emite mais: países desenvolvidos ou em desenvolvimento?

Historicamente, os países do hemisfério Norte são os principais responsáveis pelo aumento da concentração acumulada de emissões de GEE na atmosfera (Figura 1). Por outro lado, na última década, estes têm emitido em média cerca de um terço do total de GEE e conseguiram estabilizar o seu alto nível de emissões. Já os países emergentes da região Ásia-Pacífico, em acelerado crescimento econômico, apresentam o maior aumento anual de emissões e são responsáveis por quase metade do total de GEE lançados na atmosfera global nos últimos anos.

Apesar de cada um de nós ter uma parcela de contribuição para o aumento das emissões de GEE, a distribuição é muito desigual entre as diferentes regiões do planeta, além, claro, das desigualdades dentro de cada país. Em média, a população 10% mais rica do mundo, encontrada em todos os continentes, contribui com 36-45% das emissões, enquanto os 50% mais pobres emitem apenas 13-15% do total das emissões. A maioria da população mais pobre vive em África, no Sul e Sudeste Asiático e na América Latina e Caribe, muitos ainda sem acesso a eletricidade e a energia limpa.

2. Avanços recentes e (nem tão) novas tendências para o futuro?

Nos últimos anos, houve um avanço substancial na política climática, como o Acordo de Paris e a adoção dos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) da Agenda 2030 da ONU, de modo que muitos países conseguiram desenvolver ações e mecanismos para reduzir emissões de GEE. Custos mais baixos e o melhor desempenho e adoção de tecnologias de baixo carbono, destaque para energia solar, energia eólica, baterias e veículos elétricos (Figura 2), foram importantes fatores para que a taxa de crescimento médio anual das emissões de GEE se reduzisse na última década em comparação a primeira década dos anos 2000. Contudo, a real implementação e o alcance global dessas mudanças são insuficientes, principalmente em países em desenvolvimento, para atingir as metas climáticas e de desenvolvimento sustentável.

O período entre 2000 e 2009 é considerado um dos maiores crescimentos das emissões de GEE na história da humanidade até agora (2,1% a.a.) e, embora o ritmo das emissões tenha se reduzido (1,3% a.a.) na última década (2010-2019), grande parte das atividades humanas continua contribuindo para o aquecimento global. As emissões de GEE lançadas na atmosfera atingiram o nível de 59,6 bilhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (GtCO2e) em 2019. Produção de energia, atividades industriais, a agropecuária e mudanças no uso do solo seguem como os principais vilões. O setor de energia (produção de eletricidade, calor e outras combustíveis) contribuiu com aproximadamente um terço do total de emissões (+/- 20 GtCO2e), seguido da indústria com um quarto (+/- 15 GtCO2e) e logo em seguida pelas atividades relacionadas à agropecuária, florestas e uso do solo (+/- 13 GtCO2e). Por sua vez, o setor dos transportes e edificações corresponderam a 15% (+/- 9 GtCO2e) e 6% (+/- 3 GtCO2e) do total de emissões, respectivamente. No entanto, quando eletricidade e calor são alocados nos setores onde são utilizados, a participação das emissões da indústria sobe para 34% e a de edificações salta para 16% .

A curtíssima pausa em 2020, devido à disrupção social e econômica causada pela pandemia da covid-19, parece ter sido uma exceção, dado que estimativas para o ano de 2021, indicam um novo pico de emissão, muito em função do efeito bumerangue oriundo, principalmente, da recuperação econômica mundial. Apesar da emergência climática, os investimentos em infraestrutura baseada em energias fósseis continuam sendo o motor de muitas economias, elevando o risco de impedir uma imediata e necessária redução de emissões de GEE. Desse modo, as emissões globais nas próximas décadas podem exceder os níveis considerados seguros pela ciência. Isto significa um mundo entre 2,2°C e 3,5°C mais quente do que há dois séculos atrás, tornando praticamente inviável limitar o aquecimento global em 1,5°C até o final do século.

3. Que trajetórias devem seguir as emissões de GEE para que se limite o aquecimento global a níveis seguros?

Para conseguirmos estabilizar o aquecimento global em 2°C ou, idealmente, em 1,5°C é necessário adotar medidas sem precedentes e em grande escala para reduzir emissões em todos os setores da economia e em todas as regiões do planeta. Para um aquecimento de até 1,5°C, é preciso alcançar o pico de emissões o mais rápido possível, idealmente neste ano, e reduzir à metade o total de emissões anuais já nesta década, ou seja, até 2030. Nesse sentido, é essencial manter uma trajetória constante e decrescente de emissões ao longo dos próximos anos até o final do século.

Por seu turno, limitar o aquecimento global em até 2°C nos possibilita um pouco mais de folga, mas o caminho continua sendo desafiador. Um aquecimento de até 2°C exige que as emissões de GEE alcancem um pico antes de 2025 e se reduzam entre 55-70% até 2050.

Se, por um lado, as metas de redução de emissões são claras, por outro, existem vários caminhos para atingir essa finalidade. Nesse sentido, o relatório do IPCC explora cinco cenários ilustrativos que podem servir como referência na busca por limitar o aquecimento a menos de 2°C ou, nos melhores casos, a 1,5°C. O primeiro deles é o cenário SP (do inglês Shifting Pathways), cujo foco está nas sinergias entre desenvolvimento sustentável e mitigação do aquecimento global. Já o cenário LD (do inglês Low Demand) representa uma estratégia baseada na redução da demanda energética por meio de ganhos de eficiência, descentralização, digitalização e economia compartilhada. Por sua vez, o cenário Ren (do inglês Renewables) dá à eletricidade renovável o protagonismo na descarbonização do sistema energético, com destaque para as fontes eólica e solar, e para o hidrogênio como vetor energético. Última entre as trajetórias compatíveis com um aquecimento de no máximo 1,5°C ao final do século, o cenário Neg (do inglês Negative Emissions) baseia-se no uso em larga escala de tecnologias de remoção de dióxido de carbono (CDR, do inglês Carbon Dioxide Removal), produzindo uma grande quantidade de emissões negativas em compensação a uma transição energética mais lenta. Finalmente, o cenário GS (do inglês Gradual Strengthening) reflete os efeitos de adiar até 2030 a adoção de políticas climáticas adequadas: nessa trajetória, torna-se inviável limitar o aquecimento a 1,5°C até 2100.

Em todas as trajetórias, é crucial reduzir as emissões de todos os principais GEEs . Isso significa que temos de adotar medidas para mitigar as emissões de CO2 (dióxido de carbono) , CH4 (metano) e N2O(óxido de nitroso) . Desde 1990 até 2019, as emissões de CO2 da queima de combustíveis fósseis e de processos industriais cresceram 67%. Já as emissões de metano cresceram 29% e as emissões de óxido nitroso 33% no mesmo período, ambas relacionadas, principalmente, a atividades agropecuárias. Apesar de os gases metano e óxido nitroso terem um tempo de vida na atmosfera inferior ao do dióxido de carbono, apresentam um potencial de aquecimento global muito superior. Logo ao reduzir as emissões destes gases significa intensificar o combate às mudanças climáticas. As trajetórias de emissões que limitam o aquecimento em até 2°C indicam reduções das emissões de CH4 em 20% em 2030 e quase 50% em 2050, em relação às emissões de 2019. Enquanto que para um aquecimento de até 1,5°C, as emissões de CH4 devem reduzir em um terço em 2030 e mais de metade em 2050.

4. O que cada setor da economia pode assumir como estratégia para reduzir emissões de GEE e estabilizar o aquecimento global?

Não há muitas novidades em relação ao que é orientado há anos, mas a forma mais detalhada como o relatório levanta soluções e quantifica benefícios merece destaque. Cada um dos cinco caminhos ilustrativos focados na mitigação tem uma abordagem um pouco diferente para reduzir emissões, uso de energia e produção de energia: uns mais e outros menos focados na eliminação de combustíveis fósseis e na maior penetração de energias renováveis, o que implica diferentes visões sobre o potencial de tecnologias de emissão negativa e da captura, armazenamento e uso de CO2 no futuro próximo ou distante. De um modo geral, as estratégias setoriais são as seguintes:

Um setor energético neutro em carbono, por exemplo, deve combinar: uso limitado de combustíveis fósseis; eletrificação generalizada com sistemas elétricos de emissões líquidas zero ou negativas de carbono; medidas de eficiência energética; e maior integração de sistemas. Tecnologias de baixo carbono precisarão fornecer quase toda eletricidade mundial até 2050 para limitar o aquecimento a níveis seguros, em comparação com os menos de 40% de hoje. Ao mesmo tempo, a proporção de eletricidade no consumo de energia final precisa aumentar para 30-60% até 2050, em comparação com cerca de 20% atualmente.

Redução de emissões na indústria envolve ações coordenadas em todas as cadeias de valor para promover: gestão da demanda, eficiência energética e de materiais, bem como economia circular. A produção de aço, cimento e plástico responde por 60-70% das emissões industriais de GEE. O progresso em direção a emissões líquidas zero exige a adoção de novos processos primários usando eletricidade, combustíveis, hidrogênio e matérias-primas de baixo ou zero carbono, empregando tecnologias de captura e armazenamento de dióxido de carbono (CCS, na sigla em inglês para as emissões residuais.

A crescente concentração de pessoas e atividades em áreas urbanas cria oportunidades para aumentar a eficiência dos recursos e descarbonizar em escala. As cidades podem alcançar reduções significativas de emissões por meio da transformação sistêmica do ambiente urbano, relacionado a infraestrutura, sistemas de energia e cadeias logísticas. Medidas de suficiência no desenho e tamanho de construções, aumentar a vida útil de edifícios e seus componentes e utilizar materiais de base biológica/madeira e soluções baseadas na natureza são oportunidades para reduzir emissões e armazenamento temporário de carbono. Através da geração distribuída (solar e eólica), as construções podem passar de um papel passivo para um ativo, gerando energia descarbonizada que pode contribuir para a flexibilidade do sistema energético. O planejamento espacial integrado para alcançar um crescimento compacto e eficiente em termos de recursos poderia reduzir o uso de energia em 23-26% em cidades na metade do século.

Uma combinação de opções de mitigação pelo lado dos consumidores (demanda) com tecnologias de baixo carbono pode resultar em profundas reduções de emissões no setor de transporte. A maioria das reduções de emissões de GEE até 2050 no setor de transporte deve vir da eletrificação de veículos leves (veículos elétricos), os quais oferecem o maior potencial para redução de emissões no setor. Alternativas à mobilidade convencional (baseada em combustíveis fósseis) se devem principalmente ao avanço da tecnologia de baterias. Hidrogênio e biocombustíveis avançados apresentam grande potencial no transporte marítimo e na aviação. Políticas focadas na redução da demanda podem apoiar a mudança para modos de transporte mais eficientes.

Opções relacionadas às atividades agricultura, floresta e uso do solo fornecem reduções e remoções de emissões em larga escala que beneficiam simultaneamente a biodiversidade, a segurança alimentar e outros serviços ecossistêmicos. As opções com cobenefícios substanciais incluem a proteção e restauração de ecossistemas naturais, reflorestamento, intensificação sustentável da agricultura e silvicultura, sequestro de carbono na agricultura, redução do desperdício de alimentos e mudanças na dieta. Produtos agrícolas e florestais podem também substituir combustíveis fósseis e materiais intensivos em emissões em todos os setores. Entretanto, a implementação dessas opções é desafiadora devido à natureza descentralizada e diferentes valores associados à posse e gestão da terra, com milhões de proprietários sob diversas circunstâncias culturais, econômicas e políticas.

Tendo em vista a emergência climática e objetivos voltados para alcançar emissões líquidas zero, entende-se que não há mais tempo hábil para viabilizar avanços em determinadas setores ou atividades, de modo que é possível e inevitável compensar emissões residuais difíceis de abater através das denominadas estratégias de remoção de dióxido de carbono (CDR, na sigla em inglês). A escala e o momento da implantação dependerão das trajetórias de reduções de emissões nos diferentes setores, mas cabe ressaltar que ainda há restrições de viabilidade e sustentabilidade, especialmente em grandes escalas.

Por fim, vale destacar que aquelas opções de mitigação que custam US$ 100 por tonelada de CO2 equivalente ou menos podem reduzir as emissões globais de GEE em pelo menos metade do nível atual até 2030 (Figura 3). Ainda, o PIB global deve continuar a crescer se levarmos em conta os benefícios econômicos da implementação de estratégias de mitigação. O benefício econômico global de limitar o aquecimento abaixo de 2°C, por exemplo, excede o custo da mitigação na maior parte da literatura/modelos avaliados.

5. O que podemos fazer no nosso dia a dia para acelerar e fortalecer ações climáticas de redução de emissões de GEE?

Todos nós individualmente temos a capacidade de atuar e contribuir para limitar o aquecimento global. Como cidadãos, com conhecimento suficiente, podemos nos organizar e exercer pressão política para implementar mudanças no paradigma dos nossos padrões de consumo. Como consumidores, em especial aqueles que têm maiores condições financeiras, é possível repensar certos hábitos e opções de consumo a fim de explorar estilos de vida com menores pegadas de carbono. O relatório usa a abordagem Evitar-Mudar-Melhorar (Avoid, Shift, Improve – ASI, em inglês) para explorar opções de mitigação pelo lado da demanda, por meio de uma combinação de mudanças socioculturais, na infraestrutura e tecnológicas. As emissões associadas ao consumo individual estão relacionadas à mobilidade urbana, à alimentação e ao consumo de energia nas nossas casas e suas opções de baixo carbono são consistentes com a melhoria do bem-estar para toda a população.

Em termos de mobilidade urbana, há um grande potencial de mitigação de emissões, evitando e reduzindo a demanda de deslocamentos. As emissões poderiam ser evitadas eliminando o uso de automóveis de combustão interna e aviões, em trajetos para o trabalho e/ou trabalhando em casa; os demais deslocamentos poderiam ser feitos por algum transporte público (ônibus ou metrô) ou utilizando biocombustíveis sustentáveis em veículos particulares; e o próprio ônibus poderia ser melhorado substituindo-o por um modelo elétrico. Um melhor planejamento urbano nas grandes metrópoles, designadamente para promover maior compactação e ambientes multi-serviços, também contribui para o maior uso de bicicletas e deslocamentos a pé. No geral, as opções de mobilidade urbana apresentam um potencial de mitigação de até 75%, porém esta redução também é fortemente dependente da classe de renda dos consumidores, de modo que se deve ter em consideração possíveis efeitos regressivos e a necessidade de garantir condições de equidade social.

No que diz respeito à alimentação, reequilibrar o nosso consumo e promover alimentos à base de plantas e sazonais, menos dependente do consumo de alimentos de origem animal, como refeições vegetarianas e/ou veganas, oferece um potencial substancial para a mitigação de GEE de até 8 bilhões de toneladas de GEE anualmente, cerca de 40% das emissões globais do sistema alimentar. Além disso, estratégias que promovem a redução de perdas e desperdício alimentares podem resultar em uma redução de até 2,1 bilhões de toneladas de GEE anualmente.

Relativamente ao consumo de energia nas nossas casas, há potencial de redução das emissões através de iluminação e eletrodomésticos mais eficientes. Outras medidas incluem práticas de refrigeração e aquecimento de baixo carbono, recorrendo ao uso de energias solar e eólica em residências (geração distribuída). No geral, as opções de consumo residencial mostram um potencial de mitigação relativamente alto, embora muito dependente do contexto por grupo socioeconômico e região dos consumidores.

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