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Saturday, 17 September 2022

O que é fundamental entender no 6º relatório do IPCC sobre mitigação das mudanças climáticas

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O que é fundamental entender no 6º relatório do IPCC sobre mitigação das mudanças climáticas


FOTO: SIMON DAWSON/REUTERS - 19.OUT.2018
CARRO ELÉTRICO SE ABASTECE EM PONTO DE RECARGA NO CENTRO DE LONDRES, REINO UNIDO
IPCC publica novo relatório que sintetiza as mais recentes contribuições da ciência sobre as ações que podem reduzir as emissões globais de gases de efeito estufa

No âmbito do sexto ciclo de avaliação (AR6), o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) já publicou dois relatórios com a liderança dos Grupos de Trabalho 1 e 2 dedicados ao recente diagnóstico sobre o estado atual do clima e a necessidade de adaptação às mudanças climáticas, respetivamente. No último dia 4 de abril de 2022, foi divulgado um novo relatório, desta vez coordenado pelo Grupo de Trabalho 3 (WG III) sobre as perspectivas de mitigação do aquecimento global. Assim, complementando os estudos anteriores, o novo documento analisa a situação atual e as possíveis configurações futuras do conjunto de atividades humanas que causam o aquecimento do planeta, com foco na avaliação de opções tecnológicas, de infraestrutura e comportamentais para reduzir as emissões globais de GEE (gases de efeito estufa).

O relatório contou com a colaboração voluntária de aproximadamente trezentos cientistas de 65 países diferentes com formações diversas em engenharia, economia e outras ciências sociais. Ao longo dos últimos cinco anos, trabalharam colaborativamente para sintetizar o conhecimento mais atualizado de cerca de 18 mil artigos científicos, sobre mitigação das mudanças climáticas. Quem se dedica ao estudo e ao combate das mudanças climáticas sabe a dificuldade de expressar mensagens, muitas vezes, angustiantes para a população, como bem é retratado no filme “Não olhe para cima” (“Don’t look up”, original em inglês). Nosso objetivo aqui é expor as principais orientações da ciência a respeito do que podemos (e não podemos) fazer para reverter esse panorama desafiante, buscando soluções possíveis para estabilizar o aquecimento global do planeta o mais rápido possível. É agora ou nunca!

1. Quem emite mais: países desenvolvidos ou em desenvolvimento?

Historicamente, os países do hemisfério Norte são os principais responsáveis pelo aumento da concentração acumulada de emissões de GEE na atmosfera (Figura 1). Por outro lado, na última década, estes têm emitido em média cerca de um terço do total de GEE e conseguiram estabilizar o seu alto nível de emissões. Já os países emergentes da região Ásia-Pacífico, em acelerado crescimento econômico, apresentam o maior aumento anual de emissões e são responsáveis por quase metade do total de GEE lançados na atmosfera global nos últimos anos.

Apesar de cada um de nós ter uma parcela de contribuição para o aumento das emissões de GEE, a distribuição é muito desigual entre as diferentes regiões do planeta, além, claro, das desigualdades dentro de cada país. Em média, a população 10% mais rica do mundo, encontrada em todos os continentes, contribui com 36-45% das emissões, enquanto os 50% mais pobres emitem apenas 13-15% do total das emissões. A maioria da população mais pobre vive em África, no Sul e Sudeste Asiático e na América Latina e Caribe, muitos ainda sem acesso a eletricidade e a energia limpa.

2. Avanços recentes e (nem tão) novas tendências para o futuro?

Nos últimos anos, houve um avanço substancial na política climática, como o Acordo de Paris e a adoção dos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) da Agenda 2030 da ONU, de modo que muitos países conseguiram desenvolver ações e mecanismos para reduzir emissões de GEE. Custos mais baixos e o melhor desempenho e adoção de tecnologias de baixo carbono, destaque para energia solar, energia eólica, baterias e veículos elétricos (Figura 2), foram importantes fatores para que a taxa de crescimento médio anual das emissões de GEE se reduzisse na última década em comparação a primeira década dos anos 2000. Contudo, a real implementação e o alcance global dessas mudanças são insuficientes, principalmente em países em desenvolvimento, para atingir as metas climáticas e de desenvolvimento sustentável.

O período entre 2000 e 2009 é considerado um dos maiores crescimentos das emissões de GEE na história da humanidade até agora (2,1% a.a.) e, embora o ritmo das emissões tenha se reduzido (1,3% a.a.) na última década (2010-2019), grande parte das atividades humanas continua contribuindo para o aquecimento global. As emissões de GEE lançadas na atmosfera atingiram o nível de 59,6 bilhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (GtCO2e) em 2019. Produção de energia, atividades industriais, a agropecuária e mudanças no uso do solo seguem como os principais vilões. O setor de energia (produção de eletricidade, calor e outras combustíveis) contribuiu com aproximadamente um terço do total de emissões (+/- 20 GtCO2e), seguido da indústria com um quarto (+/- 15 GtCO2e) e logo em seguida pelas atividades relacionadas à agropecuária, florestas e uso do solo (+/- 13 GtCO2e). Por sua vez, o setor dos transportes e edificações corresponderam a 15% (+/- 9 GtCO2e) e 6% (+/- 3 GtCO2e) do total de emissões, respectivamente. No entanto, quando eletricidade e calor são alocados nos setores onde são utilizados, a participação das emissões da indústria sobe para 34% e a de edificações salta para 16% .

A curtíssima pausa em 2020, devido à disrupção social e econômica causada pela pandemia da covid-19, parece ter sido uma exceção, dado que estimativas para o ano de 2021, indicam um novo pico de emissão, muito em função do efeito bumerangue oriundo, principalmente, da recuperação econômica mundial. Apesar da emergência climática, os investimentos em infraestrutura baseada em energias fósseis continuam sendo o motor de muitas economias, elevando o risco de impedir uma imediata e necessária redução de emissões de GEE. Desse modo, as emissões globais nas próximas décadas podem exceder os níveis considerados seguros pela ciência. Isto significa um mundo entre 2,2°C e 3,5°C mais quente do que há dois séculos atrás, tornando praticamente inviável limitar o aquecimento global em 1,5°C até o final do século.

3. Que trajetórias devem seguir as emissões de GEE para que se limite o aquecimento global a níveis seguros?

Para conseguirmos estabilizar o aquecimento global em 2°C ou, idealmente, em 1,5°C é necessário adotar medidas sem precedentes e em grande escala para reduzir emissões em todos os setores da economia e em todas as regiões do planeta. Para um aquecimento de até 1,5°C, é preciso alcançar o pico de emissões o mais rápido possível, idealmente neste ano, e reduzir à metade o total de emissões anuais já nesta década, ou seja, até 2030. Nesse sentido, é essencial manter uma trajetória constante e decrescente de emissões ao longo dos próximos anos até o final do século.

Por seu turno, limitar o aquecimento global em até 2°C nos possibilita um pouco mais de folga, mas o caminho continua sendo desafiador. Um aquecimento de até 2°C exige que as emissões de GEE alcancem um pico antes de 2025 e se reduzam entre 55-70% até 2050.

Se, por um lado, as metas de redução de emissões são claras, por outro, existem vários caminhos para atingir essa finalidade. Nesse sentido, o relatório do IPCC explora cinco cenários ilustrativos que podem servir como referência na busca por limitar o aquecimento a menos de 2°C ou, nos melhores casos, a 1,5°C. O primeiro deles é o cenário SP (do inglês Shifting Pathways), cujo foco está nas sinergias entre desenvolvimento sustentável e mitigação do aquecimento global. Já o cenário LD (do inglês Low Demand) representa uma estratégia baseada na redução da demanda energética por meio de ganhos de eficiência, descentralização, digitalização e economia compartilhada. Por sua vez, o cenário Ren (do inglês Renewables) dá à eletricidade renovável o protagonismo na descarbonização do sistema energético, com destaque para as fontes eólica e solar, e para o hidrogênio como vetor energético. Última entre as trajetórias compatíveis com um aquecimento de no máximo 1,5°C ao final do século, o cenário Neg (do inglês Negative Emissions) baseia-se no uso em larga escala de tecnologias de remoção de dióxido de carbono (CDR, do inglês Carbon Dioxide Removal), produzindo uma grande quantidade de emissões negativas em compensação a uma transição energética mais lenta. Finalmente, o cenário GS (do inglês Gradual Strengthening) reflete os efeitos de adiar até 2030 a adoção de políticas climáticas adequadas: nessa trajetória, torna-se inviável limitar o aquecimento a 1,5°C até 2100.

Em todas as trajetórias, é crucial reduzir as emissões de todos os principais GEEs . Isso significa que temos de adotar medidas para mitigar as emissões de CO2 (dióxido de carbono) , CH4 (metano) e N2O(óxido de nitroso) . Desde 1990 até 2019, as emissões de CO2 da queima de combustíveis fósseis e de processos industriais cresceram 67%. Já as emissões de metano cresceram 29% e as emissões de óxido nitroso 33% no mesmo período, ambas relacionadas, principalmente, a atividades agropecuárias. Apesar de os gases metano e óxido nitroso terem um tempo de vida na atmosfera inferior ao do dióxido de carbono, apresentam um potencial de aquecimento global muito superior. Logo ao reduzir as emissões destes gases significa intensificar o combate às mudanças climáticas. As trajetórias de emissões que limitam o aquecimento em até 2°C indicam reduções das emissões de CH4 em 20% em 2030 e quase 50% em 2050, em relação às emissões de 2019. Enquanto que para um aquecimento de até 1,5°C, as emissões de CH4 devem reduzir em um terço em 2030 e mais de metade em 2050.

4. O que cada setor da economia pode assumir como estratégia para reduzir emissões de GEE e estabilizar o aquecimento global?

Não há muitas novidades em relação ao que é orientado há anos, mas a forma mais detalhada como o relatório levanta soluções e quantifica benefícios merece destaque. Cada um dos cinco caminhos ilustrativos focados na mitigação tem uma abordagem um pouco diferente para reduzir emissões, uso de energia e produção de energia: uns mais e outros menos focados na eliminação de combustíveis fósseis e na maior penetração de energias renováveis, o que implica diferentes visões sobre o potencial de tecnologias de emissão negativa e da captura, armazenamento e uso de CO2 no futuro próximo ou distante. De um modo geral, as estratégias setoriais são as seguintes:

Um setor energético neutro em carbono, por exemplo, deve combinar: uso limitado de combustíveis fósseis; eletrificação generalizada com sistemas elétricos de emissões líquidas zero ou negativas de carbono; medidas de eficiência energética; e maior integração de sistemas. Tecnologias de baixo carbono precisarão fornecer quase toda eletricidade mundial até 2050 para limitar o aquecimento a níveis seguros, em comparação com os menos de 40% de hoje. Ao mesmo tempo, a proporção de eletricidade no consumo de energia final precisa aumentar para 30-60% até 2050, em comparação com cerca de 20% atualmente.

Redução de emissões na indústria envolve ações coordenadas em todas as cadeias de valor para promover: gestão da demanda, eficiência energética e de materiais, bem como economia circular. A produção de aço, cimento e plástico responde por 60-70% das emissões industriais de GEE. O progresso em direção a emissões líquidas zero exige a adoção de novos processos primários usando eletricidade, combustíveis, hidrogênio e matérias-primas de baixo ou zero carbono, empregando tecnologias de captura e armazenamento de dióxido de carbono (CCS, na sigla em inglês para as emissões residuais.

A crescente concentração de pessoas e atividades em áreas urbanas cria oportunidades para aumentar a eficiência dos recursos e descarbonizar em escala. As cidades podem alcançar reduções significativas de emissões por meio da transformação sistêmica do ambiente urbano, relacionado a infraestrutura, sistemas de energia e cadeias logísticas. Medidas de suficiência no desenho e tamanho de construções, aumentar a vida útil de edifícios e seus componentes e utilizar materiais de base biológica/madeira e soluções baseadas na natureza são oportunidades para reduzir emissões e armazenamento temporário de carbono. Através da geração distribuída (solar e eólica), as construções podem passar de um papel passivo para um ativo, gerando energia descarbonizada que pode contribuir para a flexibilidade do sistema energético. O planejamento espacial integrado para alcançar um crescimento compacto e eficiente em termos de recursos poderia reduzir o uso de energia em 23-26% em cidades na metade do século.

Uma combinação de opções de mitigação pelo lado dos consumidores (demanda) com tecnologias de baixo carbono pode resultar em profundas reduções de emissões no setor de transporte. A maioria das reduções de emissões de GEE até 2050 no setor de transporte deve vir da eletrificação de veículos leves (veículos elétricos), os quais oferecem o maior potencial para redução de emissões no setor. Alternativas à mobilidade convencional (baseada em combustíveis fósseis) se devem principalmente ao avanço da tecnologia de baterias. Hidrogênio e biocombustíveis avançados apresentam grande potencial no transporte marítimo e na aviação. Políticas focadas na redução da demanda podem apoiar a mudança para modos de transporte mais eficientes.

Opções relacionadas às atividades agricultura, floresta e uso do solo fornecem reduções e remoções de emissões em larga escala que beneficiam simultaneamente a biodiversidade, a segurança alimentar e outros serviços ecossistêmicos. As opções com cobenefícios substanciais incluem a proteção e restauração de ecossistemas naturais, reflorestamento, intensificação sustentável da agricultura e silvicultura, sequestro de carbono na agricultura, redução do desperdício de alimentos e mudanças na dieta. Produtos agrícolas e florestais podem também substituir combustíveis fósseis e materiais intensivos em emissões em todos os setores. Entretanto, a implementação dessas opções é desafiadora devido à natureza descentralizada e diferentes valores associados à posse e gestão da terra, com milhões de proprietários sob diversas circunstâncias culturais, econômicas e políticas.

Tendo em vista a emergência climática e objetivos voltados para alcançar emissões líquidas zero, entende-se que não há mais tempo hábil para viabilizar avanços em determinadas setores ou atividades, de modo que é possível e inevitável compensar emissões residuais difíceis de abater através das denominadas estratégias de remoção de dióxido de carbono (CDR, na sigla em inglês). A escala e o momento da implantação dependerão das trajetórias de reduções de emissões nos diferentes setores, mas cabe ressaltar que ainda há restrições de viabilidade e sustentabilidade, especialmente em grandes escalas.

Por fim, vale destacar que aquelas opções de mitigação que custam US$ 100 por tonelada de CO2 equivalente ou menos podem reduzir as emissões globais de GEE em pelo menos metade do nível atual até 2030 (Figura 3). Ainda, o PIB global deve continuar a crescer se levarmos em conta os benefícios econômicos da implementação de estratégias de mitigação. O benefício econômico global de limitar o aquecimento abaixo de 2°C, por exemplo, excede o custo da mitigação na maior parte da literatura/modelos avaliados.

5. O que podemos fazer no nosso dia a dia para acelerar e fortalecer ações climáticas de redução de emissões de GEE?

Todos nós individualmente temos a capacidade de atuar e contribuir para limitar o aquecimento global. Como cidadãos, com conhecimento suficiente, podemos nos organizar e exercer pressão política para implementar mudanças no paradigma dos nossos padrões de consumo. Como consumidores, em especial aqueles que têm maiores condições financeiras, é possível repensar certos hábitos e opções de consumo a fim de explorar estilos de vida com menores pegadas de carbono. O relatório usa a abordagem Evitar-Mudar-Melhorar (Avoid, Shift, Improve – ASI, em inglês) para explorar opções de mitigação pelo lado da demanda, por meio de uma combinação de mudanças socioculturais, na infraestrutura e tecnológicas. As emissões associadas ao consumo individual estão relacionadas à mobilidade urbana, à alimentação e ao consumo de energia nas nossas casas e suas opções de baixo carbono são consistentes com a melhoria do bem-estar para toda a população.

Em termos de mobilidade urbana, há um grande potencial de mitigação de emissões, evitando e reduzindo a demanda de deslocamentos. As emissões poderiam ser evitadas eliminando o uso de automóveis de combustão interna e aviões, em trajetos para o trabalho e/ou trabalhando em casa; os demais deslocamentos poderiam ser feitos por algum transporte público (ônibus ou metrô) ou utilizando biocombustíveis sustentáveis em veículos particulares; e o próprio ônibus poderia ser melhorado substituindo-o por um modelo elétrico. Um melhor planejamento urbano nas grandes metrópoles, designadamente para promover maior compactação e ambientes multi-serviços, também contribui para o maior uso de bicicletas e deslocamentos a pé. No geral, as opções de mobilidade urbana apresentam um potencial de mitigação de até 75%, porém esta redução também é fortemente dependente da classe de renda dos consumidores, de modo que se deve ter em consideração possíveis efeitos regressivos e a necessidade de garantir condições de equidade social.

No que diz respeito à alimentação, reequilibrar o nosso consumo e promover alimentos à base de plantas e sazonais, menos dependente do consumo de alimentos de origem animal, como refeições vegetarianas e/ou veganas, oferece um potencial substancial para a mitigação de GEE de até 8 bilhões de toneladas de GEE anualmente, cerca de 40% das emissões globais do sistema alimentar. Além disso, estratégias que promovem a redução de perdas e desperdício alimentares podem resultar em uma redução de até 2,1 bilhões de toneladas de GEE anualmente.

Relativamente ao consumo de energia nas nossas casas, há potencial de redução das emissões através de iluminação e eletrodomésticos mais eficientes. Outras medidas incluem práticas de refrigeração e aquecimento de baixo carbono, recorrendo ao uso de energias solar e eólica em residências (geração distribuída). No geral, as opções de consumo residencial mostram um potencial de mitigação relativamente alto, embora muito dependente do contexto por grupo socioeconômico e região dos consumidores.

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Friday, 5 December 2014

COP20: aprovada responsabilidade diferenciada entre países ricos e pobres na redução do efeito estufa

adital
http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=83578


COP20: aprovada responsabilidade diferenciada entre países ricos e pobres na redução do efeito estufa

Marcela Belchior
Adital

Há até bem pouco tempo, o debate acerca do meio ambiente girava em torno da mensuração da interferência humana na alteração do clima mundial. Ao que tudo indica, esta já não é a grande questão da agenda global. Durante a primeira semana da 20ª Conferência das Partes sobre a Mudança Climática das Nações Unidas (COP20), que acontece desde o último dia 1º de dezembro, em Lima, capital do Peru, a discussão se concentra nos riscos que a transformação climática apresenta à população e à economia, e os possíveis mecanismos de enfrentamento desse novo contexto. Para isso, uma proposta brasileira que muda o compromisso de cada país já foi aceita pela Organização das Nações Unidas (ONU). 
Pela proposta da diplomacia brasileira, os países em desenvolvimento serão divididos em diferentes graus de responsabilidade pelo aquecimento. A ideia foi lançada pelo país ainda em novembro deste ano e permite que nações emergentes como China, Brasil e Índia assumam compromissos mais ambiciosos de cortes de emissões. 
Países ditos menos desenvolvidos, ou seja, mais pobres e menos industrializados, seriam apenas estimulados a reduzir emissões, ficando livres de cumprirem meta. Isto porque essas nações, sobretudo situadas na África e na Ásia, são uma parte muito pequena do bolo de emissões mundiais. No caso dos países em desenvolvimento, as metas de corte seriam relativas, ficando dependentes do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), do número populacional ou das projeções de emissões. 
Já os 37 países considerados desenvolvidos teriam metas de redução de emissões e de ajuda financeira. Para este caso, cientistas recomendam um corte global de 40% a 70% até 2050. Com esse modelo de divisão, a expectativa é de que os países pobres que melhorarem seus padrões de vida migrem, gradualmente, para o centro, assumindo metas de corte de emissão mais rígidas. 
Uma vantagem dessa proposta é que deve incluir no acordo os Estados Unidos e as nações emergentes, que são os grandes emissores e vinham se recusando a adotar medidas. Já uma desvantagem está na ausência de uma lei que garanta o cumprimento do acordo. A grande diferença entre a proposta brasileira e o atual modelo (Protocolo de Kyoto, de 1997) é que o número de países submetidos a metas rigorosas pode aumentar pouco a pouco.

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Segundo a COP20, a mudança climática mata mais de meio milhão de pessoas por ano. Foto: COP20.

As primeiras conversações desta semana se sustentaram no debate com cientistas do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês), do secretariado da Convenção e dos representantes das Partes, para discutir dados técnicos. O momento serve de base para a tomada de decisões políticas e funciona como um termômetro de como anda o processo de negociação entre os países envolvidos na Convenção. 
Nestes primeiros dias de debate, pesquisas técnico-científicas têm sido utilizadas no diálogo político para a construção do acordo climático. Compreendendo que já vivemos em um planeta climaticamente alterado por ações danosas do ser humano, o esforço da Convenção é na busca por instrumentos que suavizem essa repercussão socioambiental. Com uma temperatura média do planeta Terra 0,8°C mais alta, o foco é entender o que, efetivamente, é necessário fazer para que esse aumento não supere os 2°C até o final do século XXI. 
O evento é dividido em duas partes. Na primeira semana, são realizadas reuniões oficiais e paralelas, com a função de alinhar os temas e preparar a negociação de acordos. Os negociadores, membros das equipes de cada país, juntamente com o secretariado da Organização das Nações Unidas (ONU), avançam no processo de formulação das ações e orientações mundiais. Já na segunda semana da COP20, com a presença dos chefes de Estado, são firmados os acordos formalmente. 
Os dias iniciais da Conferência se deram sob a expectativa de grandes mudanças no tratamento da questão, principalmente pelo recente anúncio de compromisso (informal, até agora) entre Estados Unidos e China, os dois maiores poluidores do globo (concentrando juntos praticamente a metade das emissões), para reduzir a emissão de gases do efeito estufa. O principal objetivo da Conferência é revestir um caminho para um grande acordo global que deve ser selado em 2015, em Paris, capital da França, durante a COP21. 
Esse rascunho deve abordar as principais questões do setor, debatidas há duas décadas pelos países. Uma delas é a responsabilidade comum das nações, mas diferenciada, respeitando as chamadas condições de "desenvolvimento” de cada uma. Assim, todos os países devem assumir algum tipo de compromisso com relação à mitigação da mudança climática. Os chamados "desenvolvidos”, historicamente os maiores responsáveis pelo acúmulo de gases danosos na atmosfera, deverão assumir compromissos mais audaciosos que os demais. O evento se estende até o próximo dia 12 de dezembro.

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Temperatura da Terra já aumentou em 0,8°C. Foto: COP20.

Entenda a COP20 
A Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo da Convenção Marco das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (CMNUCC), que entrou em vigor em 1994 com o objetivo de reduzir a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera. Até o momento, 195 países participam das discussões e apresentam recursos para ratificarem os acordos e orientações internacionais. As nações reúnem-se anualmente para debaterem como são aplicadas as deliberações da Convenção, negociarem novos compromissos com responsabilidades comuns, considerando suas prioridades nacionais e regionais de desenvolvimento, seus objetivos e circunstâncias nacionais. Nesta 20ª edição, participam cerca de 10 mil delegados de todo o mundo.
Movimentos sociais fazem debate alternativo

De 08 a 11 de dezembro, também na capital peruana, será realizada a Cúpula dos Povos Frente à Mudança Climática, um encontro paralelo à COP20. O intuito é promover um espaço livre para que os movimentos sociais e civis debatam o fenômeno da mudança climática e formulem alternativas, ampliando a discussão institucional realizada pelas Nações Unidas. Com o lema "Mudemos o sistema, não o clima!”, o evento estima a participação de 8 mil representantes de vários setores, além da presença de 200 organizações de todo o mundo.

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Dentre os participantes, a Cúpula dos Povos receberá delegações indígenas de diversos países. Foto: Cúpula dos Povos.

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Marcela Belchior

Jornalista da ADITAL

Painel debate pesquisa com resultados “deprimentes” sobre mudanças climáticas

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http://www.ihu.unisinos.br/noticias/538172-painel-debate-pesquisa-com-resultados-deprimentes-sobre-mudancas-climaticas


Painel debate pesquisa com resultados “deprimentes” sobre mudanças climáticas

Uma pesquisa divulgada no encontro anual da American Academy of Religion e da Society of Biblical Literature, ocorrido entre os dias 22 e 25 de novembro, revela que as pessoas religiosas não consideram as mudanças climáticas o problema mais importante que os EUA enfrentam atualmente e nem acreditam que serão pessoalmente prejudicadas por seus impactos. Elas, porém, consideram esta situação como uma crise que exige ação por parte do governo agora, e não mais tarde.
A reportagem é de Rosemary Johnston, publicada pela National Catholic Reporter, 02-12-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A pesquisa, realizada pelo Instituto de Pesquisas Públicas sobre Religião – PRRI (na sigla em inglês), em parceria com aAmerican Academy of Religion, envolveu entrevistas por telefone com mais de 3 mil pessoas.
O estudo dividiu os participantes em três categorias: os crentes, aqueles que creem que a Terra está aquecendo principalmente por causa da atividade humana; os simpatizantes, aqueles que creem que a temperatura global está aumentando, mas tributam este aumento a flutuações naturais ou a causas desconhecidas; e os céticos, aqueles que insistem em não existir provas sólidas de que a temperatura da Terra está subindo ao longo das últimas décadas.
Robert Jones, chefe executivo do PRRI, disse, durante um debate no painel sobre os resultados no encontro anual, que menos da metade dos pesquisados (46%) podem ser identificados como crentes, enquanto que os outros se dividem entre simpatizantes (25%) e céticos (26%).
“Cerca da metade daqueles que não acreditam nas mudanças climáticas tiveram uma atitude baseada na observação pessoal das mudanças no clima ao redor deles”, disse Jones.
Houve diferenças significativas na atitude baseada nas afiliações partidárias e, até certo ponto, nas identidades religiosas e étnicas. Quase dois terços dos democratas creem nas mudanças climáticas, enquanto que menos de 22% dosrepublicanos poderiam ser identificados como crentes. Cerca da metade dos republicanos pesquisados foram considerados céticos, enquanto que só 13% dos democratas pesquisados entraram nesta categoria.
Os evangélicos brancos são mais propensos do que qualquer outro grupo religioso a se mostrarem céticos para com as mudanças climáticas, revelou a pesquisa. 73% dos católicos hispânicos estão bastante preocupados com as mudanças no clima, comparados com os 41% dos católicos brancos. E entre os protestantes negros e protestantes brancos históricos, 58% dos protestantes negros estavam muito preocupados ou um pouco preocupados, enquanto que 43% dos protestantes brancos históricos expressaram o mesmo nível de preocupação.
Os hispânicos (41%) e os americanos negros (36%) estão, pelos menos, duas vezes mais propensos do que osamericanos brancos (18%) a antecipar que eles serão pessoalmente prejudicados com as mudanças climáticas. Houve um maior consenso sobre o fato de que as pessoas que vivem nos países em desenvolvimento sofreriam um maior impacto.
Num painel composto por quatro acadêmicos relacionados às áreas da religião, ética e teologia do meio ambiente, David Gushee, professor de ética cristã na Mercer University e vice-presidente do PRRI, chamou os resultados da pesquisa de “deprimentes”.
“Está claro que o nosso objetivo deve ser fazer deste problema uma questão menos partidária e transformar os simpatizantes em crentes”, disse. “Acho que os resultados da pesquisa também mostram provas de uma desconfiança substancial entre a religião e a ciência, especialmente quando a ciência entra em conflito com a fé e a autoridade bíblica”.
Quando questionado a respeito do conflito entre fé e ciência, os membros dos grupos religiosos, exceto os protestantes brancos históricos, acreditam que a ciência e a religião estão, frequentemente, em conflito.
Enquanto a maioria dos pesquisados acreditam que as mudanças no clima resultaram num aumento dos desastres naturais nos últimos anos, houve também um aumento entre os que atribuem os recentes desastres naturais como sendo sinais do “fim dos tempos” bíblico, em particular entre os evangélicos brancos (77%) e protestantes negros (75%).
“Claro, temos muito trabalho a fazer”, disse Gushee said. “O fato de que 39% dos participantes na pesquisa não acreditam que Deus permitir-nos-ia destruir a Terra revela uma desvalorização da responsabilidade humana. Isso é simplesmente uma má teologia bíblica”.
Willis Jenkins, professor de estudos religiosos e ética na University of Virginia, observou que as mudanças climáticas são um “problema perverso que não tem um conjunto óbvio de soluções. Precisamos olhar para os dizeres representados nas lacunas das respostas entre os participantes de diferentes etnias e observar como os valores culturais podem modelar a percepção deste risco”.
Laurel Kearns, professora associada de sociologia e religião e estudos ambientais na Drew Theological School, falou que os resultados da pesquisa revelam que os pobres e pessoas de cor serão os mais impactados.
“Olhemos para o impacto do Furacão Katrina e do Furacão Sandy em nosso próprio país [EUA]”, disse, Kearns. Ao observar que a maioria dos americanos que participam, dos serviços religiosos, uma ou duas vezes ao mês ouvem pouco por parte de seu sacerdote a respeito do problema das mudanças climáticas, “poder ouvir sobre o assunto faz a diferença”, acrescentou.
A pesquisa revelou que os participantes que mostraram mais preocupação sobre as mudanças do clima estão mais propensos a crerem na mudança climática. Mais de 6 em cada 10 participantes disseram que o seu líder religioso raramente ou nunca fala sobre as mudanças climáticas.
Laurie Zoloth, presidente da American Academy of Religion e professora de estudos judaicos e ética social naNorthwestern University, chamou as mudanças climáticas de “o problema moral central” de nossa época.
“Trata-se da maior questão coletiva que a humanidade já enfrentou”, disse. “Ninguém ficará livre dela”. É deprimente, acrescentou Zoloth, que as pessoas pensem que Deus iria intervir para evitar a destruição do planeta, quando Deus não interviu para evitar o holocausto.
“É encorajador que as pessoas compreendam que este problema irá afetar os pobres principalmente, e que há um desejo entre as pessoas ao sacrifício”, disse Zoloth. “Penso que precisamos perguntar como estes resultados irão transformar o nosso ensino”.

Wednesday, 3 December 2014

Acordo climático entre EUA e China é bilateral e limitado. Entrevista especial com Alexandre Costa

IHU

“Em se tratando de um acordo bilateral e limitado, acredito que ele visa manter um certo controle tecnológico, econômico e político por parte dessas duas grandes potências, que pode ditar o ritmo, as regras e as soluções apresentadas para a crise climática”, lamenta o físico.
“Ao invés de prevalecerem os interesses da maioria da população mundial, num acordo entre a maior potência financeira e militar e o grande galpão de fábrica planetário, tendem a prevalecer os interesses das maiores corporações, incluindo aquelas com forte interesse na continuidade da queima de combustíveis fósseis, inclusive as petroquímicas e os bancos”, pondera Alexandre Costa, ao avaliar o recente acordo assinado entre EUA e China a fim de reduzir as mudanças climáticas. Para ele, o acordo assinado fora das negociações da ONU “está sendo celebrado em um momento em que pressões estão ocorrendo por algum tipo de medida para conter as emissões de gases de efeito estufa”. Contudo, “há interesses econômicos e políticos em jogo, o que faz com que em vários aspectos o acordo seja abertamente insuficiente e, em outros, vago”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Costa enfatiza que o texto do acordo assinado entre EUAChina é “vago” e não parece indicar uma preocupação com o enfrentamento das mudanças climáticas para além do que os países já haviam proposto em outras ocasiões. “O texto do acordo diz que ‘a China pretende atingir o seu pico de emissões de CO² por volta do ano 2030’ e que vai ‘aumentar a fatia de combustíveis não fósseis no consumo primário de energia para cerca de 20% em 2030’. Ora, se o plano quinquenal já previa que a China chegaria a 15% em 2020 (6% a mais do que em 2013), esses 5% a mais de 2020 para 2030 chegam a ser ridículos! Acrescente-se que ‘combustíveis não fósseis’ é um termo bastante vago, que abre caminho para praticamente tudo: de biomassa a nuclear. Não usar explicitamente o termo ‘energias renováveis’ ou, mais ainda, indicar a prioridade para solar e eólica, parece uma omissão proposital”, critica.
A repercussão do acordo bilateral entre EUA e China deve ser “bastante comentado” nas próximas duas semanas durante a COP-20, em Lima. No entanto, “o impacto sobre a COP-20 ainda é incerto”, diz o pesquisador. “Temo que, se algo sair da COP-20, seja algo insuficiente do ponto de vista ecológico e provavelmente injusto do ponto de vista social, político e econômico, alijando países menores e mais pobres do centro das decisões. Aliás, esse meu receio prevalece também em relação aos possíveis resultados da COP-21, em Paris”, conclui.
Alexandre Araújo Costa (foto) é professor, pesquisador e um dos autores do primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Mestre em Física pela Universidade Federal do Ceará, cursou doutorado em Ciências Atmosféricas pela Colorado State University e possui pós-doutorado pela Universidade de Yale. Foi gerente doDepartamento de Meteorologia e Oceanografia da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos. É professor titular da Universidade Estadual do Ceará.
Foto: www.uece.br
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Pode explicar em que consiste o acordo para combater as mudanças climáticas, assinado entre EUA e China? Em que contexto se deu esse acordo e por que foi realizado fora das negociações da ONU?
Alexandre Costa - Trata-se de um arranjo bilateral entre os dois maiores emissores mundiais. Esse acordo está sendo celebrado em um momento em que pressões estão ocorrendo por algum tipo de medida para conter as emissões de gases de efeito estufa, tanto em função do final do malsucedido protocolo de Kyoto quanto da realidade exposta pela comunidade científica através do AR5, o quinto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC. Recentemente, tivemos manifestações no mundo todo, com destaque para a de Nova Iorque, que reuniu quase 400 mil pessoas. Além de organizações ambientalistas como o Greenpeace, a 350.org e o Sierra Club, vale destacar o protagonismo de comunidades tradicionais e povos indígenas nesse movimento.
Mas há interesses econômicos e políticos em jogo, o que faz com que em vários aspectos o acordo seja abertamente insuficiente e, em outros, vago.
Por exemplo, o texto do acordo diz que “a China pretende atingir o seu pico de emissões de CO² por volta do ano 2030” e que vai “aumentar a fatia de combustíveis não fósseis no consumo primário de energia para cerca de 20% em 2030”. Ora, se o plano quinquenal já previa que a China chegaria a 15% em 2020 (6% a mais do que em 2013), esses 5% a mais de 2020 para 2030 chegam a ser ridículos! Acrescente-se que “combustíveis não fósseis” é um termo bastante vago, que abre caminho para praticamente tudo: de biomassa a nuclear. Não usar explicitamente o termo“energias renováveis” ou, mais ainda, indicar a prioridade para solar e eólica, parece uma omissão proposital.

“O grande problema continua a ser, porém, o descompasso entre o que a ciência estabeleceu e aquilo que os governos estão dispostos a implementar”

Do lado americano, a coisa não é também muito animadora. Por não ter se somado ao Protocolo de Kyoto, as emissões americanas cresceram a um ponto em que as reduções propostas agora se tornaram tímidas. As promessas de Obamapara 2025 representam pouco mais do que os EUA deveriam ter alcançado há dois anos, caso tivessem assumido uma postura responsável para com o clima no passado. Pior, Obama pretende que boa parte da redução das emissões, para agradar ao setor energético, seja obtida via substituição do carvão pelo gás natural nas usinas termelétricas. De onde boa parte desse gás deve vir? Do xisto ou folhelho, sendo extraído via fratura hidráulica (“fracking”), comprovadamente associada a vazamentos de metano, poderoso gás de efeito estufa, e a contaminação de aquíferos.
Resta ainda a questão de se mesmo tais metas seriam cumpridas no caso de os republicanos reconquistarem a presidência nas próximas eleições, seguindo o fortalecimento recente, através do qual se tornaram majoritários naCâmara e no Senado. Boa parte dos republicanos assume posições negacionistas, coerentes com seu obscurantismo geral.
IHU On-Line - Qual é o significado político do acordo entre as duas maiores potências mundiais?

Alexandre Costa - É algo delicado. Em se tratando de um acordo bilateral e limitado, acredito que ele visa manter um certo controle tecnológico, econômico e político por parte dessas duas grandes potências, que pode ditar o ritmo, as regras e as soluções apresentadas para a crise climática. Ao invés de prevalecerem os interesses da maioria da população mundial, num acordo entre a maior potência financeira e militar e o grande galpão de fábrica planetário tendem a prevalecer os interesses das maiores corporações, incluindo aquelas com forte interesse na continuidade da queima de combustíveis fósseis, inclusive as petroquímicas e os bancos. Uma aliança e cooperação entre EUA eChina também pode representar uma tentativa do protagonismo que países da Comunidade Europeia esboçaram no terreno de tecnologias de mitigação das mudanças climáticas.
IHU On-Line - O que muda no debate internacional sobre mudanças climáticas após esse acordo?
Alexandre Costa - Ainda que se tratando de um acordo insuficiente e repleto de meandros que atestam que ele é apresentado na lógica de salvaguardar interesses de grandes corporações fortemente instauradas nos dois países, há um lado positivo no que diz respeito ao debate internacional. Ao celebrá-lo, China e EUA, os dois maiores emissores, finalmente reconhecem que o “business as usual” é inadmissível e que algo precisa ser feito logo no que diz respeito às mudanças no clima global. Por exemplo, nesse contexto, governos que têm atuado de modo a retroceder as medidas de mitigação, como os do BrasilAustrália e Canadá, podem se sentir constrangidos a manterem suas políticas de encomenda do desastre. O negacionismo climático também tende a ficar mais desmoralizado.
Cabe, portanto, aos ativistas climáticos, ao movimento dos países insulares e nações mais pobres, aos povos indígenas organizados aumentarem a pressão, a fim de que medidas mais profundas sejam tomadas por esses e outros países. A lição não pode ser de modo algum algo como “ah, finalmente eles vão resolver o problema”, o que nos permitiria voltar a tocar as nossas vidas tranquilamente. Pelo contrário, deve ser a senha de que precisamos, e podemos, de uma grande mobilização mundial para aprofundar rapidamente e de forma justa as medidas para conter o aquecimento global.
IHU On-Line - Já é possível vislumbrar os impactos e a repercussão desse acordo na COP-20 deste ano e na Conferência do Clima do ano que vem, em Paris? Como o acordo assinado pode repercutir no acordo que pretende substituir Kyoto?
Alexandre Costa - O impacto sobre a COP-20 ainda me parece incerto. Nas negociações, é evidente que o acordoChina-EUA será bastante comentado, mas como considero a iniciativa bilateral limitada, cupulista e excludente, temo que, se algo sair da COP-20, seja algo insuficiente do ponto de vista ecológico e provavelmente injusto do ponto de vista social, político e econômico, alijando países menores e mais pobres do centro das decisões. Aliás, esse meu receio prevalece também em relação aos possíveis resultados da COP-21, em Paris.

“Nas palavras do documento, ‘a influência humana no sistema climático é clara e emissões antrópicas recentes de gases de efeito estufa são as maiores em toda a história’”

Kyoto era um acordo muito tímido, extremamente tímido, na realidade. Baseava-se em informações escassas, que de modo algum refletiam a gravidade da crise climática. Mesmo se todos os países tivessem cumprido à risca as metas previstas por ele, ainda assim estaríamos longe de uma solução para a crise climática. Imagine então quão dura é a realidade, ao percebermos que a não adesão dos EUA e a demora da Rússia em ratificar o acordo aumentaram ainda mais o fosso entre o que Kyoto propunha e as reais necessidades de mitigação.
IHU On-Line - Quais sãos as expectativas para a COP-20, que iniciou esta semana em Lima? Quais os temas centrais a serem debatidos no encontro?
Alexandre Costa - As expectativas para Lima para mim não são exatamente as melhores. Debates, haverá muitos, desde precificação do carbono, tecnologias de eficiência energética, papel das cidades, risco climático associado à elevação dos oceanos, etc.
O grande problema continua a ser, porém, o descompasso entre o que a ciência estabeleceu e aquilo que os governos estão dispostos a implementar. O quinto relatório do IPCC, por exemplo, é ainda mais enfático do que o anterior. Já na COP-19 o discurso das organizações não governamentais, mesmo aquelas tidas como mais moderadas ou mesmo defensoras da dita economia verde (na verdade, o ecocapitalismo), como o WWF, tornou-se mais duro.
Isso levou, inclusive ao protesto através do qual as delegações se retiraram em protesto, numa conferência que por pouco não terminou no mais rotundo fiasco, sendo precariamente salva da vergonha completa pela aprovação de um mecanismo de perdas e danos, ou “Mecanismo de Varsóvia”, ainda assim mal emendado e terminando sem compromissos por contribuições para o fundo para bancá-lo.
IHU On-Line - Quais os principais apontamentos do relatório-síntese do IPCC, aprovado no início deste mês de novembro, em Copenhague?
Alexandre Costa - Como tenho frisado constantemente, os resumos dos relatórios do IPCC tendem a ser cautelosos, conservadores em sua linguagem e em suas mensagens, mas, ainda assim, os relatórios completos são compêndios científicos formidáveis, que reúnem efetivamente o estado-da-arte da Ciência do Clima.
Mesmo considerando a forte tendência para um tom moderado, devo dizer, no entanto, que o AR5 do IPCC, resumido através do relatório-síntese, evidencia, com firmeza, as causas e impactos das mudanças climáticas. Nas palavras do documento, “a influência humana no sistema climático é clara e emissões antrópicas recentes de gases de efeito estufa são as maiores em toda a história. As mudanças climáticas recentes têm apresentado impacto generalizado sobre os sistemas humanos e naturais” e “o aquecimento do sistema climático é inequívoco e, desde a década de 1950, muitas das mudanças observadas não têm precedentes nas escalas de décadas a milênios. A atmosfera e o oceano têm aquecido, as quantidades de neve e gelo têm diminuído e o nível do mar tem se elevado”.
O relatório-síntese atribui o aquecimento global a causas antrópicas (considerando “extremamente provável” que as emissões sejam a causa dominante), indica aumento da incidência de eventos extremos e é bastante claro ao afirmar que “impactos severos, generalizados e irreversíveis para as pessoas e ecossistemas” acontecerão a não ser que haja uma “redução substancial das emissões de gases de efeito estufa que, juntamente com a adaptação, limite o risco associado às mudanças climáticas”.
Considero muito importante que o IPCC reconheceu explicitamente, destacando, no relatório-síntese, que o risco climático é desigual e que há limites para as estratégias de adaptação, especialmente em cenários de maiores emissões. Uma má notícia é a de que praticamente se jogou a toalha em relação à meta de conter o aquecimento global em um valor abaixo de 1,5°C, acima das temperaturas médias do período pré-industrial, e que mesmo a meta já perigosa de 2°C está muito fortemente ameaçada.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Alexandre Costa - Em primeiro lugar, gostaria de dizer que as mudanças climáticas deixaram de ser algo para um futuro remoto. Elas já se manifestam nas ondas de calor, nas tempestades severas, em supertufões devastadores, como o Haiyan, que varreu as Filipinas no ano passado, na crise hídrica que assola o Brasil. Agir para contê-las não só não pode mais ser algo adiado, como as parcas chances de mantê-las em limites adaptáveis demandam mudanças profundas em nossa sociedade.
Precisamos urgentemente revolucionar nossos modos de nos deslocarmos, produzirmos bens de consumo, incluindo alimentos, gerarmos eletricidade, etc. Precisamos abandonar a postura perdulária para com a água e o ambiente em geral. Transformações muito profundas são exigidas de nós, mas ainda são factíveis na escala de uma a duas décadas, o que é, na verdade, o tempo que nos resta. Como afirmei recentemente em meu blog, cada dia, cada gota de petróleo extraída, cada grama de carvão queimado, cada árvore derrubada... tudo conta. Isso implica em imaginarmos outro modo de vida, desapegado do consumismo e da futilidade.
Recentemente, um estudo mostrou que 1 km2 de áreas de reserva indígena na Amazônia, ainda que sejam frequentemente violadas por madeireiras ilegais, dentre outros invasores, emitem 27 vezes menos CO2-equivalente do que 1 km2 de área não indígena. Daí, ainda que não cheguemos a ponto do que nos indicou uma liderançaPitaguary de nos adaptarmos ao modo de vida indígena, essa outra forma de buscar felicidade certamente se orienta por uma realização para muito além da compra de bens materiais supérfluos, de baixa durabilidade e da satisfação de necessidades artificiais. É algo que contradiz a própria lógica do sistema capitalista, de crescer, crescer e crescer indefinidamente, rompendo o metabolismo entre a sociedade humana e o restante da natureza e violando os ritmos dos ciclos naturais e os fluxos de matéria e energia no Sistema Terra.
Nota: A fonte da primeira imagem que ilustra a matéria acima é: http://migre.me/nf5yo