Tuesday, 4 November 2014

A bandeira da Festa do Senhor Menino – a força da coletividade

A bandeira da Festa do Senhor Menino – a força da coletividade
Relatório de Pesquisa em São Pedro de Joselândia
Lucia Shiguemi Izawa Kawahara
Período: 29/10 a 02/11/2014

O Pantanal vestido de verde recém-brotado cintilava vida e alegria, dando-nos boas vindas em sintonia com o processo de enchente que se iniciou em outubro. A energia contagiante da aproximação do tempo das chuvas  parecia fortalecer os moradores a preparar a terra para o plantio da roça.
Como diz o Sr. Paulo Silva, agricultor de São Pedro de Joselândia:  “é a hora de garantir o ano que vem!”.

Figura 1 Boas vindas do verde molhado em São Pedro de Joselândia
FOTO – Lucia Kawahara

São Pedro de Joselândia é um pequeno distrito de Barão de Melgaço - MT, localizado a 180 quilômetros de distância da capital mato-grossense, formada por um complexo de sete comunidades: São Pedro; Mocambo; Pimenteira; Retiro São Bento; colônia Santa Isabel; Capoeirinha e Lagoa do Algodão com uma população de aproximadamente 2.562 habitantes[1], cercada pelas águas dos rios Cuiabá e São Lourenço.
Além da roça, São Pedro de Joselândia estava preparando também a Festa do Senhor Menino Deus com a saída da bandeira pelos domicílios para arrecadar a esmola que proverá a celebração do dia 24/25 de dezembro.

Figura 2 A bandeira do Senhor Menino em um dos domicílios
FOTO  - Giseli Nora
Segundo os números de uma pesquisa realizada pelo GPEA em 2012[2], a maioria de seus moradores é católica:
Tabela 1 Religião dos Entrevistados em São Pedro de Joselândia
Igreja
%
Católica
86,15
Evangélicos (outras denominações)
6,15
Assembleia de Deus
3,08
Adventista
1,54
Congregação Cristã
1,54
Não tem uma específica
1,54
Fonte: Pesquisa do GPEA realizada em Março de 2012

Os moradores das longínquas terras de São Pedro de Joselândia sustentam devoção, gratidão e fé nos santos que salvaram e salvam seus familiares. A falta de estruturas de saúde, transporte e segurança, além da enorme distância da capital ou das cidades com melhores infraestruturas, marca profundamente o modo de vida de sua comunidade. Um dos costumes locais é a existência de festas ao longo de todo o ano que são realizadas em agradecimento aos milagres alcançados.  
As observações em São Pedro de Joselândia nos reafirmam a convicção de que as festas nesta comunidade fazem parte da estrutura do cotidiano e estão integradas na sua cultura como espaço concreto de construções e fortalecimento das relações sociais. (SANTOS, 2000; ÁGUAS, 2012). Em São Pedro de Joselândia todo mês tem pelo menos uma festa, houve tempo em que mais celebrações eram realizadas por devotos que hoje já são falecidos.

Tabela 9 Lista das Festas Comunidade de São Pedro de Joselândia
Mês
Festa
Dia
Realização
Janeiro
São Sebastião
20
Particular (Pimenteira)
Fevereiro
Carnaval
-
Particular (São Pedro)
Março
São Bento
21
Particular (Pimenteira)
Abril
São Benedito
03
Particular (não faz mais)
Maio
Coração de Maria
-
Só novena sem festa
Junho
São Pedro
29
Comunidade  (São Pedro)
Julho
Sant’Ana
26
Particular (São Pedro)
Agosto
São Roque
16
Particular (não faz mais)
Setembro
“Parelha” corrida de cavalo
07
Comunidade

São Cosme e Damião
25
Particular (São Pedro)
Outubro
Nossa Senhora Aparecida
12
Particular (Pimenteira)
Novembro
Santa Catarina
25
Particular (não faz mais)
Dezembro
Santa Luzia
12
Particular (Pimenteira)

Senhor Menino
25
Comunidade (São Pedro)
Fonte:  Entrevista com os festeiros

Geralmente o festeiro escolhido ou sorteado “tira a bandeira” pedindo as doações, passando nas sete comunidades do complexo.  No dia em que chegamos (29/10) a bandeira estava em Pimenteira. A bandeira passa de casa em casa, anotando a doação prometida numa caderneta que será consultada para a coleta às vésperas da festa. A esmola, como é conhecida o rito em questão, pode ser doações em espécie ou em produtos diversos para a realização da festa santa.

Figura 3 - Festeiro Sr. Jair e a Dona Lucia da última residência entrando na igreja

FOTO - Lucia Kawahara

Os foliões saem com a bandeira para esmolar e distribuem bênçãos de gratidão pela doação por meio da presença da bandeira do Senhor Menino Deus, acompanhada pela reza ou “cantorio” celebrados em cada residência.  A comunidade oferece hospedagem e alimentação para a delegação santa, pois receber a bandeira é uma honra e bênção aos moradores.

Figura 4 Os músicos foliões da delegação da Bandeira de Senhor Menino Deus
FOTO - Lucia Kawahara

Percebemos que os tempos e espaços das festas tradicionais possibilitam o fortalecimento da coletividade, pois pela prática do trabalho comunitário e solidário da organização e realização das festas, observamos o prevalecimento do coletivo sobre o individualismo tão fortemente disseminado nos moldes do mundo capitalista. O aprendizado sobre a importância do trabalho coletivo e nas práticas de aprendizagens que se alcança na celebração comunitária pode desconstruir a lógica meritocrática que visa o ganho pessoal e individual. 

O desafio em questão é o da produção de “espaços de locução” ou “instancias de reflexividade”, que redescobrem os caminhos da desejabilidade e possibilitam uma Política Ambiental. Uma política engajada em processos da (re) construção intencional da organização humana e do futuro em seus diferentes espaços de vida. (FERRARO, JR. & SORRENTINO, 2013, p. 271)

Após passar por todas as sete comunidades, os foliões retornam para a igreja onde são recebidos pelos devotos.

Figura 5 - Recepção da bandeira do Senhor Menino Deus na Igreja
FOTO – Lucia Kawahara

Ultimamente, com o processo da globalização e dissolução das fronteiras, quando tudo parece ser varrido pela universalização dos valores ocidentalizados e modelos ditados pelo capital, existe ao mesmo tempo, um fortalecimento e reconhecimento de diferentes culturas e identidades diversas. Como Stuart Hall registra, há um movimento de valorização das identidades, culturas, subjetividades, das “minorias” e do “multicultural”, vivenciamos uma grata “proliferação subalterna da diferença”:

De fato, há dois processos opostos em funcionamento nas formas contemporâneas de globalização, o que é em si mesmo algo fundamentalmente contraditório. Existem as forças dominantes de homogeneização cultural, [...]. Mas, bem junto a isso estão os processos que vagarosa e sutilmente estão descentrando os modelos ocidentais, levando a uma disseminação da diferença cultural em todo o globo. (HALL, 2009, p. 44).

Tal contexto nos traz o desafio de compreender o panorama educacional para além das relações econômicas e de classes, colocando em xeque as diversas referências curriculares e sociais até hoje suficientes para explicar o nosso mundo. Vivemos tempos de mudanças paradigmáticas, precisamos reconstruir nossos conceitos para além do engessamento moderno.

Entendemos que a compreensão da cultura da Festa nos proporcionou uma vivência de Educação Ambiental Fenomenológica. Testemunhamos o saber da comunidade de São Pedro de Joselândia que, no seu terreno sociocultural, revelou o valoroso conhecimento tradicional tecido com o ambiente em que vivem e, que, atualmente, criam táticas diversas de comunicação e fortalecimento dos elos entre as gerações. Percebemos que as festas são práxis educativas que possibilitam a manutenção e criação de saberes na vivência coletiva, onde cada um experiencia a importância da sua existência e dos outros no contexto ao qual pertence.  Cada um faz história, como pondera Paulo Freire:

Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente.  (1996, p. 76-77).

A festa permite garantir a experiência subjetiva pelo corpo vivo, leigo e transcendental, onde cada membro tem a possibilidade de criar e recriar na convivência e na negociação no bojo da coletividade. A festa é um espaço sagrado, não por ser religioso, mas também por ser um lugar que possibilita a vivência de integração das relações perdidas ao longo da modernidade: entre o ser humano com a natureza e com eles próprios.  Ela é um espaço de possibilidade de aprendizagem da solidariedade, do cuidar, da partilha do amor. Emprestando as palavras de Brandão: “Sim, uma vida regida pelo primado do amor é possível. E esse amor que nos pode transformar e às nossas vidas é também algo que se aprende a viver.” (2005-a, p.36).
Cuiabá, 04/11/2014





[1] Dados IBGE - Censo 2010. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e estatística. Censo demográfico de 2010. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm. Acessado em 22 de abril de 2013.

[2] Conforme dados do IBGE 2010, a comunidade de São Pedro registra 118 domicílios e o GPEA conseguiu entrevistar 65 residências, perfazendo 60% do universo de pesquisa. Entendemos desta forma, que o levantamento censitário do nosso grupo atingiu uma amostragem expressiva para a compreensão do contexto desta comunidade.  

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