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Imagine depois do aquecimento global
CATEGORIAS: CAPA, DESIGUALDADES, GEOPOLÍTICA, MUNDO
– ON 06/11/2015
Por que a mudança climática pode aterrorizar um planeta já conflagrado. Como ela provocará escassez, migrações em massa, falência dos Estados e guerras. A Conferência de Paris evitará o caos?
Por Michael T. Klare | Tradução: Inês Castilho
No final de novembro, delegações de aproximadamente 200 países irão se reunir em Paris, para o que é tido como o mais importante encontro sobre clima jamais realizado. Oficialmente conhecida como a 21a Conferência das Partes (COP-21) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (o tratado de 1992 que reconheceu este como ameaça à saúde planetária e à sobrevivência humana), a cúpula de Paris terá foco na adoção de medidas capazes de limitar o aquecimento global a níveisabaixo dos catastróficos. Se isso falhar, é provável que nas próximas décadas as temperaturas mundiais excedam 2ºC, montante máximo que,segundo pensa a maioria dos cientistas, a Terra pode suportar sem experimentar choques climáticos irreversíveis – entre elas, disparada dastemperaturas e aumento substancial do nível dos oceanos.
Um fracasso em deter as emissões de carbono tornaria também provável outro resultado, até hoje muito menos debatido. Produzirá, a longo prazo, não apenas impactos no clima, mas também instabilidade, insurreição e guerra no mundo todo. Nesse sentido, a COP-21 poderia ser considerada não apenas uma cúpula sobre o clima, mas também uma conferência de paz – talvez a convocação pela paz mais significativa da História.
Para entender a razão, considere as últimas descobertas científicas sobre os prováveis impactos do aquecimento global, em especial o relatório de 2014 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Logo que foi publicado, o relatório atraiu a cobertura da mídia do mundo todo, ao prever que as mudanças climáticas descontroladas resultarão em graves secas, tempestades intensas, ondas opressivas de calor, quebras de safra recorrentes e inundações das regiões costeiras, tudo levando a morte e privação generalizadas. Fatos recentes, entre eles a seca que castiga a Califórnia e ondas de calor dramáticas na Europa e na Ásia, têm concentrado atenção precisamente nesses impactos.
O relatório do IPCC, contudo, sugere que o aquecimento global teria também impactos devastadores de natureza social e política, incluindo declínio econômico, colapso de Estados, conflitos civis, migrações em massa e, mais cedo ou mais tarde, guerras por recursos.
Essas previsões receberam muito menos atenção, ainda que a possibilidade de tal futuro pudesse ser óbvia o suficiente, visto que as instituições humanas são, assim como os sistemas naturais, vulneráveis a mudanças climáticas. As economias serão abaladas, quando commodities chave – cereais, madeira, carne, peixe – ficarem progressivamente mais escassas, forem destruídas ou faltarem. As sociedades começarão a encolher, sob a tensão do declínio econômico e de fluxos maciços de refugiados. Conflitos armados podem não ser a consequência mais imediata desses movimentos, nota o IPCC – mas combine os efeitos das mudanças climáticas com pobreza, fome, escassez de recursos, governos incompetentes e corruptos, e ressentimentos étnicos, religiosos ou nacionais, e é provável que surjam conflitos amargos pelo acesso a alimentos, água, terra e outras necessidades vitais.
Aquecimento, escassez de recursos, guerras civis
Tais guerras não surgiriam do nada. Tensões e descontentamentos já existentes seriam atiçads por atos de provocação e exortações dos líderes xenófobos. Pense o atual surto de violência em Israel e nos territórios palestinos, desencadeado por confrontos em torno do acesso ao Monte do Templo em Jerusalém (também conhecido como Nobre Santuário). Combine a privação econômica e de recursos naturais com tais situações e surge uma receita perfeita para a guerra.
Os recursos necessários à vida são distribuídas de modo desigual pelo planeta. Não é raro que o abismo entre os que têm acesso a estes recursos e os que estão privados deles provoque divisões de longo prazo em torno de questões raciais, étnicas, religiosas ou linguísticas. Entre israelenses e palestinos, por exemplo, há um abismo nas condições de acesso à terra e à água. Acres ente o estresse das mudanças climáticas a tais situações e pode-se naturalmente esperar o aguçamento de tensões.
O aquecimento global irá degradar ou destruir muitos sistemas naturais,dos quais os humanos dependem para sua sobrevivência, mas que em muitos casos já estão submetidos a estresse. Áreas que hoje são empregas para agricultura ou pecuária podem tornar-se inabitáveis, ou capazes de abastecer apenas populações muito reduzidas. Sob a pressão de temperaturas crescentes e secas cada vez mais intensas, a margem sul do deserto do Saara, cujas pastagens hoje sustentam pastores nômades, está sendo convertida num território vazio, o que força as populações locais a abandonar suas terras ancestrais. Muitos territórios na África, Ásia e Oriente Médio terão destino semelhante. Rios que antes corriam o ano todo fluirão apenas esporadicamente ou secarão por completo, deixando às populações escolhas ásperas.
Como aponta o relatório do IPCC, as instituições estatais, frequentemente frágeis, sofrerão enorme pressão para ajustar-se às mudanças climáticas e socorrer populações necessitadas de alimento, teto e outras carências emergenciais. “O aumento da insegurança humana”, diz o relatório, “pode coincidir com o declínio da capacidade dos Estados para promove adaptação, o que criará circunstâncias nas quais há maior potencial de conflito violento.”
Um bom exemplo desse risco é a explosão da guerra civil na Síria e o consequente colapso do país, submerso num turbilhão de guerras, produzindo uma onda de refugiados não vista desde a Segunda Guerra Mundial. Entre 2006 e 2010, a Síria viveu uma seca devastadora cujo principal fator, acredita-se, foram as mudanças climáticas. Quase 60% do país foram transformandos em deserto quase 60%. As colheitas perderam-se e a maior parte do gado morreu, projetando milhões de fazendeiros em penúria. Desesperados e incapazes de continuar vivendo em sua própria terra, eles mudaram-se para as maiores cidades da Síria em busca de trabalho, enfrentando frequentemente adversidades extremas e hostilidades das elites urbanas. Se o presidente Bashar al-Assad tivesse respondido com um programa emergencial de emprego e moradia para os deslocados, talvez o conflito pudesse ter sido evitado. Ao invés disso, ele cortou subsídios para alimentos e combustível, o que agravou a miséria dos migrantes e acendeu a revolta. Na visão de vários acadêmicos destacados, “as periferias da Síria, em rápido crescimento, marcadas por ocupações ilegais, superporpulação, falta de infraestrutura, desemprego e crime, foram esquecidas pelo governo de Assad e tornaram-se o centro dos distúrbios.”
Uma cena similar desenrolou-se na região do Sahel, na África, na franja sul do Saara, onde secas severas coincidiram com o declínio do habitat e negligência do governo, provocando violência armada. A região enfrentou muitos desses períodos no passado, mas agora, graças às mudanças climáticas, o intervalo entre as secas é menor – “de dez anos para apenas cinco“, observa Robert Piper, coordenador humanitário regional das Nações Unidas para o Sahel. “Isso está submetendo um ambiente já muito frágil, e uma população altamente vulnerável, a enorme estresse.”
No Mali, uma das várias nações da região, os nômades Tuaregues têm sido afetados de modo particularmente duro, já que as pastagens de que dependem para alimentar seu gado estão se transformando em deserto. População muçulmana de idioma bérbere, os Tuaregues enfrentam há muito hostilidades do governo central de Bamako – antes controlado pelos franceses e agora por africanos negros de fé cristã ou animista. Com seus costumes tradicionais em perigo e pouca assistência da capital, os Tuaregues revoltaram-se em janeiro de 2012, tomando metade do Mali, até serem empurrados de volta ao Saara pelos franceses e outras forças estrangeiras (com apoio logístico e de inteligência dos EUA).
Considere os acontecimentos na Síria e no Mali como antevisões do que é provável de acontecer ainda neste século, em escala muito maior. À medida em que as mudanças climáticas se intensificam, provocando não apenas desertificação mas a elevação do nível dos mares em áreas costeiras, e ondas de calor cada vez mais devastadoras em regiões já quentes, cada vez mais partes do planeta irão se tornar menos habitáveis, levando milhões de pessoas à condição de fuga desesperada.
Os governos mais fortes e ricos, especialmente nas regiões mais temperadas, estarão mais preparados para lidar com esses estresses,. Mas é provável que cresça dramaticamente o número de Estados falidos, o que levará à violência e guerra aberta pelo que restar de comida, terra agricultável e abrigo. Imagine partes significativas do planeta num estado como a da Líbia, a Síria e o Iêmen hoje. Algumas pessoas ficarão, lutando para sobreviver; muitas irão migrar, deparando-se quase certamente hostilidade ainda mais violenta que a já vista hoje contra imigrantes e refugiados. O resultado será, inevitavelmente, uma explosão de guerras civis e violência, na disputa por todo tipo por recursos.
Os possíveis confrontos interestatais pela água
A maioria desses conflitos será de caráter interno, civil: seita contra seita, clã contra clã, tribo contra tribo. Num planeta em mudança climática, contudo, não exclua guerras entre nações pelos recursos vitais reduzidos – especialmente o acesso à água. Já está claro que o aquecimento global irá reduzir o abastecimento hídrico em muitas regiões tropicais e subtropicais, comprometendo a agricultura, a saúde, o funcionamento das grandes cidades e, possivelmente, a própria força da sociedade.
O risco de “guerras pela água” surgirá quando dois ou mais países dependerem da mesma fonte chave de abastecimento – o Nilo, o Jordão, o Eufrates, o Indus, o Mekong ou outros sistemas fluviais transfronteiriços – e um ou mais deles procuram apropriar-se de uma parte desproporcional do suprimento em constante diminuição de sua água. Tentativas anteriores, de países que construíram barragens ou desviaram o fluxo de água de tais sistemas, já provocaram escaramuças e ameaças de guerra, como quando a Turquia e a Síria ergueram barragens no rio Eufrates, restringindo o fluxo rio abaixo.
Um sistema que atrai preocupação particular é o Rio Brahmaputra, que tem origem na China (onde é conhecido como Yarlung Tsangpo) e passa pela Índia e Bangladesh, antes de desaguar no Oceano Índico. A China já ergueu uma barragem no rio e planeja fazer mais, produzindo considerável mal-estar na Índia, onde as águas do Brahmaputra são vitais para a agricultura. Mas o que provocou o maior alarme é um plano chinês de canalizar água daquele rio para áreas com escassez hídrica na parte nordeste daquele país.
Os chineses insistem que essa ação não é iminente, mas a intensificação do aquecimento e seca crescente poderiam, no futuro, induzir a tal movimento, colocando em risco o suprimento de água da India e possivelmente provocando um conflito. “A construção de barragens na China e a proposta de desvio das águas do Brahmaputra devem repercutir não apenas no fluxo de água, na agricultura, ecologia e vidas e subsistência a jusante”, escreve Sudha Ramachandran no The Diplomat: “elas poderiam tornar-se também outra questão contenciosa minando as relações sino-indianas.”
Claro, mesmo num futuro de estresse muito maior por água, tais situações não provocarão necessariamente combate armado. Talvez os Estados envolvidos descubram como partilhar os recursos limitados restantes e busquem meios alternativos de sobrevivência. Contudo, a tentação de empregar a força tende a crescer, à medida em que o abastecimento for se reduzindo e milhões de pessoas enfrentarem sede e fome. Em tais circunstâncias, a sobrevivência do próprio Estado estará em risco, ampliando o risco de medidas desesperadas.
Para baixar a temperatura enquanto é tempo
Há, sem dúvida, muita coisa que poderia ser feita para reduzir o risco de guerras por água — inclusive a adoção de esquemas cooperativos de gestão hídrica e a introdução do uso de irrigação por gotejamento e outros processos mais eficientes. No entanto, a melhor maneira de evitar futuros conflitos relacionados ao clima é reduzir o ritmo do aquecimento global. Cada fração de grau a menos de aquecimento alcançado na Conferência de Paris e posteriormente significará muito menos sangue derramado, em futuras guerras por recursos provocadas pelo clima.
Essa é a razão por que o encontro de novembro deveria ser visto como uma espécie de conferência de paz preventiva, que acontece antes que as guerras de fato comecem. Se os delegados da COP-21 forem bem sucedidos em criar caminho que limite o aquecimento global a 2ºC, o risco de violência no futuro será reduzido. É desnecessário dizer que mesmo 2ºC de aquecimento provocarão dano substancial aos sistemas vitais naturais, escassez de recursos potencialmente severa e conflitos civis. Seria preferível um teto mais baixo para o aumento da temperatura e esta deveria ser a meta das conferências futuras. Ainda assim, considerando o volume atual de emissões de carbono na atmosfera, hoje até mesmo respeitar o limite de 2ºC seria uma realização significativa.
Para chegar a tal resultado, os delegados terão de começar a lidar também com conflitos em curso – entre eles os da Síria, Iraque, Iêmen e Ucrânia –, de modo a colaborar na concepção de medidas climáticas comuns, mutuamente obrigatórias. Também neste sentido, a cúpula de Paris será uma conferência de paz. Pela primeira vez, as nações do mundo terão de dar um passo além das considerações nacionais e abraçar um objetivo maior: a segurança da ecosfera e de todos os seus habitantes, independentemente de identidade nacional, étnica, religiosa, racial ou linguística. Nunca se tentou nada como isso. Será, portanto, um exercício de pacificação do tipo mais essencial – antes que as guerras comecem de verdade.
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Michael T. Klare é professor de estudos sobre a paz e segurança mundial no College Hampshire e correspondente de defesa no The Nation.
Michael T. Klare é professor de estudos sobre a paz e segurança mundial no College Hampshire e correspondente de defesa no The Nation.
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