Thursday 15 May 2014

O feminismo de esquerda e o liberal

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O feminismo de esquerda e o liberal

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Pagu, pioneira do feminismo brasileiro, era ligada ao Partido Comunista
História do movimento feminista mostra duas raízes: uma anticapitalista, outra meritocrática. Deveríamos opor uma a outra? Ou há objetivos comuns?
Por Marília Moschkovich
Talvez essa seja uma das perguntas que mais escuto, quando trabalho com pessoas que, embora estejam interessadas no movimento feminista, ainda estão começando a explorar o assunto. Talvez porque “esquerda” seja uma classificação que assuste muita gente(comunista! come criancinhas!); talvez porque uma das principais raízes do feminismo está, de fato, na esquerda. Embora a relação entre feminismo e esquerda seja às vezes um tanto conflituosa, ela existe. Apenas não necessariamente.
Costumo dizer que o feminismo tem duas raízes “primárias”, por assim dizer. Ambas vêm de meados a final do século XIX e início do século XX – até então, não havia um “movimento feminista” que reivindicasse coletivamente as mulheres como sujeito político com pautas específicas, apenas o que dizemos hoje serem “proto-feministas” (comoCleópatraHypatia, e intelectuais pioneiras como Mary Woolstonecraft).
Nos Estados Unidos, a Convenção dos Direitos da Mulher convocada em Sêneca Falls, em 1848, é considerada um dos marcos iniciais do movimento sufragista norte-americano. Na Inglaterra, em 1865, John Stuart Mill apresenta ao Parlamento um projeto de lei dando o voto às mulheres. No ano seguinte, funda-se em Manchester o Comitê para o Sufrágio Feminino.
Por uma série de motivos decorrentes da Guerra Fria, de uma briga ideológica e política sobre como contar essa história, da influência da academia anglófona nos estudos feministas nas últimas décadas, entre outros, a raiz do movimento feminista que se tornou mais conhecida é a das sufragistas (ou sufragettes) europeias-ocidentais e estadunidenses.
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Pouco se diz sobre o fato de que, ao mesmo tempo, dentro dos movimentos de trabalhadores que também se fortaleciam na época, nesses e em outros países, as mulheres se mobilizavam em prol da revolução socialista. A pauta feminista era colocada na perspectiva revolucionária de igualdade plena entre todos os cidadãos. Não à toa, diversos autores e autoras consagrados na esquerda refletiram sobre a condição das mulheres na história da Europa e na possibilidade do socialismo: Alexandra Kollontai, Rosa Luxemburgo, Engels, entre outros. É como se, havendo uma linha do tempo do feminismo, ela se bifurcasse criando duas tradições. Uma mais ligada aos EUA e à Europa capitalista, e outra ligada à tradição socialista.
As sufragistas nos países capitalistas eram mulheres brancas, burguesas, que procuravam ultrapassar a barreira do gênero dentro de um grupo específico e elitizado em que homens já possuíam esse direito. Essa “tradição” feminista, herdeira das sufragistas, encontrou-se com a tradição socialista apenas na metade do século XX. De maneira um pouco simplificada, arrisco dizer que o cruzamento de ambas as tradições em meio à Guerra Fria desencadeou o que hoje chamamos de “segunda onda” do feminismo, cujo marco temporal são as décadas de 1960, 1970 e início dos anos 1980. Esta consistiu na expansão de pautas ligadas à política, aos direitos civis e na elaboração das primeiras teorias feministas. Essas características têm a ver com a entrada maciça de mulheres nas universidades europeias e estadunidenses, mas também com uma inserção maior do pensamento de esquerda nos países capitalistas.
No caso do Brasil e de outros países da América Latina, o feminismo já chega pelos grupos de esquerda. A feminista brasileira mais conhecida, Patrícia Galvão (Pagu), por exemplo, era ligada ao Partido Comunista. O movimento feminista e os movimentos de mulheres, em geral, no Brasil, foram fomentados nos espaços da esquerda comunista e socialista ao longo do século XX, e mantiveram uma relação estreita com a causa operária e dos trabalhadores. Isso não significa, porém, que todas as feministas sejam necessariamente de esquerda.
Com a abertura da economia e a força do neoliberalismo no final dos anos 1990, muitas mulheres que não defendem uma ruptura com o capitalismo começaram a acessar ideias feministas para construir pautas do que se pode chamar de um “feminismo liberal”. Em vez de reivindicar uma ruptura estrutural com o machismo e as estruturas de poder do capital, essas correntes procuram apenas garantir “condições igualitárias de competição” para indivíduos independentemente de seu gênero, uma vez que acreditam na meritocracia. As reivindicações vão sempre num sentido mais individual e menos coletivo, travando pequenas batalhas e obtendo conquistas pontuais para as mulheres em espaços geralmente elitizados de concentração de poder.
Nos EUA elas são muitas, mas um bom exemplo brasileiro de feminista liberal conservadora, ligada ao pensamento de direita, é a jornalista Miriam Leitão. O caso dela em geral deixa as pessoas um tanto confusas. Já vi caras e bocas quando as pessoas descobrem coisas interessantes que Leitão escreveu sobre as desigualdades entre homens e mulheres nos espaços do jornalismo mainstream, por exemplo.
Na nossa cabeça parece, à primeira vista, um tanto bizarro que uma feminista possa ser tão conservadora quanto a referida jornalista. Basta observar a história do movimento, porém, para compreender que não há novidade alguma na existência de feministas que se aproximam mais da direita do que da esquerda. Muitos grupos feministas, inclusive, rejeitam que sequer exista essa possibilidade, retirando o rótulo de “feminismo” da militância dessas mulheres.
Ao contrário disso, o que proponho é uma reflexão. Quanto mais informação temos sobre o movimento que cotidianamente nos dedicamos a construir, melhor podemos refletir sobre seus limites e as mudanças que precisamos fazer dentro dele. Negar que o feminismo tenha divergências tão fundamentais é apagar a possibilidade de disputarmos, dentro do próprio movimento, esse tipo de ideia. E é justamente isso que precisa ser feito.

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