Sunday 25 May 2014

Trilogia em folhetim: Os Condenados

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Trilogia em folhetim: Os Condenados

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“O gosto sufocante da vida invadira-lhe a boca, a garganta, as narinas. Entregara-se já a três homens diferentes.”
Por Oswald de Andrade
A partir de hoje, e ao longo dos próximos meses, Outras Palavras irá publicar semanalmente, dentro da série Oswald 60, “Os Condenados”.
O romance do escritor paulista virá no formato de folhetim, podendo o leitor conferir, já nesta semana, as primeiras sequências desse livro perturbador.
E acompanhará esta trilogia, composta das seguintes partes:
I – Alma
II – A estrela de Absinto
III – A Escada
Os Condenados começou a ser publicado em 1922, após a Semana de Arte Moderna. Na mesma época, ocorria o lançamento de Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade. Não é difícil intuir que ambas as obras, soam como uma espécie de coroamento daquele longo processo polêmico para a instauração do Modernismo entre nós.
Esperamos que essa iniciativa sirva como mais um convite a quem quiser procurar novas experiências oswaldianas. (Theotonio de Paiva, editor de “Oswald 60″)
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Alma


Expulsou Adão. E colocou ante o paraíso das delícias um Anjo com uma espada de fogo,
para que guardasse o caminho da árvore da vida.
Gênese. C. 3.

Os romances que compõem a trilogia Os Condenados não são divididos em capítulos. Para publicá-los em forma de folhetim, Outras Palavras seccionou-os arbitrariamente. Esta é a parte 1 do primeiro romance, Alma.
O VELHO e o cãozinho foram andando na sombra enjoada da tarde. Tinham passeado muito. Dobraram a esquina da Rua dos Clérigos. Os vizinhos saudavam-nos. Eram ambos antigos no bairro e na cidade.
*-*-*-*-*
Alma havia regressado naquele instante. Retirou a blusa, mostrando ao espelho do seu quarto guindado os alvos seios manchados de apertos.
Pensava: por que será que quando uma porta me machuca, me faz sofrer; quando bato a cabeça numa janela, choro de dor; e ele pode me cortar a navalha, não dói: é delicioso!
Mas lembrou-se da Odete, que estivera com Mauro no teatro, ele contara. E ficou dizendo sufocadamente no quarto:
– Canalha! Bandido! Miserável! Miserável!
Transformava-se numa desencantada revelação. Ela fora apenas, até ali, a criança fulva de olhos glaucos, pondo a silhueta destacada e a longa sombra nas corcovas áridas de Oblivion, ao sol, com Jorge, o primo de sorrisos sisudos; e depois da casa de louças fechada, a adolescente imprecisa, a netinha que preparava o banho morno do velho e fazia comer no melhor prato, na cozinha de terra, o cachorro peludo e antigo. Era agora, nos músculos de Mauro a extravasante mulher, deflagrada num embate de complicações e de rodeios.
Chegou-se à janela. Seriam cinco horas da tarde; o velho e o cão passeavam ainda. Olhou a rua e descobriu, parado à esquina, contrito sob o chapéu de palha, o telegrafista pálido que a amava. Não a vira decerto entrar. Se soubesse onde ela andara, o que fizera… Alma teve um arrepio incontido. Se contasse ao avô… Mas não: João do Carmo era um rapaz direito, incapaz dessas torpezas.
Ele já a percebera, decerto, no balcão. Pusera-se a caminhar, num passo medido.
Cumprimentou-a. Foi-se. Queria casar-se com ela, mas nunca ousara falar-lhe.
Pela rua, ia longe uma mulher de branco. Uma carroça passou, tilintando. A tarde descorava.
E lá vinha ele de novo! Um súbito nojo invencível tomou conta de Alma. Teve ímpeto de gritar-lhe do balcão que passasse uma vez só, que lhe deixasse ao menos a vontade de vê-lo.
Fechou num repelão a janela toda. E, no escuro, uma pancada fulminou-a: Mauro!
Caiu no leito.
A máscara alva cascateou um choro desigual, com altos e baixos de animalidade lasciva.
O seu leito pequenino, o confessionário entontecedor dos seus sonhos… Ali, no roçar dos travesseiros alvos, ela aprendera a embelezar a vida… Desmanchava as tranças vermelhas pelas fronhas, alimentando a voragem íntima. Xingava-o, rolando. Era uma tristeza, no entanto, que pedia mais, esse soluço de ternura divina que a inundava num fluido cálido. Chamava-o com as pernas. Era uma gata ruiva… E esticava-se retesada de sensações para adorá-lo. Vinha-lhe à cabeça uma tonteira gostosa e sentia as pancadas sublimes do seu amor… sim… não… sim… não…
Chegara a visioná-lo tanto, nessa louca ilusão do ser centuplicado, nas sombras benéficas do quarto, que o tinha perto afinal, vitoriosa escrava… sim… não…
Lá fora, na tarde despejada, João do Carmo, com um nó na alma, passava sempre encurtando as contramarchas.
E no desencontrado idílio, como um comentário da vida, ergueu-se, alongou-se pela rua e pelo céu, um pregão triste da cidade:
– Pi… nhão quente!
*-*-*-*-*
Na sala espaçosa, com mesas cheias e bolotas multicores de papel nos lustres anacrônicos, a desgraçada festa dos sem amor estrugia desde meia-noite.
Os enfeites ingênuos do teto eram um sarcasmo, para a rapariga canalha, vestida em vivo de gigolette, que dançava grudada ao seu par.
A orquestra, feita de um careca, de um mulato e de um artista, chorava no fundo de fumaça.
Um bêbedo maxixou num bolo, com duas mulheres seminuas.
Uma canção canalha levantou gritos. A um canto, trepando uns sobre os outros, para ver o papel pautado, fêmeas e meninos esgoelaram.
O dançarino, enroscado à mulher que espedaçava, provocou hurras histéricos.
Chamava-se Mauro Glade, e era filho confuso de confusos dramas da América.
Crescera à sombra espevitada de uma criada de servir, que dava o dinheiro do ordenado a um homem da vizinhança.
Tinha o pai, só o pai, de nome diferente, merceeiro do Braz, grosso e insensível como um cepo de açougue. E a vida por herança.
Investindo com unhas de atavismos piratas para os mundos coloridos dos dancings, fizera-se macho na meia-tinta embriagada dos prostíbulos. Nunca trabalhara meses a fio. E vestia-se bem.
Adunco, metálico, dançava nas ceias noturnas como um deus decaído. E bebia… acentuado o ríctus heróico que o marcava, e reforçando a épica sugestão canalha dos olhos pestanudos, que punham desfalecimentos no coração das asiladas dos bordéis.
*-*-*-*-*
João do Carmo aproximou-se, no sereno da noite, para receber a resposta de sua ousada carta. Continha a felicidade dentro do peito musculoso de nadador; segurava-a como um pássaro vivo.
Ela estava ali, pálida silhueta, esperando-o. Imobilizava pupilas verdes de veludo e cristal na moldura das grandes alvas súplices.
Ele continha a felicidade dentro do peito musculoso de nadador, segurava-a como um pássaro vivo.
Interpelou-a, entregando-se todo, passando-lhe pelas grades, numa oferenda física, os olhos e o peito que badalava.
Mas uma punhalada certa alcançou-lhe o coração confiante. O moleque Bastião entrou da rua.Ela dissera-lhe que tinha outro amor. Ficara conversando. Pareceu-lhe ver o cão achegar-se latindo. Pareceu-lhe vê-la ir para dentro.
Caminhou na direção do seu quarto. Recordava o diálogo. Ela dissera que preferia o outro porque ele a amava por vício. Ele gritara estranguladamente que não. Era do fundo do co-ração que a queria.
Acendeu a lâmpada elétrica. Sentia-se só no seu naufrágio. Sentara-se. Depois ergueu-se com um grito apenas sufocado. Andou. Repetiu com os punhos amarrados versos de Baudelaire.
Sentiu que qualquer coisa ria horrivelmente de si, da sua situação de telegrafista, do seu crédulo romance, dos seus grossos músculos inúteis.
Chegou-se à janela num confuso palavrório mental, onde havia muito destino, muita pesquisa do eterno coração das mulheres.
Encostou a cabeça à vidraça fria. E, da rua, subiu-lhe às têmporas, pelos ouvidos, uma vaia infinita de grilos.
Saiu. Pela avenida, sob os bicos de gás e as árvores espaçadas, ia declamando todos os versos altivos que sabia. Recitava Bouilhet:
Tu n’as jamais été, dans tes jours les plus rares
Qu’un banal instrument sous mon archet vainqueur,
Et, comme un air qui sonne au bois creux des guitares,
J’ai fait chanter mon rêve au vide de ton coeur.
Descia desencontradamente para a Ponte-Grande. Largá-la-ia. Revelara-se de uma perversão inacreditável.
Terrível, lancinante, gritava pela Avenida Tiradentes.
Chegou à ponte. Havia gente parada. O rio, grosso e noturno, rodava. E ele ficou chorando baixo, ao grande ar do parapeito, entre lampiões.
*-*-*-*-*
O velho Lucas, recolhido ante o oratório pequenino e sem vidro dos filhos falecidos, com santos nas paredes internas e uma corte de figuras celestes de diversos tamanhos, trazidos ainda do Amazonas, rezava por todas as madrugadas pálidas ou azuis. Nada queria da vida que lhe dera alguma coisa e lhe tirara mais do que lhe dera. Tinha o cão pequenino, a neta ruiva, o moleque. E sabia que Deus o esperava no fim da tarde vacilante dos seus dias.
*-*-*-*-*
Oh! Mas aqueles bigodes estragavam-lhe o rosto. E a vergonha daquilo tudo, sem lágrimas, sem palavras… A Odete!
Alma caminhava como uma pessoa ferida. Não via ninguém nas ruas populosas. Carregava um amargor de predestinada dentro do pequeno coração. O gosto sufocante da vida invadira-lhe a boca, a garganta, as narinas. Entregara-se já a três homens diferentes. E agora Mauro exigia que ela saísse de casa. Era decerto mesmo a tola, a estúpida, que ele dizia, aos berros e aos socos. Não podia deixar o velho avô assim. Depois que ele morresse, sim. Iria ao fim da terra, aos trambolhões cheios de lágrimas e com beijos às vezes. Uma deslumbrada loucura parava-lhe os olhos verdes no fundo das olheiras.
Passou por ela alguém. Era sublime a vida assim nos pulsos implacáveis de Mauro. Mais… mais… Como ele não sabia ter piedade… como era forte… como era único…
Alguém passou por ela. Tinha de sair, deixar tudo, a casa, o velho, o cãozinho com que brincava.
Desceu longamente a Rua Florêncio de Abreu. Chegou à Luz. Tomou a direção do sobrado, no beco terroso.
João do Carmo cumprimentara-a duas vezes sem ser visto. Seguia-a de longe.
*-*-*-*-*
Uma surpreendente confiança voltara-lhe naquela caminhada, com o seu amor na frente.
O moleque contara-lhe que o outro tinha deixado de passar por lá.
Devia procurá-la, afrontar uma situação definitiva. Alma era o apoio poético da sua desgarrada existência. Escrever-lhe-ia outra carta. Era verdade que o avô atrapalhava-lhes os planos. Não consentiria talvez no casamento. Decerto era o único estorvo da sua felicidade.
Na calma fosca da tarde, João do Carmo dirigiu-se para o clube álacre nas margens do Tietê. Ia nadar na glória dos seus músculos tesos. Havia de vencer a resistência do trêmulo velho, amigo do cão.
*-*-*-*-*
No entanto, às vezes, um enegrecimento baixava sobre aquela tonteira.
Se, ao menos, Mauro a amasse. Se encontrasse nele a correspondência dos exaltados sentidos.
Sabia que o adunco cáften a traía. Ao atravessarem agora o largo claro do Paissandu, no demorado ocaso azul, vira-o sorrir para uma sacada. Tivera ímpetos de gritar ali mesmo. Mas uma vergonha absurda, cheia da sua virgindade invencida, contivera-a, dissuadira-a. Seria possível então! Tudo no mundo era traição premeditada, engano maldoso!
Mesmo os santos, de pé, no esburacado oratório, não a defendiam. Ela queria só uma coisa, só um milagre – o amor de Mauro, a fidelidade de Mauro. Ou então, pelo menos, que ele não lhe jogasse ao rosto a sua facilidade de conquistas, o seu deboche insolente.
Sonhava de novo no leito, depois do jantar rápido, enfastiado, rolando a vermelha cabeça nos travesseiros moles. Qual… se ele lhe quisesse bem seria por um instante, enquanto durasse a sua mocidade rendosa. Depois, ela ficaria como essas outras, que aprendera a conhecer na casa de D. Rosaura. Não havia mesmo nada de bom na vida.
*-*-*-*-*
O remédio estava no champagne loiro, fervendo às palitadas nas taças cristalinas e largas do rendez-vous.
A existência era isso: uma torturada quermesse… Barracas ao vento, bandeiras, muitas bandeiras e a charanga do fonógrafo de goela monstruosa na sala escura, encerada e vasta, ou o som do piano… Dançar… como ele a enlaçava, o seu querido, o seu macho recurvo de olhos de platina! Queria um beijo, um beijo só e ele lhe negava… Do fundo do seu ser maravilhado, bendizia-o pela recusa. Era preciso subir, galgar, vencer obstáculos intransponíveis para que ele lhe concedesse o beijo suplicado.
*-*-*-*-*
Decidiram nervosamente. Saíram, num táxi.
Na Luz, ela teve um fatalizado receio. O avô talvez já estivesse em casa. Que importava? Reagia um pouco na suave bebedeira que a tomara. Ia fugir, deixar para sempre o velho, o moleque, o cãozinho. Teve um sorriso cruel.
Pararam longe, à esquina. Mauro ficou esperando-a sem dizer nada, no fundo de couro.
Ela penetrou. O relógio antigo marcou a hora em seis badaladas metálicas, regulares, intérminas. Ela trazia consigo uma triste tenacidade. Num susto, esvaziou as gavetas da cômoda antiga, tirou duas blusas, duas camisas de dormir e as lembranças comprometedoras de Mauro, um vidro quase vazio de perfume, um baton e o rouge.
Estacou. Ouvira ao seu lado, no outro quarto, passadas vacilantes. Se ele viesse interrogá-la! Se ele abrisse a porta de repente!
Estava toda gelada. Mas o velho sentara-se de novo.
Viu Mauro lá fora, esperando-a. Não tinha tempo de se comover, de dizer adeus aos antigos móveis… Amarrotou tudo num embrulho, desceu cautelosa.
E abalou para o táxi, fazendo que não enxergava a vizinhança.
*-*-*-*-*
O telegrafista morava sem ninguém, num quarto de sobrado antigo, na Avenida Tiradentes. Para entrar, subia por corredores com degraus, atravessava um cubículo que atulhavam imensas malas etiquetadas de um vizinho. O quarto tinha a cama estreita, a mesa, livros e cadeiras e uma só janela, clareando o papel desbotado das paredes.
Sobre o leito, pendia uma gravura destacada de livro. Era Charles Baudelaire. Tinha um velho retrato da mãe morta, sobre a mesa desordenada.
Pairava sobre os seus dias o sonho de uma vida tranqüila com Alma, sob a guarda dos antigos deuses tutelares, numa estação ferroviária minúscula. Premeditava o acesso na sua carreira longa e honesta. Levando o sonho fulvo pelo braço musculoso, deixaria São Paulo, os baf-baf das manobras enfumaçadas na gare magnífica, a solidão literária e o esporte no rio.
A família perdera-a em Pernambuco: uma irmã louca num hospício, um irmão padre. Depois da infância livre, tivera uma educação confusa num colégio francês.
Chegara a São Paulo numa noite de garoa. Desembarcara querendo deslumbrar-se e fora por uma rua de casas baixas e torpes, sob arcos de viaduto, até o centro enladeirado, buscando um hotel.
Um político do Norte, devedor de favores antigos ao tronco extinto, recomendava-o bem. Foi posto no telégrafo da Estação da Luz. Ganhou logo a confiança amável do chefe, porque, entrando de chapéu certa vez, tinha sido repreendido por um impertinente e estapeara-o.
Começou a nadar no Tietê, lembrando-se da meninice no Recife.
No emprego, considerava-se um só, em meio daqueles inexpressivos burgueses de mocidade extinta, sem banhos ao ar livre, sem namoros sonoros.
Perambulava confusamente por estéticas e religiões. Compunha versos e tinha receio de mostrá-los. Uma noite, conhecera, apresentado por um estudante de farmácia, três latagões que fariam parte berrante da jovem literatura cosmopolita da cidade. Atravessaram noites nos cafés, aborrecendo os garçons sonolentos e lendo. Aplaudiam-se incondicionalmente, despedindo-se na madrugada de tilburies e bêbedos.
Agora, o romance fulvo da Rua dos Clérigos absorvera-o. As vezes, insone e trágico, saía do plantão numa urgência de repercussões. Montava à penumbra confidencial de uma água-furtada da Rua das Flores, onde Frederico Carlos Lobão, anafado e lírico, o esperava. Expandia-se depois de uma mudez de alto propósito. O outro, sem compreender, ajudava-o numa longa e inútil peregrinação mental pela psicologia errada das mulheres e das coisas. No quarto abafado de morrinhas, construíam e destroçavam o mundo à vontade.
Voltava mais sereno para o seu bairro, sonhando. Dormia pelo dia adentro, ia nadar nas tardes amarelas sobre o rio túmido das enchentes.
E na gare acesa, ao tlin-tlin-toc-toc do ganha-pão, perscrutava inütilmente a janelinha de grades verticais, doiradas, onde vira pela primeira vez passar Alma d’Alvelos. Tinham-lhe dito que estava doente, não a encontrara mais, fazia já três dias.
A noite escoava-se no bocejo ruidoso dos outros e no passear intérmino do guarda da plataforma. Ele, por uma superstição sobressaltada ficava vigiando sempre, um olho no teclado, outro lá fora onde ela poderia passar.
*-*-*-*-*
O abandono da casa pela neta, a ausência inexplicada ao jantar, a demora em não voltar até dez, onze horas, com o tica-tac apreensivo do relógio na antiga varanda, tudo ergueu pouco a pouco o velho Lucas num desmemoriado esforço.
Ele nunca pressentira, no crocitar do homem curvo que a cozinheira denunciara, a sedução da sua criança.
A netinha ruiva era o resto de tudo o que perdera. Se o deixasse, ninguém mais o tratava, ninguém mais lhe preparava o banho morno. Mas saberia buscá-la. Ainda tinha relações que não frequentava, havia quantos anos. Mas voltaria, iria de um a um, dobrar os seus cansados joelhos… Procuraria, logo que amanhecesse, o capitão Marcelino, o Dr. Carlos Ribeiro, o velho Mascarenhas que era da polícia.
Contaria tudo. Não haviam de deixar tirar uma menina honesta da casa de seu avô. Decerto, prenderiam o miserável.
O cão sonhava a um canto. Pareceu-lhe ouvir passos. Foi ver. O antigo coração atropelou-se. Não era ninguém. Sentia agora chamar na noite. Vieram-lhe duas lágrimas aos olhos secos. Onde estaria?
Esperou o dia pardo. Fumara dois maços de cigarros. Sentia-se todo trêmulo. Parecia-lhe que tinha morrido gente na casa.
Resolveu escrever uma longa carta ao outro neto. Jorge d’Alvelos, que estudava na Europa, na cidade de Roma. Não encontrou papel. Erguera-se com câimbras finas nas canelas de esqueleto.
Andava num grande paletó, remendado por ela. Ouviu um barulho. Outro. O moleque levantara-se. Enrolou-se depressa no cobertor vermelho e rasgado, para não contar a ninguém que a neta fugira.
*-*-*-*-*
O cachorro pequenino, eriçado de pêlos sujos, foi, num tique-taque matinal, saudar a patroazinha no quarto vazio.
*-*-*-*-*
Mauro juntou a vassoura rubra dos cabelos, na sombra do quarto despovoado, naquele deserto da Penha. E lá fora, passava um tilintar de chocalhos regulares. Alma gritou:
– Perdão! Perdão!
Atirada pela mão direita que a estraçalhava, ao solo duro, caiu e ficou esperando a morte que caminhava decerto naquele ermo indefeso.
Ele ficou rodando pelos quartos nus, cheios de frinchas. E ela tinha a vista num só ponto – olhava a revelação pasmosa da vida.
Num corte de ouro sobre o negro assoalho antigo, feito pela abertura de um dedo da janela, subia a poeira da casa revolvida. E nas soleiras, nos buracos de rato das portas, andavam manchas quentes de luz.
Ela esperava, justificando-se baixinho. O homem de Campinas enganara a própria D. Rosaura. Dissera-lhe que havia esquecido a carteira no hotel, dera-lhe um cartão. Diria isso tudo a Mauro, mostraria o cartão. Ele havia de compreender. Talvez consentisse que ela o beijasse de novo. Levantou-se. Estava moída dos trambolhões. Chegou mansamente à porta. Ele rabiscava qualquer coisa com um lápis, à mesinha da sala. Foi indo. Ele a pressentia sem se mover, decerto aceitava-a de novo… Foi, quis enlaçá-lo. Mas ele preparara-lhe a bofetada sonora. Preparara…
Tinha recuado, convulsa. Fora um golpe teso no coração, um abalo geral de todos os nervos, de todas as revoltas, de todas as maldições… E as lágrimas pularam, pularam…
Teve vontade de trepar pelas paredes de cal. Mas o corpo amoleceu-lhe nas escoras inúteis dos músculos, a cabeça tonteou-lhe.
Fora voltando. Parara na cozinha – negra das antigas existências calmas da casa de aluguel. Uma fita de dez cores passou pela telha-vã, bandou-lhe os olhos.
Estatelou-se voluntariamente nos tijolos frios, ficou ali… Sentia uma dor sem raiva, no entanto. Teve ânsias de vomitar: um soluço seco escancarou-lhe a boca de repente. Se ele viesse vê-la!
O pensamento tímido levantava-se-lhe em frases: – Que coragem! Eu morrendo aqui! Não tem um pingo de caridade…
Contorceu-se de novo, num outro vômito sem resultado. Ficou tossindo, descabelada, partidas as cordas todas do ser soluçante.
Baixou a ruiva cabeleira até o chão sujo e quebrado e a auréola de luz multicor irisou-a.
Havia de constipar-se, entisicar… Os tijolos ásperos horrorizavam-na. Pensou em ir para a cama… Não… Sim, devia ir… Podia fazer-lhe mal aquilo. Adoeceria de verdade, ali, naquela casa abandonada.
Fez do braço um travesseiro humilde… Que adiantava adoecer?
Um barulho levantara-se. Mauro andava lá dentro. Um arrepio começou-lhe no ventre, subiu. Foi perdendo a energia inteira. Até a força dos olhos glaucos caiu… Estava sem saliva… e doía-lhe o coração de vinte anos.
Ele continuava a andar, a mexer nos móveis alugados… não iria decerto… Bom! Lindo! Em meio das lágrimas, um irreprimível sorriso confessou-se… Cão! Mesmo assim, queria-o tanto!
Ia sair, ia sim, deixá-la… Andava no tom decidido dos sapatos americanos… ia… Uma calma de novo na casa sonora. .. um arrastar de cadeira… ia… um arrepio…
Não ia… estava se demorando… que fosse! Não… se tivesse escutado!
Calma de novo… Ia… pressentiu que ia mesmo… Esticou-se toda de braços, querendo alongar-se como uma cobra até a rua… Tapou os ouvidos depressa e escutou perfeitamente, implacavelmente, o barulho estalado da porta fechando-se.
*-*-*-*-*
Lá fora, sempre o tilintar de chocalhos regulares. Cacarejos. A tarde caíra. Haviam passado, de há muito, as ânsias de vômito. O leito acolhia-a carinhoso, na penumbra nua do quarto.
E, calma, grande, desceu como uma sombra de nuvem num ocaso lilás, a saudade dele.
*-*-*-*-*
– Vamos ao café, deixemos de falar do eterno feminino.
– A mulher é ainda e sempre a garantia da vida, sussurrou um magro, grisalho, de olhos verdes.
O velho baixo, de bigodes de chim, concordou num som roufenho:
– É o único amparo! o único!
– Menos para o artista, menos para nós os artistas! gritou de dentro de sua encardida mágoa o gordo Frederico Carlos Lobão.
Incompreendido e gesticulante, introduzira-se para tomar o café das três até junto da banqueta serena de João do Carmo. E na sala do telégrafo, o toc-toc-toc de cem vozes anônimas e dispersas falou, enquanto o servente negro enchia as xícaras da bandeja.
*-*-*-*-*
Lobão contara-lhe, fazendo psicologia errada, que Mauro Glade a tinha deflorado. Descobrira.
E o telegrafista pretextara um serviço extraordinário para ficar dizendo na noite, sozinho, o nome sonoro do seu humilhado amor.
Depois, subitamente pensou que podia ser mentira, que devia ser mentira. Quis procurar de novo o confidente imprevisto e teve pavor de saber mais
Invadiu-o um definitivo estado de desastre. Dizia cheio de lógica: coração de mulher, coração de rameira!
E rememorou longamente á única vez em que conseguira vê-la depois da carta. Fora ainda no portão. Era verdade que ela lhe falara ainda do outro, dissera que o amava. E ele tinha partido num ímpeto de jogar cenas de dramalhão moderno como vira por teatros. Fora para o quarto com catadupas sonoras nos ouvidos e não dormira.
Agora, Lobão vinha dizer-lhe aquilo, brutal e guloso de desastres, sem contemplação, sem piedade. Tinha sido deflorada num rendez-vous.
Se fosse mentira, esborrachar-lhe-ia a cava empapuçada e cínica. Andava numa sufocação indizível. A suspeita enlouquecedora tomara-lhe conta do espírito inteiro, do corpo inteiro.
Caminhara horas e horas, desde a saída do emprego.
Foi para a cidade à meia-noite. Entrou no centro numa psicologia de préstito.
Gente saía aos magotes dos teatros. Parecia-lhe que todos o olhavam como se olha uma solene passeata de desgraças, com cruz na frente e processionais tocheiros
O centro esvaziou-se, com os últimos bondes assaltados pelos últimos retardatários.
Ia sem direção, andando, os olhos presos inconscientemente nas luzes iguais das ruas.
Uma sola de botina envelhecida despregou-se, fez-lhe o acompanhamento trôpego da marcha.
Sentia os olhos pregados nas pestanas duras, a boca num repuxamento grave de músculos. Tinha sido deflorada, ela… o seu fulvo sonho de amor.
Desceu por uma triste alameda, arrastando a sola irônica. Um som de piano fê-lo estacar. Havia uma grande casa iluminada, entre árvores que ramalhavam. Na rua, junto a ele, varredores varriam folhas mortas, como destinos.
Na sala vazia, o piano ressoava. Ele prosseguiu, profundamente atingido no seu profundo ser. Passou ao bairro longínquo. Teve um gesto na direção do beco, onde o seu amor talvez dormisse sem honra e sem sossego.
E ao subir as escadas, tatcante na sombra, para o quarto desbotado onde vivia, molhou de lágrimas os olhos, que tinha exageradamente abertos.
(Continua na próxima semana.)

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