Associado de forma banal à ausência da fala, o silêncio é contudo presença plena de significações: uma força complexa, que questiona a própria linguagem em seu uso social
Por Marina Lara de Moraes Pinheiro | Imagem: Letícia Freire
Este trabalho propõe explorarmos os significados observáveis dos silêncios presentes em nossas vidas pessoais e sociais. Busca provocar a reflexão diante do que entende-se por silêncio e porque ele é tão complexo, ainda que tão presente. Sugere uma maior atenção e observação aos silêncios, suas nuances e sua importância para uma melhor leitura do mundo e compreensão da comunicação e da linguagem humana. Pois, como sinalizado por Francis Wolff, um dos filósofos que embasam a construção desse trabalho, “Toda ausência é também presença, enquanto signo, como a ausência do amado cantada pela alma do poeta”. (Wolff, O silêncio é a ausência de quê?, 2013)
O silêncio é, comumente, associado à ausência da fala. Ao senso comum, enquanto a fala é presença de comunicação clara e óbvia, o silêncio é compreendido à falta da fala, a falta da linguagem — ou à pausa. Essa compreensão, porém, não poderia estar mais distante da realidade. O silêncio possui um significado em si mesmo, uma significação própria e múltipla que pode querer dizer algo pelo próprio comunicador, ou, ainda, pelo ouvinte (que ora interpreta o silêncio, ora cala-se para ouvir o que é dito). É frágil, pois não é código estabelecido. É poderoso também justamente por ser independente de tais códigos.
Neste artigo, buscarei explorar os significados possíveis do silêncio, para estabelecer que à leitura do mundo não basta observar os signos, mas também o que os antecede. O que são os signos da linguagem senão uma das maneiras de organizar um pensamento, um sentimento, uma intenção? Tudo isso antecede o próprio código. Já está presente no silêncio. Para tanto, usei como fonte de pesquisa artigos produzidos para o ciclo de conferências Mutações — O silêncio e a prosa do mundo, concebido e realizado pelo Centro de Estudos Artepensamento em 2013 e organizado em livro por Adauto Novaes.
Acredito ser importante para o estudo da linguística buscarmos compreender o que é dito além dos códigos. Além disso, convidar o leitor a refletir se o silêncio não pode ser estudado como código cultural inerente à linguagem. Retirar o silêncio do papel de ausência da fala me parece primordial para melhor compreendermos os sinais do mundo. O silêncio fala, partamos desse pressuposto. Ele nos fala quando vem de nós e nos fala ao interpretarmos o outro, o que seria a sombra dessa significação.
Pensemos primeiramente na própria fala. Um diálogo compõe-se de um falante e um ouvinte. O ouvinte é, então, o sujeito silencioso. Mas seu ouvir não é passivo naturalmente. O ouvinte reage dentro de si e exterioriza através da linguagem corporal ou da linguagem falada (reforçando aqui que a escolha da não utilização de um código corporal ou de fala pré-estabelecido não deixa de fazer parte do próprio código). Além disso, no próprio falante existe a cadência da fala, composta de som e silêncio para estabelecer-se um ritmo (ritmo que, pela combinação dos dois elementos, torna-se informação também). Portanto, em um diálogo, situação onde a fala se faz óbvia, já podemos observar algumas importâncias silenciosas: o desejado silêncio ouvinte, o possível silêncio responsivo, e o silêncio que estabelece ritmo. Não é besteira então observar logo que o silêncio é algo que interfere, até agora, em nossas expectativas enquanto falantes, em nossas possibilidades expressivas e no nosso controle de intenções.
Antes de continuar explorando as possibilidades dos silêncios, gostaria de pedir atenção ao silêncio “puro”. Ele existe? As imagens que nos vêm à cabeça são do silêncio da natureza, do deserto, do fundo do mar. Mas em nenhum desses lugares o que há é silêncio absoluto. Em qualquer espaço, o mais silencioso possível, haverá algum ruído, ainda que seja dos nossos próprios batimentos cardíacos. E é por meio dessa imagem que afirmo que o silêncio tem sempre significação enquanto for compreendido como significativo. A partir do momento que estamos imersos no silêncio, e quanto mais imergimos, melhor escutamos a nós mesmos. Entramos aí em um beco sem saída, por assim dizer. Ainda que exista o silêncio puro, jamais seremos capazes de adentrá-lo. E, assim, para nós, não faz sentido definir o silêncio como algo ausente de sentido. Pois nós, enquanto agentes do mundo, sempre ouviremos alguma coisa, ruídos ou pensamentos. Cabe a nós então, enquanto intérpretes da vida, saber o que fazer com isso.
Não à toa a habilidade da meditação faz-se tão difundida e desejada no mundo de hoje: um mundo viciado em perceber o silêncio (ou a não-fala) como ausência, fica doente sem saber transitar pelas possibilidades do silêncio enquanto significante. A negação do silêncio pode então ser muito verborrágica. E podemos observá-la diariamente nas redes sociais. Diante dessa observação, aliás, torna-se bastante irônica, curiosa e significativa a criação do the quiet place project, um website que te convida a ficar quieto de tempo em tempo e fez sucesso justamente através do facebook. Conectar-se ao silêncio é uma necessidade ainda inconsciente para muitas pessoas, porém já observável em grande parte dos usuários dessas redes. Essa reflexão é colocada logo na apresentação do livro resultante do ciclo de conferências Mutações — O silêncio e a prosa do mundo, por Danilo Santos de Miranda (2013):
“Em contínua transformação e aperfeiçoamento, as tecnologias propiciam a interação, quiçá o reencontro entre pessoas face a distâncias infligidas pelo tempo e pelo espaço. Porém, não permite ao ser humano experimentar o silêncio. […] Imune ao silêncio, o homem ignora a calma e investe-se de urgências, eximindo-se de interrogá-las.”
Ao mesmo tempo que nos falta observar o silêncio, não podemos no entanto sugerir que falta silêncio no mundo, pois ele é tudo que existe antes de qualquer som. E, embora seja necessário, ele pode adquirir sentidos devastadores e inclusive violentos. Devemos observar o silêncio que remete à prudência, à cautela, ao respeito, tanto quanto o silêncio que censura, rejeita e provoca. Há o silêncio que se faz por não ter o que dizer, o silêncio que se faz por não saber como dizer e ainda aquele que se recusa a dizer. Francis Wolff, filósofo francês, ilustra bem várias das possibilidades do silêncio em uma passagem de seu artigo “O silêncio é ausência de quê?”:
“Há quem afirme que o silêncio é signo de virtude, por exemplo a virtude exigível do eterno feminino (a mulher deveria ser discreta, contida, reservada), ou ainda a virtude dos humildes ou dos habilidosos (os que sabem conter sua língua), pode-se opor que o silêncio é também sintoma de um vício de caráter (é o caladão, o taciturno, o retraído, o introvertido, o segredista, o dissimulado, o sorrateiro, o velhaco…).”
Há quem afirme que o silêncio é signo de sabedoria (o sábio é recolhido, ele reflete em silêncio e só fala com conhecimento de causa), pode-se retorquir que ele é signo de loucura (é a angústia, o abatimento, o autismo, o sofrimento profundo dos grandes melancólicos).
É o silêncio signo de um espírito meditativo, a condição do recolhimento, o resultado de um pensamento interior tão rico que se abstém de toda formulação exterior? Ou o resultado de um espírito vazio, de um pensamento infecundo, estéril, incapaz de produzir qualquer expressão que seja?
É o silêncio signo de uma sensibilidade muito forte (“ele está aturdido diante de tantas desgraças”, “ela emudeceu de horror”) ou, ao contrário, é signo de uma total insensibilidade (“ele é surdo aos gritos de dor”, “ela nada tem a dizer a esse respeito”)?
É o silêncio manifestação de força? De fato, o tirano ordena laconicamente, abstém-se de falar, comanda o mundo com um olhar, impõe-se a todos com um sinal. É o silêncio, ao contrário, uma manifestação de impotência? De fato, o escravo está condenado ao silêncio, o prisioneiro é obrigado a se calar.
A partir dessas infinitas significações, é bem compreensível que o silêncio deixe a maior parte das pessoas confusas e, por isso, em estado de negação ao silêncio. Podemos dizer, “se o silêncio é aquilo que é difícil de compreender, preencho-me de palavras”. Mas esse pensamento nada verdadeiramente nos contribui quando surge apenas para preencher um suposto vazio, e podemos até buscar uma analogia com a fé fanática. A fé, enquanto sentimento ou crença genuína, aberta, é também libertação — por representar um caminho possível, escolhido na liberdade subjetiva do ser, com bifurcações e ruas paralelas. Já a fé fanática não é a escolha de nenhum caminho, porém a certeza dele. Diante das dúvidas e das questões do mundo, define-se uma verdade única e se segue tentando levar quem está ao redor.
Longe de sugerir que a palavra deveria se calar para o silêncio, gostaria de sugerir o reconhecimento do silêncio inclusive entre as palavras. Isto é, mesmo dentro da minha fé escolhida, percebo que as dúvidas existem e jamais serão absolutamente respondidas, ainda que eu deseje levar minha vida de acordo a determinada crença (ou não). O silêncio existe, ainda que nos confunda e é tão significativo e importante quanto a palavra, porém ele não possui uma gramática, um acordo de normas. Acostumados com o código (os signos linguísticos), tratamos dele como coisa absoluta e preferível ao “nada” (no caso, o silêncio), sem perceber que assim o próprio código, sem “alguma coisa”, pode também ser nada.
E então, o que define ausência e presença? O que tem e não tem significação? Para responder a essas perguntas, temos que levantar antes uma outra. De onde vem a palavra, o código linguístico, senão do silêncio? Se concordarmos nisso, podemos dizer então que o significado sempre antecede o código? A fala não dá sentido a nada e pode nada dizer, se não houver antes de si o seu significado. Portanto, se quisermos ir mais longe, podemos inclusive ousar dizer que a ausência de significado está no código, que é então mera representação, e não no silêncio. Invertemos assim o entendimento comum do silêncio como falta e o transformamos em casa primeira de toda significação.
O silêncio pode ser preenchido de significação por diversos meios. Ao comunicador, o silêncio consciente e ativo pode ter um objetivo claro. Ao ouvinte, cabe ao silêncio a interpretação das intenções compreendidas. Lidamos aí com luz e sombra, talvez? O silêncio tem poder significativo quando utilizado com um fim comunicativo. Mas mesmo quando não, o silêncio pode sobreviver a partir da interpretação do outro. E ainda, essa comunicacão pode se dar com interpretações diferentes e simultâneas. Levando-nos de volta a pensar na negação do silêncio, ou do medo da ausência. Não seria essa sensação de ausência confundida com a incompreensão da presença?
O silêncio, portanto, nunca é apenas ausência de som, ausência física de som, é sempre também presença de sentido, presença humana de sentido. Mas, como só se manifesta fisicamente pelo vazio e pela ausência, ele pode significar tudo — e o seu contrário — , como bem sabem todos os pacientes estendidos no divã e que espreitam, ansiosos, o sentido de suas próprias palavras no silêncio ambíguo do psicanalista.
“O silêncio é ora morte, ora vida, ora vício, ora virtude, ora imposto, ora escolhido.” (Wolff, idem)
Podemos observar na literatura a representação desse silêncio que se basta, que é comunicação humana para além do codificável. Por exemplo:
“Estava claro que a associação deles ultrapassara o estágio em que a manifestação de um interesse, de um lado e de outro, exigia uma prova verbal. Quase nada lhes era necessário, nem sequer se buscarem com os olhos: ela não tinha necessidade de olhar seu amigo para acompanhar o que ele dizia — podia olhar os espaços longínquos que ele mesmo contemplava, e era ao acompanhá-lo até lá que ela o compreendia.” (Henry James, O Protesto, 1911.)
Podemos compreender que a comunicação, nesse caso, se faz pelo silêncio e é intensificada, significada por ele. No silêncio é possível encontrar significações intensas de cumplicidade e de compreensão. Podemos dizer que a comunicação das emoções, portanto, pode explorar o silêncio com muita propriedade. Enquanto para as questões de negociações, de acordos e de representações, um conjunto de signos tende a facilitar a troca. Mas, em ambos casos, o silêncio e a linguagem podem estar presentes e intercalados. O interessante é justamente a vastidão de possibilidades que podemos experimentar para comunicar o que queremos. E observar também toda quantidade de coisas que comunicamos e interpretamos para além da compreensão do código. O que acontece quando percebemos o silêncio como parte da comunicação? Reconhecemos a comunicação e a linguagem humana sempre presentes em nossas vidas. Nos libertamos, aos poucos, da exigência da fala (sem que isso se torne uma negação da mesma). Nos conectamos com o significado antes de lidar com a significação proposta pelo código. O código, qualquer que seja, nos serve como ferramenta, não como próprio significante.
Entender a importância do silêncio e buscar observar suas significações nos possibilita, assim, compreender melhor a própria palavra e nos distanciar do conjunto de regras e expectativas aprisionadoras da própria linguagem. David Lapoujade, em seu artigo “O inaudível — uma política do silêncio”, explora a sua visão de que a linguagem também não deixa de ser uma forma de prisão, a partir do momento que nos faz automaticamente endividados, devedores ou negociadores, num jogo de expectativas o qual adentramos quase obrigatoriamente desde a infância.
Além disso, vivemos um tempo que luta contra o silêncio, um tempo em que nunca falamos tanto e nunca fomos tão estimulados a falar. O resgate do silêncio pode então significar uma contestação — uma tentativa de sair desse sistema estabelecido e buscar as significações anteriores. Dar voz (literal ou não) a essas significações. Algo como “enquanto me pedem falar para continuamente, dou a eles a eloquência do meu silêncio”. Fazer falar o silêncio, nesse caso, é não limitar a significação a qualquer código, é não fazer promessa.
Ao silêncio, cabem variadas reflexões. Não nos cabe, acredito, dissecá-lo em pedaços simplesmente. Talvez por ser tão plural, é fácil perceber que se queremos defini-lo ou limitá-lo acabamos adentrando uma contradição difícil de ser explorada. Porém, negar-se esse caminho seria viver na sombra do mesmo problema. O que tentei propor, portanto, nessa breve exploração pelo tema, é que enxerguemos o silêncio como presença. Que possamos transitar pelo silêncio que faz parte da nossa linguagem, daquele que a antecede e mesmo daquele absoluto que só existe em nós enquanto conceito. Ao reconhecer as significações do silêncio e sua multiplicidade, relativizamos o poder do código, nos possibilitando um caminho mais amplo e menos limitado.
“Ora, esse silêncio não é algo fora da linguagem ou uma não linguagem: é como uma contralinguagem. É uma força que contesta a própria linguagem em seu uso social.” (David Lapoujade, O inaudível — uma política do silêncio, 2013)
Bibliografia
Textos selecionados da coleção Mutações — O silêncio e a prosa do mundo. Organizado por Adauto Novaes, 2013:
• MIRANDA, Danilo. Danilo Santos de Miranda: Apresentação, 2013.
• NOVAES, Adauto. Adauto Novaes: Treze notas sobre O Silêncio e a Prosa do Mundo, 2013.
• WOLFF, Francis. Francis Wolff: O silêncio é a ausência de quê?, 2013.
• LAPOUJADE, David. David Lapoujade: O inaudível — Uma política do silêncio, 2013.
• BIGNOTTO, Newton. Newton Bignotto: As formas do silêncio, 2013.
Referências
• JAMES, Henry. Henry James. O Protesto, 1911.
• The Quiet Place Project. <http://thequietplaceproject.com/>