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Thursday, 15 May 2014

O feminismo de esquerda e o liberal

OP
http://outraspalavras.net/destaques/o-feminismo-de-esquerda-e-o-liberal/


O feminismo de esquerda e o liberal

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Pagu, pioneira do feminismo brasileiro, era ligada ao Partido Comunista
História do movimento feminista mostra duas raízes: uma anticapitalista, outra meritocrática. Deveríamos opor uma a outra? Ou há objetivos comuns?
Por Marília Moschkovich
Talvez essa seja uma das perguntas que mais escuto, quando trabalho com pessoas que, embora estejam interessadas no movimento feminista, ainda estão começando a explorar o assunto. Talvez porque “esquerda” seja uma classificação que assuste muita gente(comunista! come criancinhas!); talvez porque uma das principais raízes do feminismo está, de fato, na esquerda. Embora a relação entre feminismo e esquerda seja às vezes um tanto conflituosa, ela existe. Apenas não necessariamente.
Costumo dizer que o feminismo tem duas raízes “primárias”, por assim dizer. Ambas vêm de meados a final do século XIX e início do século XX – até então, não havia um “movimento feminista” que reivindicasse coletivamente as mulheres como sujeito político com pautas específicas, apenas o que dizemos hoje serem “proto-feministas” (comoCleópatraHypatia, e intelectuais pioneiras como Mary Woolstonecraft).
Nos Estados Unidos, a Convenção dos Direitos da Mulher convocada em Sêneca Falls, em 1848, é considerada um dos marcos iniciais do movimento sufragista norte-americano. Na Inglaterra, em 1865, John Stuart Mill apresenta ao Parlamento um projeto de lei dando o voto às mulheres. No ano seguinte, funda-se em Manchester o Comitê para o Sufrágio Feminino.
Por uma série de motivos decorrentes da Guerra Fria, de uma briga ideológica e política sobre como contar essa história, da influência da academia anglófona nos estudos feministas nas últimas décadas, entre outros, a raiz do movimento feminista que se tornou mais conhecida é a das sufragistas (ou sufragettes) europeias-ocidentais e estadunidenses.
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Pouco se diz sobre o fato de que, ao mesmo tempo, dentro dos movimentos de trabalhadores que também se fortaleciam na época, nesses e em outros países, as mulheres se mobilizavam em prol da revolução socialista. A pauta feminista era colocada na perspectiva revolucionária de igualdade plena entre todos os cidadãos. Não à toa, diversos autores e autoras consagrados na esquerda refletiram sobre a condição das mulheres na história da Europa e na possibilidade do socialismo: Alexandra Kollontai, Rosa Luxemburgo, Engels, entre outros. É como se, havendo uma linha do tempo do feminismo, ela se bifurcasse criando duas tradições. Uma mais ligada aos EUA e à Europa capitalista, e outra ligada à tradição socialista.
As sufragistas nos países capitalistas eram mulheres brancas, burguesas, que procuravam ultrapassar a barreira do gênero dentro de um grupo específico e elitizado em que homens já possuíam esse direito. Essa “tradição” feminista, herdeira das sufragistas, encontrou-se com a tradição socialista apenas na metade do século XX. De maneira um pouco simplificada, arrisco dizer que o cruzamento de ambas as tradições em meio à Guerra Fria desencadeou o que hoje chamamos de “segunda onda” do feminismo, cujo marco temporal são as décadas de 1960, 1970 e início dos anos 1980. Esta consistiu na expansão de pautas ligadas à política, aos direitos civis e na elaboração das primeiras teorias feministas. Essas características têm a ver com a entrada maciça de mulheres nas universidades europeias e estadunidenses, mas também com uma inserção maior do pensamento de esquerda nos países capitalistas.
No caso do Brasil e de outros países da América Latina, o feminismo já chega pelos grupos de esquerda. A feminista brasileira mais conhecida, Patrícia Galvão (Pagu), por exemplo, era ligada ao Partido Comunista. O movimento feminista e os movimentos de mulheres, em geral, no Brasil, foram fomentados nos espaços da esquerda comunista e socialista ao longo do século XX, e mantiveram uma relação estreita com a causa operária e dos trabalhadores. Isso não significa, porém, que todas as feministas sejam necessariamente de esquerda.
Com a abertura da economia e a força do neoliberalismo no final dos anos 1990, muitas mulheres que não defendem uma ruptura com o capitalismo começaram a acessar ideias feministas para construir pautas do que se pode chamar de um “feminismo liberal”. Em vez de reivindicar uma ruptura estrutural com o machismo e as estruturas de poder do capital, essas correntes procuram apenas garantir “condições igualitárias de competição” para indivíduos independentemente de seu gênero, uma vez que acreditam na meritocracia. As reivindicações vão sempre num sentido mais individual e menos coletivo, travando pequenas batalhas e obtendo conquistas pontuais para as mulheres em espaços geralmente elitizados de concentração de poder.
Nos EUA elas são muitas, mas um bom exemplo brasileiro de feminista liberal conservadora, ligada ao pensamento de direita, é a jornalista Miriam Leitão. O caso dela em geral deixa as pessoas um tanto confusas. Já vi caras e bocas quando as pessoas descobrem coisas interessantes que Leitão escreveu sobre as desigualdades entre homens e mulheres nos espaços do jornalismo mainstream, por exemplo.
Na nossa cabeça parece, à primeira vista, um tanto bizarro que uma feminista possa ser tão conservadora quanto a referida jornalista. Basta observar a história do movimento, porém, para compreender que não há novidade alguma na existência de feministas que se aproximam mais da direita do que da esquerda. Muitos grupos feministas, inclusive, rejeitam que sequer exista essa possibilidade, retirando o rótulo de “feminismo” da militância dessas mulheres.
Ao contrário disso, o que proponho é uma reflexão. Quanto mais informação temos sobre o movimento que cotidianamente nos dedicamos a construir, melhor podemos refletir sobre seus limites e as mudanças que precisamos fazer dentro dele. Negar que o feminismo tenha divergências tão fundamentais é apagar a possibilidade de disputarmos, dentro do próprio movimento, esse tipo de ideia. E é justamente isso que precisa ser feito.

Thursday, 26 December 2013

Qual esquerda? Os dois tipos de esquerda na Europa

carta maior
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Qual-esquerda-Os-dois-tipos-de-esquerda-na-Europa/4/29878


Qual esquerda? Os dois tipos de esquerda na Europa

Há dois tipos de esquerda na França e na Europa, que não são apenas diferentes, mas irreconciliáveis. Uma esquerda oficial e uma esquerda radical.


Michael Löwy
Arquivo

 
Há dois tipos de esquerda na França e na Europa, que não são apenas diferentes, mas irreconciliáveis.
 
A primeira é a esquerda oficial, institucional, representada por certos governos de centro-esquerda – na França, por exemplo – e pelos grandes partidos de centro esquerda. Quer esses governos e partidos sejam « honestos » ( ?) ou corrompidos, partidários do « crescimento » ou da « austeridade », social-liberais ou neoliberais, eles não representam mais do que variantes da mesma política, a do sistema. 
 
Como seus adversários de centro-direita – com os quais frequentemente governam em (Grécia, Alemanha, Itália) – sua política é a do capitalismo globalizado. Uma política que perpetua e agrava as desigualdades, que perpetua e acelera a destruição do meio ambiente, que conduziu à presente crise econômica e que conduzirá, em algumas décadas, a uma catástrofe ecológica.
 
Mas existe também outra concepção de esquerda : aquela da esquerda radical. « Esquerda » significa aqui combate permanente contra a desigualdade, a injustiça, a dominação, em defesa da criação de uma comunidade política livre e igualitária.

O ponto de partido dessa outra política de esquerda é a « indignação ». Celebrando a dignidade da indignação e a incondicional recusa da injustiça, Daniel Bensaïd escreveu : « A corrente fervente da indignação não é solúvel nas águas mornas da resignação consensual. (...) A indignação é um começo. Uma maneira de se erguer e se por a caminho. Nós nos indignamos, nos insurgimos, e depois vemos o que fazer » (1) 
 
Sem indignação nada de grande, de profundo, se fez na hisyória humana. Para dar um exemplo recente, o movimento zapatista de Chiapas, México, começou em 1994 com um grito : Basta ! Mas o mesmo vale para a Primavera Árabe, para a revolta dos Indignados na Espanha e na Grécia, para o movimento Occupy Wall Street, para as jornadas de junho no Brasil. A força dessses movimentos vem, em primeiro lugar, desta negatividade radical, inspirada por uma profunda e irredutível indignação. Se o pequeno panfleto de Stéphane Hessel, « Indignez-vous ! », teve tanto sucesso é porque ele correspondia ao sentimento profundo, imediato, de milhões de jovens, de excluídos e oprimidos pela mundo.
 
A radicalidade dessas revoltas resulta, em larga medida, dessa capacidade de insubmissão, dessa disposição inegociável a dizer : Não ! Os críticos oportunistas e os medios de comunicação insistem fortemente no caráter excessivamente « negativo » desses movimentos, em sua natureza « puramente » contestatória e na ausência de proposições alternativas « realistas ». É preciso recusar categoricamente essa chantagem : mesmo que esses movimentos não tenham uma proposição a fazer – e eles têm ! -, sua indignação e revolta não serão menos justificáveis.
 
O outro ingrediente da esquerda, no melhor sentido – ou seja, plebeu - do termo, é a utopia. O sociólogo Karl Mannheim cunhou uma definição « clássica » de utopia, que ainda hoje é a mais pertinente que temos : todas as representações, aspirações ou imagens de desejo, que se orientam na direção da ruptura da ordem estabelecida e exercem uma « função subversiva » (2).
 
Sem indignação e sem utopia, sem revolta e sem isso que Ernest Bloch chamava de « paisagens do desejo », sem imagens de um outro mundo, de uma nova sociedade, mais justa e mais solidária, a política de esquerda torna-se mesquisa, vazia de sentido e ôca.
 
Notas
 
(1) D. Bensaïd,  Les irréductibles.  Théorèmes de la résistance à l’air du temps,   Paris, Textuel,  2001,   p. 106.
 
(2) K.Mannheim,  Ideologie und Utopie,  1929,  Francfort,  Verlag G.Schulte-Bulmke,  1969,  pp. 36,  170.

Thursday, 12 December 2013

O que é ser de esquerda? Abandonai toda esperança, vós que entrais

carta maior
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cultura/O-que-e-ser-de-esquerda-Abandonai-toda-esperanca-vos-que-entrais/39/29785


O que é ser de esquerda? Abandonai toda esperança, vós que entrais

Não seria mais interessante que não houvesse favelas ao invés de assistirmos à defesa da arte comunitária? Por Flávio Ricardo Vassoler.


Flávio Ricardo Vassoler
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A literatura deve denunciar as mazelas sociais? A literatura, por assim dizer, deve ser engajada? As questões assim postas de pronto escamoteiam toda uma história de debates encarniçados entre intelectuais de esquerda. Antonio Gramsci, Walter Benjamin, György Lukács, Theodor Adorno, Bertolt Brecht, Jean-Paul Sartre, Albert Camus. Dentro dos limites deste breve ensaio, este escritor (esquerdista) gostaria de convocar o leitor e a leitora para algumas reflexões a contrapelo de nosso ímpeto de transformação social. Está em jogo, então, a questão de se a literatura, instrumentalizada a priori, pode ter um efetivo papel revolucionário.
 
Pensemos sobre o caso paradigmático de Fiódor Dostoiévski (1821-1881).

O escritor russo chegou a ser condenado à morte pelo tsar pelo fato de ter participado do Círculo de Petrachévski, um grupo de intelectuais que questionava frontalmente o regime e tinha como reivindicação fundamental a abolição da servidão – em pleno século XIX, a Rússia ainda mantinha sua divisão social do trabalho calcada sobre as estruturas ossificadas do feudalismo.

Os integrantes de Petrachévski passaram por todo o cerimonial da pena de morte – Dostoiévski viria a explorar tal circunstância com muito ímpeto em sua obra vindoura –, mas, no momento imediatamente anterior aos disparos do pelotão de fuzilamento, o tsar comuta a pena e os condena a longos anos de trabalho forçado na longínqua Sibéria. Na prisão que posteriormente seria imortalizada pelo escritor como a Casa dos Mortos, Dostoiévski entrou em contato com o lumpesinato russo que deveria ser emancipado da noite para as Luzes; pôde perceber como as noções de progresso e revolução social tendem a fazer tábula rasa das contradições históricas que se cristalizam nas relações recíprocas entre os homens como se fossem uma segunda natureza. A metáfora maior que desponta da Casa dos Mortos é o socialismo de caserna – ou pior, de presídio –, uma sociedade que, para se estruturar em função da solidariedade, precisa coagir a todos e a cada um de seus membros a não mais competir – ou, então, a fazê-lo apenas no inflado mercado negro. Dostoiévski se deu conta de que um componente fundamental da personalidade, a expressão autóctone e livremente orientada, acabaria colidindo com os planos matemáticos de transformação social. Muitas vezes, os reclusos – seja na Sibéria, seja na vindoura URSS que o escritor bem pôde prenunciar – preferiam lançar tudo às favas, torrar o dinheiro (na prisão, os cigarros) economizado durante anos, quebrar todo o regulamento, acabar com os abonos por bom comportamento, se entregar a orgias e a bebedeiras que duravam apenas algumas horas, mas se expressar, fazer o que bem lhes aprouvesse, ainda que tudo isso colidisse contra os ditames do cálculo utilitário e racional. Os ditames da emancipação.
 
As posições políticas de Dostoiévski se tornaram profundamente ambíguas após a experiência siberiana. O escritor chegou a publicar em veículos tsaristas e, recorrentemente, se via em escaramuças contra a intelligentsia revolucionária, os pais da geração de Vladimir Ilitch Ulianov, também conhecido como Lênin. Mas, neste momento, as questões que abriram este ensaio voltam à tona com novos matizes: ao refletir, de modo narrativo, sobre as contradições historicamente (re)produzidas que a intelligentsia queria suprimir, Dostoiévski pôde intuir que a revolução se voltaria contra si mesma, que a emancipação seria subsumida pelo autoritarismo e pela arbitrariedade, que uma sociedade de espiões recíprocos se instalaria para conter os ímpetos mais propriamente “irracionais” de seus homens e mulheres. (Só não consta da propaganda revolucionária que os estatutos do NKVD e da KGB transformariam a razão emancipatória em razão de Estado, a revolução em Realpolitik.) Sendo assim, a dialética de Dostoiévski que não quis instrumentalizar a literatura para que ela pudesse acompanhar o movimento da contradição histórica não prestou um serviço mais engajado para as causas de transformação social do que a arte panfletária e engajada a priori?

 
Não quero dizer com isso que não possa haver denúncias, que não possa haver narrativas inflamadas e veementes em contraposição à brutalidade do apartheid sul-africano e ao Gulag brasileiro, o horror de nossa periferia rediviva. Mas e se, ao lado de Paulo Freire, o escritor entrevir que o oprimido só faz aguardar o momento em que a revolução se confundirá com o ressentimento para dar vazão ao novo opressor? A arte, então, deverá ficar em silêncio? A negação da negação deve ser amordaçada quando o poder troca de mãos? (Quando o poder permanece poderoso.) O florentino Nicolau Maquiavel bem poderia sentenciar, então, que a direita e a esquerda são mãos que fazem parte de um mesmo corpo.

 
A forma que constitui a obra de arte, o movimento de sua arquitetura, talvez possa acompanhar e derivar os sentidos e os ressentimentos históricos com mais profundidade se, justamente, não tiver que se filiar a uma posição unívoca. E isso, caro leitor, cara leitora, não significa, de modo algum, a defesa a meu ver estéril da arte pela arte. Minha (contra)posição, no caso, caminha tanto ao lado de Dostoiévski quanto a reboque de um ateniense que jamais deixou de refletir à revelia das questões de seu tempo. Consta que Sócrates filosofava na Ágora, a praça principal de Atenas, diante dos mais inusitados interlocutores, e sua maiêutica – os primórdios da dialética – não deixava de apontar a dúvida contra a própria têmpora. O “sei que nada sei” socrático, que tanto enraivecia seus adversários pragmáticos, poderia ser lido, então, não como o pensamento-para-uma-inequívoca-finalidade, mas como os moldes do que seria a utopia em uma sociedade reconciliada consigo mesma, sociedade que não nos coagiria ao trabalho, pois saberia lançar mão dos únicos escravos que a humanidade teria condição de aceitar – as máquinas – para produzir a riqueza que saberíamos repartir de modo a que vida fosse liberada para o livre contraditório, para a arte, para o belo. Não teria sido isso que Marx, n’A Idelogia Alemã, e Oscar Wilde, n’A alma do homem sob o socialismo, quiseram dizer com a utopia que nos permitiria pescar durante a tarde e fazer crítica literária à noite?

 
Quando sabemos que nossos tempos vivem o crepúsculo da utopia – quando não o seu réquiem –, pensar a contrapelo de si mesmo tem o gosto tão amargo quanto a cicuta que vitimou Sócrates. Mas já que a maiêutica, no limite, não prescinde do extremismo de Édipo a rasgar os próprios olhos, gostaria de convidar o leitor e a leitora para uma última sessão de autoflagelação. Eis um fragmento de um aríete dialético – Kafka: pró e contra(São Paulo: Cosac Naify, 2007, pp. 88-89), do filósofo Günther Anders (1902-1992): “Mas aquilo a que damos o nome de arte provém sem dúvida de épocas em que existiam relações de domínio, ou seja, diferenças de posição social, portanto, também diferenças sociais de linguagem. De fato, a distância da beleza ou da obra de arte é a tal ponto reflexo da distância e do desnível sociais (...) que, por mais desagradável que a tese possa soar [grifo de Sócrates e Dostoiévski], a neutralização de classes paralisaria a arte (...); se não expressamente em relação à arte, pelo menos em relação ao ‘espírito’ em geral”.

 
Antes que o leitor e a leitora mais exasperados e engajados considerem Anders um rematado reacionário, consideremos, por exemplo, se o miserabilismo cultural daqueles que querem enaltecer as produções periféricas como autóctones, legítimas e altamente estéticas não tenta suprimir o abismo de classe apenas com o nominalismo que afirma a alteridade sem que a desigualdade seja suprimida. A dialética se insinua: não seria mais interessante que não houvesse favelas ao invés de assistirmos à defesa da arte comunitária? Sócrates e Dostoiévski complementariam: e se a indústria cultural, que procura padronizar o nível das mercadorias para que não haja arestas entre os consumidores, já tiver mapeado as áreas periféricas como excelentes nichos de mercado? (Afinal, os últimos dez anos não impulsionaram a nova classe média? Resta saber se a ascensão social faz algo mais do que nos emancipar-para-mais-consumo.)

 
Mas o fragmento de Günther Anders não termina no ponto em que eu o guilhotinei. Após o libelo (auto)crítico, Anders tenta exumar a utopia: “Com a ideia de ‘superação’ (Aufhebung) da filosofia, Hegel [e Marx – complemento de Dostoiévski e Sócrates] não pretendera indicar outra coisa senão a suspensão daquela situação social de tensão na qual a filosofia [e a arte] é possível e necessária”. A superação dialética, que implica a concomitância dos movimentos de negação e conservação para que, assim esperamos, haja a negação da negação, já vislumbrou, ainda que por frestas exíguas, uma sociedade que trouxesse pujança ao espírito sem que as classes e as pessoas fossem arremessadas umas contra as outras, sem que a competição voraz fosse o substrato do intelecto e da criação. Mas, hoje, a arte não engajada – a dialética insinua que esta seria a mais engajada das artes – entrevê que o ressentimento coopta justamente aqueles e aquelas que teriam interesse, segundo uma racionalidade emancipatória, em algo melhor do que o atual estado de coisas. Ora, “melhor” é tido como “elitista” – ao invés de pensarmos sobre as condições de (re)produção do elitismo, proscrevamos sem mais a hierarquia do espírito e aceitemos, irrefletidamente, a mediocrização da arte que nos apresenta as afinidade eletivas entre o culturalismo (miserabilismo) da diferença e a indústria cultural.

 
Marx certa vez sentenciou: “A história se repete, a primeira vez como tragédia” (tese), “a segunda como farsa” (antítese). Quando o esquerdismo cultural se endireita a ponto de antecipar as premissas mercadológicas das agências publicitárias, o não-engajamento engajado de Sócrates e Dostoiévski faria muito bem em perguntar:

 
− Que diria Marx em face da suposta síntese de nossos tempos? Será que o alemão colocaria as barbas de molho e diria que, pela terceira vez, farsa e tragédia se confundem?

 
Talvez Marx buscasse arrimo em outro florentino citado n’O Capital. [Ao que o esquerdismo cultural só faria bradar: citações são elitistas! (Sócrates e Dostoiévski, novamente, fariam muito bem em perguntar: será que eles consideram que o estudo é elitista?)] Marx, cujo otimismo histórico buscava traduzir O Capital para os trabalhadores – quanta diferença para o miserabilismo cultural da atualidade! –, dialoga com ninguém menos que Dante Alighieri, para quem a proscrição de Pandora, a reclusa da esperança, era a premissa inscrita às portas do inferno

 
− Lasciate ogni speranza, voi ch’intrate, abandonai toda esperança, vós que entrais. (La Divina Commedia – Inferno. Milano: Mondadori, 2004, p. 20.)

 
O portal do inferno é mais dialético do que a resignação primeira parece sugerir. Abandonar a esperança antes de sermos arregimentados pelas caldeiras diabólicas significa, também, conservá-la, mantê-la frágil e algo distante, para que a lucidez da crítica não seja cooptada pelo corredor polonês. Pandora permanece em sua caixa – em seu cárcere –, mas a esperança não se vê rebaixada ao mal menor para (re)produzir o existente. Só assim me parece possível ler a ironia do demônio de Dante em diálogo com a diatribe do vienense Karl Kraus (1874-1936) como uma exortação dialética a que continuemos a escavar a utopia entre os escombros. “O diabo é um otimista se acredita que pode tornar os seres humanos piores”.

 
Para Caio Sarack

 
 Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Todas as segundas-feiras, às 19h, apresenta, ao vivo, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memóriaswww.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

Saturday, 9 November 2013

“Precisamos parar o trem suicida da civilização capitalista ocidental antes que seja tarde”

IHU
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/525461-precisamos-parar-o-trem-suicida-da-civilizacao-capitalista-ocidental-antes-que-seja-tarde

“Precisamos parar o trem suicida da civilização capitalista ocidental antes que seja tarde”

Um dos maiores pesquisadores da obra de Walter BenjaminMichael Löwy, sociólogo brasileiro radicado na França desde os anos de 1960, veio ao Brasil no mês passado para participar de debates em torno do recém-lançado O capitalismo como religião, livro por ele organizado.
Nele, além do fragmento que dá título ao livro, Löwy reuniu 16 ensaios de Benjamin ainda inéditos em português ou difíceis de consultar, que contêm, em graus variados, uma crítica radical da civilização capitalista-industrial moderna. O capitalismo como religião “original”, redigido em 1921, mas que permaneceu inédito até 1985, é considerado um dos textos mais intrigantes de Benjamin, apesar de conter – ou justamente por isso – não mais do que três páginas.
Como, uma vez, sintetizou Löwy em artigo de 2006: “Inspirado na obra de Max Weber [1864-1920] – nominalmente citado –, sob uma afinidade eletiva com “A ética protestante e o espírito do capitalismo” [1904-1905/1920],Benjamin [não obstante] vai mais longe que o sociólogo: o capitalismo não tem somente origens religiosas, ele mesmo é uma religião, um culto incessante, sem trégua nem piedade, que conduz o planeta humano à “casa do desespero”. Esse fragmento pertence, como alguns textos de Georg Lukács, Ernst Bloch ou Erich Fromm, à categoria das ‘interpretações’ anticapitalistas de Weber”.
A reportagem e entrevista é de Marcelo Netto Rodrigues e publicada pelo Brasil de Fato, 07-11-2013. Foto: João Peschanski.
Eis a entrevista.
Como atua o capitalismo como religião na visão de Benjamin? Essa visão ainda é pertinente?
Benjamin tem algumas intuições fortes neste ensaio, que não é um ensaio marxista, Nessa época, Benjamin era próximo do anarquismo, do socialismo libertário, mas ele capta alguns aspectos essenciais do capitalismo que são surpreendentemente atuais. Primeiro, ele define o capitalismo como culto religioso, rituais, práticas de adoração. Ele menciona que uma das divindades dessa religião capitalista é o dinheiro. Enquanto as práticas capitalistas, a especulação na Bolsa, as negociatas bancárias, tudo isso, são elementos desse ritual religioso em torno do dinheiro. Ele diz que esse culto é sem trégua nem piedade. O capitalismo não para, não tem feriado. De dia e de noite, acompanha as pessoas, do nascimento ao túmulo.
Enfim, o capitalismo ocupa o conjunto da vida das pessoas. E ele é completamente impiedoso, não possui ética. Isso Max Weber já tinha dito. E Benjamin retoma alguns temas de Weber. O capitalismo é sem ética. Por essência, ele é estranho a qualquer argumento ético. Não por maldade, mas porque a lógica do sistema não admite critérios éticos. Isso parece também muito atual. Além disso, Benjamin também diz que no coração da religião capitalista há o conceito de Schuld, que em alemão é ao mesmo tempo “dívida” e “culpa”.
Benjamin diz que é uma coincidência diabólica que culpa e dívida sejam a mesma palavra. O que a gente vê hoje com a crise capitalista é exatamente isso, quer dizer, o argumento dos governos, dos bancos, dos economistas, da imprensa, é que quem está endividado é culpado. Se Grécia, Portugal e Espanha estão endividados é culpa deles, porque são preguiçosos, não trabalham. Toda uma argumentação pseudo-religiosa, moralista, que explica a dívida pela culpa. Essa conjunção diabólica está no centro dessa situação atual na Europa. Isso é muito evidente. Outra característica do capitalismo como religião, segundo Benjamin, é o desespero. A religião capitalista levou a humanidade à casa do desespero. Isso a gente vê hoje com a crise, com esse estado de espírito de desespero terrível das pessoas, que se traduz até em suicídio, coisas bastante terríveis do ponto de vista humano. Então, acho que [a leitura feita por Benjamin] é de uma atualidade tremenda.
Em As utopias de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado (2007), lá no apêndice, o senhor traça comentários sobre trechos d’ O capitalismo como religião, mas o fragmento em si não aparece na íntegra. Agora, o texto inteiro de Benjamin é publicado, mas sem os seus comentários...
Aquele texto que saiu em As utopias é uma conferência que dei naquela ocasião e escolhi como tema esse texto de Benjamin. Então, como já havia sido publicado não era o caso de retomá-lo. Naquela coletânea não aparece o texto doBenjamin porque se trata de outra temática e eu queria que o texto [na íntegra] figurasse nesta nova coletânea que estamos lançando.
Na orelha do livro, a psicanalista Maria Rita Kehl ressalta que apesar da palavra “melancolia” não estar contida no texto de Benjamin, seu sentido é iluminado por ele.
A “melancolia” aqui aparece sob a forma do desespero, o sentimento de que você está condenado sem esperança: a desesperança. O capitalismo é uma jaula de ferro, [conceito desenvolvido por Weber], na qual estamos fechados sem saída. Isso é o desespero, isso é a melancolia. Agora, Benjamin não é um melancólico resignado. Ele tem um ensaio sobre surrealismo, de 1929, em que ele diz que ser comunista, ser revolucionário, exige pessimismo. Ser revolucionário é organizar o pessimismo. Então o pessimismo, a melancolia e até o desespero de Benjamin não são resignados, não são fatalistas como era Weber. São ativos, são rebeldes, são revolucionários. É um pouco difícil entender isso: como você pode ser um pessimista revolucionário. Então, Benjamin argumenta que há o pessimismo porque se deixarmos as coisas correrem como até agora, a catástrofe é inevitável. E até agora tem sido assim. Temos sido derrotados e a história é uma sucessão de catástrofes. Mas, ao mesmo tempo, é um chamado para a ação. Se queremos impedir a catástrofe, temos que agir. E a única esperança de impedir a catástrofe é a revolução. A revolução, ele escreve em Rua de mão única, é você cortar o fi o da meada antes que pegue fogo na dinamite.
Então é um chamado à ação antes que seja tarde demais. A uma ação urgente. Então, todo espírito dele é esse: precisamos agir antes que seja tarde demais. Então é um pessimismo ativo, é uma melancolia ativa e é um desespero ativo, paradoxal, mas é assim. Então, nesse fragmento, não chega a ser um ensaio, sobre o capitalismo como religião você vê que ele está buscando uma saída. Não está resignado, está buscando uma saída, mais além do desespero. Temos que encontrar a porta, a janela para sair dessa casa do desespero. Então, ele vai discutindo várias propostas de saída, dizendo: “Essa é uma ilusão”. Por exemplo, ele pega os monges que se afastaram do capitalismo, mas isso não é uma saída. Há quem propõe reformar o capitalismo e isso não é uma saída, é uma ilusão, não dá para reformar o capitalismo. Então, ele vai afastando algumas soluções, outras ele não diz se concorda ou não, mas provavelmente ele tem mais simpatia.
Por exemplo, tem um anarquista chamado Erich Unger, que ele propõe que os povos abandonem os países capitalistas para irem viver lá onde o capitalismo ainda não chegou. Não sei se ele partilhava isso. Acho que ele é mais próximo a essa época de um autor que ele cita no fragmento que é o Gustav Landauer, que era um anarquista romântico que tinha um pouco a ideia de que as pessoas devem que sair das cidades capitalistas para viver em colônias anarquistas. Seriam, talvez, as ocupações e assentamentos do MST.
Como o senhor vê os zapatistas nisso? Pergunto isso porque o John Holloway naquele livro Como  mudar o mundo sem tomar o poder (2002) fala também da necessidade de um pessimismo,  advogando que o “erro” de alguns marxistas estaria justamente no contrário, em insistir num positivismo, sem trocadilhos, como base para a ação dos trabalhadores.
Muitas das colocações do Holloway são interessantes, toda parte de crítica dele ao capitalismo acho muito pertinente e esse pessimismo, digamos, revolucionário. Agora, a colocação de mudar o mundo sem tomar o poder, eu acho problemática. Eu acho que você não escapa da necessidade de criar novas formas de poder. Inclusive a experiência zapatista é essa. O que eles fizeram lá, onde têm influência, foi tomar o poder. Criaram formas de poder por baixo, alternativas, democráticas e o projeto deles pro México, eu acho que é esse:  o de criar uma nova forma de poder como alternativa ao poder estatal capitalista institucional que oprime o povo mexicano há um século.
Agora, Benjamin está buscando uma saída para isso, ele não tem uma, mas a simpatia dele vai para o anarquismo, apesar de ele não ter uma proposta. Depois ele vai descobrir o marxismo e ele vai, digamos, aderir à proposta marxista, mas guardando um certo  aspecto anarquista que faz com que ele nunca vá aderir totalmente ao Partido Comunista. Mesmo ao projeto soviético ele guarda uma distância crítica que tem a ver com essas raízes libertárias do pensamento dele.
Falando dessas raízes do Benjamim, na contracapa, a também especialista em Benjamin, a professora Jeanne Marie Gagnebin cita que a intenção do livro é a de explorar como Benjamin soube unir, nessa rejeição ao capitalismo “impulsos oriundos do romantismo alemão, do messianismo judaico e do marxismo libertário”. Como é que esses três impulsos entraram na vida do Benjamin?
Benjamin começa com reflexões teológicas messiânicas, mas já como inspiração revolucionária. Tem um texto dele de 1915 sobre a vida dos estudantes em que ele já diz que o progresso é uma mistificação, essa ideia de que a história é um caminho muito mais denso, a alternativa são as imagens utópicas como o reino messiânico e a revolução. E no mesmo texto ele menciona também os anarquistas. Então, desde o começo ele tem essa ideia da utopia revolucionária messiânica como alternativa à ideia burguesa de progresso. Bom, isso vai se desdobrando na obra dele, com uma virada importante a partir de 1923 quando ele descobre o marxismo.
Mas, então, é um marxismo que incorpora a crítica romântica à civilização. E isso é o tema que está nessa coletânea, que mostra como a crítica romântica à civilização é um fio condutor da obra dele desde o começo e a partir de 1923, 1924, já associada ao marxismo. E no começo também associada a temas messiânicos, teológicos que depois vão sendo um pouco marginalizados, mas que voltam no fim, nos últimos escritos, com força nessa síntese extraordinária que são as Teses sobre o conceito de história (1940) que o marxismo se associa à teologia e à crítica romântica.
Agora, a ideia de uma aliança entre a teologia e o materialismo histórico é um dos pontos mais difíceis de entender na Europa. Os leitores de Benjamin ou são marxistas, então dizem que a teologia é uma metáfora, ou como [Gerhard]Scholem, são teólogos, então dizem que o marxismo é uma questão de terminologias, ou como [Jürgen] Habermas, dizem que é impossível se juntar marxismo com teologia e que, portanto, isso não funciona. Então é difícil na Europa entender isso. Agora, aqui na América Latina, há condições para se entender Benjamin, porque aqui temos o fenômeno da Teologia da Libertação, que foi justamente isso.
Embora eles não tivessem lido Benjamin, embora a teologia seja mais cristã do que judaica, aqui na América Latina há conjunção entre teologia e marxismo não é uma hipótese filosófica meio arriscada, é um movimento de massas que mudou a história da América Latina, com a Teologia da Libertação. Então, é aqui na América Latina que se tem condições de se entender Walter Benjamin de uma maneira mais profunda.
Em contraposição à noção de progresso linear, o que seria o progresso para o Benjamin, na acepção da palavra, não na mistificação?
A ideia dominante de progresso, que é a burguesa, mas que foi assumida por boa parte da esquerda, é a de que a história da humanidade é a história do progresso. O capitalismo é um progresso em relação ao feudalismo e o socialismo vai coroar , digamos, vai retomar as conquistas capitalistas e vai levá-las até as últimas consequências. E a história é isso: você simplesmente tem que nadar com a corrente, que a história vai caminhando nessa direção.
Então, Benjamin rejeita essa mistificação, mostra que a história não é nada disso, a história é a história dos dominantes, das classes dominantes, que uma vai herdando da outra e é a história da opressão e da derrota das tentativas de revolta dos oprimidos. Mas essas tentativas de revoltas são os únicos aspectos progressistas da história, são essas revoluções, desde Spartacus, os escravos que se revoltam, os camponeses que se revoltam no século 16 na Alemanha com Thomas Münzer, a Comuna de Paris, esses momentos de rebelião dos oprimidos são os únicos momentos de progresso.
Então, existe o que Benjamin chama uma tradição dos oprimidos, que inclui Spartacus, Münzer, Comuna de Paris, a revolução alemã de 1919 de Rosa Luxemburgo. Então, progresso são esses momentos messiânicos, utópicos, revolucionários, que são a interrupção da dominação, do progresso das classes dominantes e o verdadeiro progresso será o dia em que se interromper o progresso da dominação. Esse será o verdadeiro progresso revolucionário.
E qual era a visão dele de vanguarda? Como ele via o processo da Revolução Russa?
Benjamin não tem uma reflexão sobre a vanguarda. Ele não tem uma reflexão sobre estratégia e tática. A temática política dele é uma reflexão filosófica sobre a história, que é muito instigante, muito atual. Mas ele não é alguém que dá a linha estratégica, tática, de partido. Aí temos que completar Benjamin com outros. Com relação à experiência soviética ele passa por momentos diferentes. No começo, ele ignora, o que é curioso porque de 1917 à 1923 é quando o entusiasmo pela Revolução Russa atinge o máximo na Europa. E curiosamente Benjamin está fora, ele não se deu conta. Ele descobre a revolução russa quando se apaixona por uma revolucionária russa [da Letônia], Asja Lacis, e quando ele lê História e consciência de classe, do Georg Lukács, em 1925.
Então é uma descoberta tardia. Aí ele se entusiasma com a revolução russa, com o comunismo e vai visitar a União Soviética, em 1927, mais por amor por Asja Lacis do que por outra coisa, e aí ele começa já a perceber que há problemas. Quando passa alguns meses na União Soviética e ele simpatiza com um pessoal ligado a oposição de esquerda, que se dão conta de que algo está indo errado. Nas notas que escreve durante esta estadia ele diz que parece que a revolução se interrompeu, parece que a revolução parou. Enfi m, isso é um primeiro momento crítico.
Ele continua acompanhando as críticas da oposição de esquerda e em um certo momento ele lê, acho que a História da Revolução Russa, de Trotsky (1930), e escreve, acho que para o Scholem, nunca vi uma coisa tão impressionante, ele se interessa pelos argumentos de Trotsky, mas ele não adere, tampouco adere ao partido, mas há um período curto, entre 1933, quando os nazistas tomam o poder, e 35, 36, quando começam os processos de Moscou em que ele parece aderir ao marxismo soviético, escreve alguns artigos muito entusiastas sobre a experiência soviética, mas é um período curto, dois, três anos.
Quando vêm os processos de Moscou, ele fica perplexo. Ele não consegue explicar isso e, a partir daí, Ele começa mais uma vez a se distanciar e, em 1938, ele já tem uma visão claramente crítica, embora não exposta publicamente. Ele discute com Brecht, quando os dois dizem: “Bom, mas o que é a União Soviética? É uma monarquia operária? Não é possível, é um monstro, é como um peixe com chifre”. Ele tem essa idéia de que a União Soviética virou um monstro inexplicável. Têm umas notas que ele toma sobre Brecht em que ele fala da polícia, que ele a compara com a Gestapo, são os mesmos métodos.
Mas, de alguma maneira, ele ainda tem esperança na União Soviética como força antifascista. Em 1938, a União Soviética, de Stalin, é uma ditadura autocrática com todos os seus terrores, mas é a única esperança que temos de resistir ao nazismo. Quando vem o pacto Molotov-Ribbentrop [o tratado de não-agressão firmado às vésperas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), entre a Alemanha nazista e a União Soviética], ele se dá conta que nem isso. Então, ele vê como traição e aí nas Teses sobre o conceito de história já aparece a ideia de que o stalinismo traiu a causa, não só a causa socialista, mas a antifascista.
Como era a relação dele com o Brecht?
Ele era muito amigo do Brecht, tinha muito entusiasmo por sua obra teatral, pela poesia, muita simpatia pelo materialismo de Brecht, mas guardava uma certa distância porque ele tinha outras referências, românticas, teológicas que o Brechtnão partilhava. Então uma parte do marxismo dele é brechtiano e outra parte não é. E os dois compartem essa atitude de ao mesmo tempo simpatia e distância em relação à União Soviética. O Benjamin com mais distância.
Nessas notas sobre Brecht, Benjamin diz que alguns dos poemas de Brecht dos anos de 1930 parecem que estão celebrando a polícia soviética. “Isso não dá, né?”, diz ele. Então, tem uma certa distância em relação a Brecht, mas os dois são muito próximos. E quando ele manda uma cópia das Teses sobre o conceito de história para o Brecht, este fica muito entusiasmado, só que ele descarta a teologia. Ele diz este texto é formidável, mas deixemos de lado esses aspectos teológicos judaicos que não tenho interesse.
Além do fragmento principal, o livro traz outros 16 ensaios. Quais são os de maior destaque?
É difícil. Cada um deles tem aspectos que eu acho muito interessantes. É difícil dar mais importância a uns do que a outros. Cada um deles tem uma contribuição específi ca e o conjunto forma um mosaico de crítica da civilização. Para dar um exemplo, há um texto que se chama As armas do futuro, que acho muito interessante. É um texto sobre a guerra química, os gases, e a ideia do Benjamin é de que a tecnologia e a ciência moderna a serviço do capitalismo tem conseqüências trágicas. É a tal dialética do progresso. A técnica e a ciência são portadoras do progresso por um lado, mas por outro são portadoras de destruição e do capitalismo.
As guerras do futuro, então, serão terríveis porque utilizarão as técnicas mais avançadas do capitalismo. E podem utilizar os gases de maneira a exterminar a população civil. Agora, ele que era o mais pessimista dos intelectuais de esquerda da Europa, mesmo ele não podia prever a bomba atômica, muito pior do que a guerra de gás. Mas ele teve essa intuição de que a ciência a serviço do capitalismo e das guerras imperialistas vai ter consequências terríveis. Foi praticamente o único intelectual na Europa a ter essa intuição.
Como foi a compilação? Partiu de sua pesquisa?
Sim, eu reuni esses textos – há uma edição francesa que é um pouco diferente – com dois critérios. Um, que era o de serem textos inéditos, na França e no Brasil, não todos, mas a grande maioria, e o segundo, esse fio condutor, que é a crítica à civilização capitalista, de inspiração romântica. Esse foi o critério que dá uma unidade ao conjunto. São textos muito diferentes, de épocas diferentes, alguns pré-marxistas, outros já marxistas, alguns têm a ver com literatura, com teologia, com política, enfim, temas muito diferentes, mas há um fio condutor. Eu não os descobri, eles já estão publicados [em outras línguas] nas Obras completas.
Como foi a relação de Benjamin com a Escola de Frankfurt?
É verdade que Horkheimer, que era professor na Escola de Frankfurt, foi um dos que rejeitaram a tese de habilitação deBenjamin que era um trabalho sobre o drama barroco alemão. Mas isso era numa época em que Horkheimer não conhecia pessoalmente Benjamin, também era um livro não-marxista, e Horkheimer a essa época já se interessava pelo marxismo. Enfim, houve esse episódio, mas a decisão principal não coube a Horkheimer, coube a outras pessoas. Mais tarde eles vão se tornar amigos e, de certa maneira, Benjamin faz parte dessa constelação que é a Escola de Frankfurt. Ele tem muitas coisas em comum com Adorno e Horkheimer.
Ele simpatizava com a Escola de Frankfurt e aqui eu publico um texto em que ele mostra como a Escola de Frankfurt é uma crítica radical do positivismo, tanto o burguês quanto o marxista. E o pessoal da Escola de Frankfurt, afinal, foi quem manteve ele em Paris com uma pequena bolsa, justo o suficiente pra ele não morrer de fome, mas graças a isso que ele pode sobreviver no exílio francês. Agora, eles pediam de vez em quando artigos para ele artigos para publicar naZeitschrift für Sozialforschung, revista para pesquisa social, que  era uma revista da Escola de Frankfurt, eles já nos Estados Unidos, exilados. Ele escreveu um texto sobre Baudelaire que o Adorno criticou e Benjamin teve que reescrever. Houve aí uma certa tensão entre eles, mas ao fi nal o texto foi publicado em nova versão. Há uma relação ao mesmo tempo tensionada, mas de proximidade. E por último o Adorno tentou convencer Benjamin a ir para os Estados Unidos, mas ele não queria, queria estar na Europa e acabou caindo na armadilha da ocupação nazista da França.
Esse índice onomástico foi construído pelo senhor?
Não. Isso foi o pessoal da editora.
É que eu achei interessante que, a despeito do livro tratar de religião, às personagens deste campo, ali, são concedidas as explicações mais sucintas. Tipo: “Cristo: personagem do Novo Testamento.” Ponto. Judas, Lutero, Moisés... cada um tem uma linha só (risos)...
Não assumo responsabilidade... (risos). Não sou responsável pelo índice. Mas suponho que os leitores sabem quem éCristo. Aliás, nem sei por que puseram. Quem é que no Brasil não sabe quem é Cristo. Se você encontrar uma pessoa que não conheça quem é Cristo, merece fazer uma tese.
 E as jornadas de junho? Como o senhor vê essa nova cultura política surgindo no Brasil, esse novo espírito de contestação... Ele vai numa direção mais benjaminiana, de uma contestação que passa pelo romantismo, mas em direção a algo novo?
Benjamin fala que o capitalismo nos leva à casa do desespero – e é muito justo. Mas acho que o que está acontecendo agora, não para todos, mas para uma parte da população, sobretudo a juventude – e não só no Brasil, isso é internacional –, o desespero está se transformando em raiva. E Benjamin tem uma frase nas Teses sobre o conceito de história em que ele diz “sem raiva não há luta de classe” – isso é muito verdadeiro. Então, o desespero se transforma em raiva e em indignação, isso é muito importante. Então, temos o movimento dos Indignados que atravessa toda Europa, vai pelos Estados Unidos, Occupy e aqui chega no Brasil.
O que acho de interessante nesse movimento, sobretudo nos jovens se mobilizarem, essa raiva, essa indignação contra a injustiça, que para alguns é uma compreensão já bastante avançada do que a injustiça tem a ver com o sistema, com o capitalismo, e outro uma visão mais difusa. Agora, concretamente, nas jornadas de junho no Brasil, eu acho que há esse fenômeno da indignação, da raiva. Acho que, no primeiro momento, esse movimento com o pessoal do Passe Livre teve uma inspiração radical, utópicorevolucionária, eu diria, libertária, extremamente positiva.
Positivo porque é negativo. Nesse primeiro momento, quando a inspiração vinha da turma do Passe Livre, do MPL, eu acho que foi extraordinário. Tinha um objetivo muito justo, que era protestar contra esse absurdo que era aumentar o preço das passagens, colocar uma reivindicação muito importante, que é a do passe livre, da gratuidade, do serviço público gratuito, além de ter um aspecto ecológico muito importante, que é favorecer o transporte público para reduzir a circulação de automóveis, então, acho que foi realmente formidável.
Depois, houve a repressão e as pessoas saíram às ruas indignadas com a repressão, muito importante, mas o negócio foi crescendo, crescendo e acabou se diluindo. Essa é a minha impressão. Acabou virando um grande movimento em que já não se sabia quem era o inimigo.
Aí vinha o negócio da construção dos estádios da FIFA, da corrupção e isso e aquilo, e depois apareceu uma turma de direita batendo em militante de esquerda porque vinham com bandeiras vermelhas. Acho que aí se diluiu a coisa, se perdeu um pouco aquele pique que tinha  no começo. Mas francamente, não posso avançar muito porque acompanhei de longe, ouço opinião de pessoas, mais variadas. Mas meu sentimento é este: um movimento que começou com uma orientação claramente radical, libertária, anticapitalista, nas suas expressões mais politizadas.
Ele iria nessa chave romântica revolucionária do Benjamin?
É difícil dizer. Talvez em algumas manifestações. Teríamos que estudar mais alguns documentos que saíram, talvez com o pessoal do Passe Livre... Não sei.
Para encerrar, gostaria que o senhor falasse da imagem mais conhecida de Benjamin, do “puxar o freio de mão”.
Benjamin, nas Teses, não faz críticas a Marx, salvo uma ou duas. Uma delas é a seguinte, ele diz que Marx achava que as revoluções são as locomotivas da história, mas talvez a coisa seja um pouco diferente. Talvez a revolução seja a humanidade puxando os freios para parar o trem.
Acho que Benjamin estava pensando na história que ele está vivendo que era a história de uma corrida para a catástrofe e a catástrofe era a Segunda Guerra mundial e ele diz: “Precisamos puxar o freio porque se não vai ser um desastre”. E o desastre veio: Auschwitz e Hiroshima. Benjamin dizia que o progresso até agora é uma sucessão de catástrofes, só que as duas maiores catástrofes da humanidade foram acontecer logo depois. Mas ele estava prevendo.
Hoje em dia a ameaça é a catástrofe ecológica, quer dizer, o trem da civilização capitalista está correndo com uma rapidez crescente para um abismo que se chama catástrofe ecológica. É o aquecimento global, é a mudança climática, que é um desastre de proporções inéditas na história da humanidade e, se deixarmos as coisas continuar, “business as usual”, não daqui a um século, mas de algumas dezenas de anos, vamos estar em uma situação terrível. Daí a atualidade da chamada de Benjamin: precisamos parar o trem suicida da civilização capitalista ocidental antes que seja tarde demais.
(Colaborou Aldo Gama)