Saturday, 10 May 2014

A Revolução cidadã tem quem a defenda?

adital
carta maior
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A Revolução cidadã tem quem a defenda?

Boaventura de Sousa Santos
Adital

Será que Correa ainda pode resgatar a oportunidade de realizar a revolução cidadã que se propôs? Penso que sim, mas a margem de manobra é cada vez menor.
Os intelectuais da América Latina, entre os quais me considero por adoção, têm cometido dois tipos de erros nas suas análises dos processos políticos dos últimos cem anos, sobretudo quando eles contêm elementos novos sejam eles, ideais de desenvolvimento, alianças para construir o bloco hegemônico, instituições, formas de luta, estilos de fazer política. Claro que os intelectuais de direita têm igualmente cometido muitos erros, mas deles não cuido aqui. O primeiro erro tem consistido em não fazer um esforço sério para compreender os processos políticos de esquerda que não cabem facilmente nas teorias marxistas e não marxistas herdadas. As reações iniciais à revolução cubana são um bom exemplo desse tipo de erro. O segundo tipo de erro tem consistido em silenciar, por complacência ou temor de favorecer a direita, as críticas aos erros, desvios e até perversões por que têm passado esses processos, perdendo assim a oportunidade para transformar a solidariedade crítica em instrumento de luta.
Desde 1998, com a chegada de Hugo Chávez ao poder, a esquerda latino-americana tem vivido o mais brilhante período da sua história e talvez um dos mais brilhantes de toda a esquerda mundial. Obviamente não podemos esquecer os tempos iniciais das revoluções russa, chinesa e cubana nem os êxitos da social democracia europeia no pós-guerra. Mas os governos progressistas dos últimos quinze anos são particularmente notáveis por várias razões: ocorrem num momento de grande expansão do capitalismo neoliberal ferozmente hostil a projetos nacionais divergentes dele; são internamente muito distintos, dando conta de uma diversidade da esquerda até então não conhecida; nascem de processos democráticos com elevada participação popular, quer institucional, quer não-institucional; não exigem sacrifícios às maiorias no presente em nome de um futuro glorioso, mas tentam pelo contrário transformar o presente dos que nunca tiveram acesso a um futuro melhor.
Escrevo este texto muito consciente da existência dos erros acima referidos e sem saber se terei êxito em evitá-los. Para mais, debruço-me sobre o caso mais complexo de todos os que constituem o novo período da esquerda latino-americana. Refiro-me aos governos de Rafael Correa no poder no Equador desde 2006. Alguns pontos de partida. Primeiro, pode discutir-se se os governos de Correa são de esquerda ou de centro-esquerda, mas parece-me absurdo considerá-los de direita, como pretendem alguns dos seus opositores de esquerda.
Dada a polarização instalada, penso que estes últimos só reconhecerão que Correa era afinal de esquerda ou de centro-esquerda nos meses (ou dias) seguintes à eventual eleição de um governo de direita. Segundo, é largamente partilhada a opinião de que Correa tem sido, "apesar de tudo", o melhor presidente que o Equador teve nas últimas décadas e aquele que garantiu mais estabilidade política depois de muitos anos de caos. Terceiro, não cabe dúvida de que Correa tem vindo a realizar a maior redistribuição de rendimentos da história do Equador, contribuindo para a redução da pobreza e o reforço das classes médias. Nunca tantos filhos das classes trabalhadoras chegaram à universidade. Porque é que tudo isto, que é muito, não é suficiente para dar tranquilidade ao "oficialismo" de que o projeto da Correa, com ele ou sem ele, prosseguirá depois de 2017 (próximas eleições presidenciais)?
Apesar de o Equador ter vivido no passado alguns momentos de modernização, Correa é o grande modernizador do capitalismo equatoriano. Pela sua vastidão e ambição, o programa de Correa tem algumas semelhanças com o de Kemal Ataturk na Turquia das primeiras década do século XX. E a ambos preside o nacionalismo, o populismo e o estatismo. O programa de Correa assenta em três ideias principais. Primeiro, a centralidade do Estado como condutor do processo de modernização e, ligada a ela, a ideia de soberania nacional, o anti-imperalismo contra os EUA (encerramento da base militar de Manta; expulsão de pessoal militar da embaixada do EUA; luta agressiva contra a Chevron e a destruição ambiental que ela causou na Amazônia) e a necessidade de melhorar a eficiência dos serviços públicos.
Segundo, "sem prejudicar os ricos", ou seja, sem alterar o modelo de acumulação capitalista, gerar com urgência recursos que permitam realizar politicas sociais (compensatórias, no caso da redistribuição de rendimento, e, potencialmente universais, no caso da saúde, educação e segurança social) e construir infraestruturas (estradas, portos, eletricidade) de modo a tornar a sociedade mais moderna e equitativa. Terceiro, por ser ainda subdesenvolvida, a sociedade não está preparada para altos níveis de participação democrática e de cidadania ativa e, por isso, estas podem ser disfuncionais para o ritmo e a eficiência das políticas em curso. Para que tal não aconteça há que investir muito em educação e desenvolvimento. Até lá, o melhor cidadão é o cidadão que confia no Estado por este saber melhor que ele ou ela qual é o seu verdadeiro interesse.
Este vasto programa colide ou não com a Constituição de 2008, considerada uma das mais progressistas e revolucionárias da América Latina? Vejamos. A Constituição aponta para um modelo alternativo de desenvolvimento (senão mesmo para uma alternativa ao desenvolvimento) assente na ideia do buen vivir, uma ideia tão nova que só pode ser adequadamente formulada numa língua não colonial, o kishwa: Sumak Kawsay. Esta ideia tem um riquíssimo desdobramento: a natureza como um ser vivo e, portanto, limitado, sujeito e objeto de cuidado, e nunca como um recurso natural inesgotável (os direitos da natureza); economia e sociedade intensamente pluralistas orientadas pela reciprocidade e solidariedade, interculturalidade, plurinacionalidade; Estado e política altamente participativos, envolvendo diferentes formas de exercício democrático e de controle cidadão do Estado.
Para Correa (quase) tudo isto é importante mas é um objetivo de longo prazo. A curto prazo e urgentemente é preciso criar riqueza para redistribuir rendimento, realizar políticas sociais e infraestruturas essenciais ao desenvolvimento do país. A política tem de assumir um carácter sacrificial, pondo de lá o que mais preza para que um dia este possa ser resgatado. Assim, é necessário intensificar a exploração de recursos naturais (mineração, petróleo, a agricultura industrial) antes que seja possível depender menos deles. Para tal é necessário levar a cabo uma agressiva reforma da educação superior e uma vasta revolução científica assente na biotecnologia e na nanotecnologia de modo a criar uma economia de conhecimento à medida da riqueza de biodiversidade do país. Tudo isto só dará frutos ( que se têm como certos) daqui a muitos anos.
À luz disto, o Parque Nacional Yasuni, talvez o mais rico em biodiversidade do mundo, tem de ser sacrificado e a exploração petrolífera realizada apesar das promessas iniciais de não o fazer, não só porque a comunidade internacional não colaborou na proposta de não-exploração, como sobretudo porque os rendimentos previstos decorrentes da exploração estão já vinculados aos investimentos em curso e o seu financiamento por países estrangeiros (China) tem como garantia a exploração do petróleo. Nesta linha, os povos indígenas que se têm oposto à exploração são vistos como obstáculos ao desenvolvimento, vítimas da manipulação de dirigentes corruptos, políticos oportunistas, ONGs ao serviço do imperialismo ou jovens ecologistas de classe média, eles próprios manipulados ou simplesmente inconsequentes.
A eficiência exigida para realizar tão vasto processo de modernização não pode ser comprometida pelo dissenso democrático. A participação cidadã é de saudar mas só se for funcional e isso, por agora, só pode ser garantido se receber uma orientação superior do Estado, ou seja, do governo. Com razão, Correa sente-se vítima dos média que, como acontece em outros países do continente, estão ao serviço do capital e da direita. Tenta regular os meios de comunicação e a regulação proposta tem aspetos muito positivos mas ao mesmo tempo tensiona a corda e polariza as posições de tal maneira que daí à demonização da política em geral vai um passo curto. Jornalistas são intimidados, ativistas de movimentos sociais (alguns com larga tradição no país) são acusados de terrorismo e a consequente criminalização do protesto social parece cada vez mais agressiva. O risco de transformar adversários políticos, com quem se discute, em inimigos que é necessário eliminar, é grande. Nestas condições, o melhor exercício democrático é o que permite o contacto direto de Correa com o povo, uma democracia plebiscitária de tipo novo. À semelhança de Chavez, Correa é um brilhante comunicador e as suas "sabatinas" semanais são um exercício político de grande complexidade. O contacto direto com os cidadãos não visa que estes participem das decisões mas antes que as ratifiquem por via de uma socialização sedutora desprovida de contraditório.
Com razão, Correa considera que as instituições do Estado nunca foram social ou politicamente neutras, mas não é capaz de distinguir entre neutralidade e objetividade assente em procedimentos. Pelo contrário, acha que as instituições do Estado se devem envolver ativamente nas politicas do governo. Por isso, é natural que o sistema judicial seja demonizado se toma alguma decisão considerada hostil ao governo e celebrado, como independente, no caso contrário; que o Tribunal Constitucional se abstenha de decidir temas polémicos (casos La Cocha sobre a justiça indígena) se as decisões puderem prejudicar o que se julga ser o superior interesse do Estado; que um dirigente do Conselho Nacional Eleitoral, encarregado de verificar as assinaturas para uma consulta popular sobre a não-exploração do petróleo no Yasuni, promovida pelo movimento Yasunidos, se pronuncie publicamente contra a consulta antes de a verificação ser feita. A erosão das instituições, que é típica do populismo, é perigosa sobretudo quando à partida elas já não são fortes devido aos privilégios oligárquicos de sempre. É que quando o líder carismático sai de cena (como aconteceu tragicamente com Hugo Chavez) o vazio político atinge proporções incontroláveis devido à falta de mediações institucionais.
E isto é tanto mais trágico quanto é certo que Correa vê o seu papel histórico como o de construção do Estado-nação. Em tempos de neoliberalismo global, o objetivo é importante e mesmo decisivo. Escapa-lhe, no entanto, a possibilidade de esse novo Estado-nação ser institucionalmente muito diferente do modelo do Estado colonial ou do Estado criolo e mestizo que lhe sucedeu. Por isso, a reivindicação indígena da plurinacionalidade, em vez de ser manejada com o cuidado que a Constituição recomenda, é demonizada como perigo para a unidade (isto é, a centralidade) do Estado. Em vez de diálogos criativos entre a nação cívica, que é consensualmente a pátria de todos, e as nações étnico-culturais, que exigem respeito pela diferença e relativa autonomia, fragmenta-se o tecido social, centrando-o mais nos direitos individuais do que nos coletivos. Os indígenas são cidadãos ativos em construção mas as organizações indígenas independentes são corporativas e hostis ao processo. A sociedade civil é boa desde que não-organizada. Uma insidiosa presença neoliberal no interior do pós-neoliberalismo?
Trata-se, pois, do capitalismo do século XXI. Falar de socialismo do século XXI é, por enquanto e no melhor dos casos, um objetivo longínquo. À luz destas características e das contradições dinâmicas que o processo dirigido por Correa contém, centro-esquerda é talvez a melhor maneira de o definir politicamente.
Talvez o problema esteja menos no Governo do que no capitalismo que ele promove. Contraditoriamente, parece compor uma versão pós-neoliberal do neoliberalismo. Cada remodelação ministerial tem produzido o reforço das elites empresariais ligadas à direita. Será que o destino inexorável do centro-esquerda é deslizar lentamente para a direita, tal como sucedeu com a social-democracia europeia? Seria uma tragédia para o país e o continente se tal ocorresse. Correa criou uma mega-expectativa mas perversamente o modo como pretende que ela não se transforme numa mega-frustração corre o risco de afastar de si os cidadãos, como ficou demonstrado nas eleições locais de 23 de fevereiro de 2014, um forte revés para o movimento Alianza País que o apoia. Custa a acreditar que o pior inimigo de Correa seja o próprio Correa. Ao pensar que tem de defender a revolução cidadã de cidadãos pouco esclarecidos, mal intencionados, infantis, ignorantes, facilmente manipuláveis por politiqueiros oportunistas ou por inimigos oriundos da direita, Correa corre o risco de querer fazer a revolução cidadã sem cidadãos ou, o que é o mesmo, com cidadãos submissos. Ora os cidadãos submissos não lutam por aquilo a que têm direito, apenas aceitam o que lhes é dado.
Será que Correa ainda pode resgatar a grande oportunidade histórica de realizar a revolução cidadã que se propôs? Penso que sim, mas a margem de manobra é cada vez menor e os verdadeiros inimigos da revolução cidadã parecem estar, não cada vez mais longe do Presidente, mas antes cada vez mais próximos. Solidários com a revolução cidadã todos nós devemos contribuir para que tal não se concretize.
Para isso, identifico três tarefas básicas. Primeiro,há que democratizar a própria democracia, combinando democracia representativa com verdadeira democracia participativa. A democracia que é construída apenas a partir de cima corre sempre o risco de se transformar em autoritarismo em relação aos de baixo. Por muito que custe a Correa, terá de sentir suficiente confiança em si para, em vez de criminalizar o dissenso (sempre fácil para quem tem o poder), dialogar com os movimentos e as organizações sociais e com os jovens yasunidos, mesmo se os considerar "ecologistas infantis". Os jovens são os aliados naturais da revolução cidadã e da reforma do ensino superior e da política científica se esta for levada a cabo com sensatez. Alienar os jovens parece suicídio político.
Segundo, há que desmercantilizar a vida social, não só através de política sociais, como através da promoção das economias não-capitalistas, camponesas, indígenas, urbanas, associativas. Não é certamente consonante com o buen vivir entregar bonos às classes populares para que elas se envenenem com a comida-lixo (comida-basura) do fast-food que inunda os centros comerciais. A transição para o pós-extrativismo faz-se com algum pós-extrativismo e não com a intensificação do extrativismo. O capitalismo entregue a si mesmo só transita para mais capitalismo, por mais trágicas que sejam as consequências.
Terceiro, há que compatibilizar a eficiência dos serviços públicos com a sua democratização e descolonização. Numa sociedade tão heterogénea quanto a equatoriana há que reconhecer que o Estado, para ser legítimo e eficaz, tem ele próprio de ser um Estado heterogéneo, convivendo com a interculturalidade e, gradualmente, com a própria plurinacionalidade, sempre no marco da unidade do Estado garantida pela Constituição. A pátria é de todos mas não tem de ser de todos da mesma maneira. As sociedades que foram colonizadas ainda hoje estão divididas entre dois grupos de populações: os que não podem esquecer e os que não querem lembrar. Os que não podem esquecer são aqueles que tiveram de construir como sua a pátria que começou por lhes ser imposta por estrangeiros; os que não querem lembrar são aqueles a quem custa reconhecer que a pátria de todos tem, nas suas raízes, uma injustiça histórica que está longe de ser eliminada e que é tarefa de todos eliminar gradualmente.
[Boaventura de Sousa Santos é colunista da Carta Maior]

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