A bandeira
da Festa do Senhor Menino – a força da coletividade
Relatório de Pesquisa em São Pedro de
Joselândia
Lucia Shiguemi Izawa Kawahara
Período: 29/10 a 02/11/2014
O Pantanal vestido de verde recém-brotado
cintilava vida e alegria, dando-nos boas vindas em sintonia com o processo de
enchente que se iniciou em outubro. A energia contagiante da aproximação do tempo das chuvas parecia
fortalecer os moradores a preparar a terra para o plantio da roça.
Como diz o Sr. Paulo Silva, agricultor de São
Pedro de Joselândia: “é a hora de
garantir o ano que vem!”.
Figura 1 Boas vindas do verde molhado em São Pedro de
Joselândia
FOTO – Lucia Kawahara
São Pedro de Joselândia é um pequeno distrito de Barão
de Melgaço - MT, localizado a 180 quilômetros de distância da capital
mato-grossense, formada por um complexo de sete comunidades: São Pedro;
Mocambo; Pimenteira; Retiro São Bento; colônia Santa Isabel; Capoeirinha e
Lagoa do Algodão com uma população de aproximadamente 2.562 habitantes[1],
cercada pelas águas dos rios Cuiabá e São Lourenço.
Além da roça, São Pedro de Joselândia estava
preparando também a Festa do Senhor Menino Deus com a saída da bandeira pelos
domicílios para arrecadar a esmola que proverá a celebração do dia 24/25 de
dezembro.
Figura 2 A bandeira
do Senhor Menino em um dos domicílios
FOTO - Giseli Nora
Segundo os números de uma pesquisa realizada pelo GPEA em
2012[2],
a maioria de seus moradores é católica:
Tabela 1 Religião dos Entrevistados em São Pedro de Joselândia
Igreja
|
%
|
Católica
|
86,15
|
Evangélicos (outras denominações)
|
6,15
|
Assembleia de Deus
|
3,08
|
Adventista
|
1,54
|
Congregação Cristã
|
1,54
|
Não tem uma específica
|
1,54
|
Fonte: Pesquisa do GPEA realizada em Março de 2012
Os moradores das longínquas terras de São Pedro de
Joselândia sustentam devoção, gratidão e fé nos santos que salvaram e salvam
seus familiares. A falta de estruturas de saúde, transporte e segurança, além
da enorme distância da capital ou das cidades com melhores infraestruturas,
marca profundamente o modo de vida de sua comunidade. Um dos costumes locais é
a existência de festas ao longo de todo o ano que são realizadas em
agradecimento aos milagres alcançados.
As observações em São Pedro de Joselândia nos reafirmam a
convicção de que as festas nesta comunidade fazem parte da estrutura do
cotidiano e estão integradas na sua cultura como espaço concreto de construções
e fortalecimento das relações sociais. (SANTOS, 2000; ÁGUAS, 2012). Em São
Pedro de Joselândia todo mês tem pelo menos uma festa, houve tempo em que mais
celebrações eram realizadas por devotos que hoje já são falecidos.
Tabela 9 Lista das Festas Comunidade de São Pedro de
Joselândia
Mês
|
Festa
|
Dia
|
Realização
|
Janeiro
|
São Sebastião
|
20
|
Particular
(Pimenteira)
|
Fevereiro
|
Carnaval
|
-
|
Particular
(São Pedro)
|
Março
|
São Bento
|
21
|
Particular
(Pimenteira)
|
Abril
|
São Benedito
|
03
|
Particular
(não faz mais)
|
Maio
|
Coração de Maria
|
-
|
Só
novena sem festa
|
Junho
|
São
Pedro
|
29
|
Comunidade
(São Pedro)
|
Julho
|
Sant’Ana
|
26
|
Particular
(São Pedro)
|
Agosto
|
São Roque
|
16
|
Particular
(não faz mais)
|
Setembro
|
“Parelha” corrida de
cavalo
|
07
|
Comunidade
|
São Cosme e Damião
|
25
|
Particular
(São Pedro)
|
|
Outubro
|
Nossa Senhora
Aparecida
|
12
|
Particular
(Pimenteira)
|
Novembro
|
Santa Catarina
|
25
|
Particular
(não faz mais)
|
Dezembro
|
Santa Luzia
|
12
|
Particular
(Pimenteira)
|
Senhor Menino
|
25
|
Comunidade (São Pedro)
|
Fonte: Entrevista com os festeiros
Geralmente o festeiro escolhido ou sorteado “tira
a bandeira” pedindo as doações, passando nas sete comunidades do complexo. No dia em que chegamos (29/10) a bandeira
estava em Pimenteira. A bandeira passa de casa em casa, anotando a doação
prometida numa caderneta que será consultada para a coleta às vésperas da festa.
A esmola, como é conhecida o rito em questão, pode ser doações em espécie ou em
produtos diversos para a realização da festa santa.
Figura 3 - Festeiro Sr. Jair e a Dona Lucia da última residência
entrando na igreja
FOTO - Lucia Kawahara
Os
foliões saem com a bandeira para esmolar e distribuem bênçãos de gratidão pela
doação por meio da presença da bandeira do Senhor
Menino Deus, acompanhada pela reza ou “cantorio” celebrados em cada
residência. A comunidade oferece
hospedagem e alimentação para a delegação santa, pois receber a bandeira é uma
honra e bênção aos moradores.
Figura 4 Os músicos foliões da delegação da Bandeira de Senhor
Menino Deus
FOTO - Lucia Kawahara
Percebemos que os tempos e espaços das festas tradicionais
possibilitam o fortalecimento da coletividade, pois pela prática do trabalho
comunitário e solidário da organização e realização das festas, observamos o
prevalecimento do coletivo sobre o individualismo tão fortemente disseminado
nos moldes do mundo capitalista. O aprendizado sobre a importância do trabalho
coletivo e nas práticas de aprendizagens que se alcança na celebração
comunitária pode desconstruir a lógica meritocrática que visa o ganho pessoal e
individual.
O desafio em questão é o da
produção de “espaços de locução” ou “instancias de reflexividade”, que
redescobrem os caminhos da desejabilidade e possibilitam uma Política
Ambiental. Uma política engajada em processos da (re) construção intencional da
organização humana e do futuro em seus diferentes espaços de vida. (FERRARO,
JR. & SORRENTINO, 2013, p. 271)
Após
passar por todas as sete comunidades, os foliões retornam para a igreja onde
são recebidos pelos devotos.
Figura 5 - Recepção da bandeira do Senhor Menino Deus na Igreja
FOTO – Lucia Kawahara
Ultimamente, com o processo da globalização e
dissolução das fronteiras, quando tudo parece ser varrido pela universalização
dos valores ocidentalizados e modelos ditados pelo capital, existe ao mesmo
tempo, um fortalecimento e reconhecimento de diferentes culturas e identidades
diversas. Como Stuart Hall registra, há um movimento de valorização das
identidades, culturas, subjetividades, das “minorias” e do “multicultural”,
vivenciamos uma grata “proliferação subalterna da diferença”:
De fato, há dois processos
opostos em funcionamento nas formas contemporâneas de globalização, o que é em
si mesmo algo fundamentalmente contraditório. Existem as forças dominantes de
homogeneização cultural, [...]. Mas, bem junto a isso estão os processos que
vagarosa e sutilmente estão descentrando os modelos ocidentais, levando a uma
disseminação da diferença cultural em todo o globo. (HALL, 2009, p. 44).
Tal contexto nos traz o desafio de compreender o panorama
educacional para além das relações econômicas e de classes, colocando em xeque
as diversas referências curriculares e sociais até hoje suficientes para explicar
o nosso mundo. Vivemos tempos de mudanças paradigmáticas, precisamos
reconstruir nossos conceitos para além do engessamento moderno.
Entendemos que a compreensão da cultura da Festa
nos proporcionou uma vivência de Educação Ambiental Fenomenológica.
Testemunhamos o saber da comunidade de São Pedro de Joselândia que, no seu
terreno sociocultural, revelou o valoroso conhecimento tradicional tecido com o
ambiente em que vivem e, que, atualmente, criam táticas diversas de comunicação
e fortalecimento dos elos entre as gerações. Percebemos que as festas são práxis educativas que possibilitam a
manutenção e criação de saberes na vivência coletiva, onde cada um experiencia
a importância da sua existência e dos outros no contexto ao qual pertence. Cada um faz história, como pondera Paulo
Freire:
Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na
objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o
de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de
ocorrências. Não sou apenas objeto da História
mas seu sujeito igualmente. (1996, p.
76-77).
A festa
permite garantir a experiência subjetiva pelo corpo vivo, leigo e
transcendental, onde cada membro tem a possibilidade de criar e recriar na
convivência e na negociação no bojo da coletividade. A festa é um espaço
sagrado, não por ser religioso, mas também por ser um lugar que possibilita a vivência
de integração das relações perdidas ao longo da modernidade: entre o ser humano
com a natureza e com eles próprios. Ela
é um espaço de possibilidade de aprendizagem da solidariedade, do cuidar, da
partilha do amor. Emprestando as palavras de Brandão: “Sim, uma vida regida pelo primado do amor é
possível. E esse amor que nos pode transformar e às nossas vidas é também algo
que se aprende a viver.” (2005-a, p.36).
Cuiabá, 04/11/2014
[1] Dados IBGE - Censo
2010. IBGE. Instituto Brasileiro de
Geografia e estatística. Censo
demográfico de 2010. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm. Acessado em 22 de abril de 2013.
[2]
Conforme dados do IBGE 2010, a
comunidade de São Pedro registra 118 domicílios e o GPEA conseguiu entrevistar
65 residências, perfazendo 60% do universo de pesquisa. Entendemos desta forma,
que o levantamento censitário do nosso grupo atingiu uma amostragem expressiva
para a compreensão do contexto desta comunidade.
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