Wednesday, 29 July 2020

Amor Imigrante



Amor Imigrante


Amor Imigrante

No ano passo, o fotógrafo Luzo Reis recebeu um convite inesperado. Através de um amigo, a imigrante venezuelana Rosbelli Rojas o procurou em busca de um ensaio fotográfico. Na ocasião, um concurso com tema “migração latino-americana” estava aberto e o objetivo de Rosbelli era produzir algumas fotos suas para concorrer. Já fazia um ano que o fotógrafo estava fora de Cuiabá, mas não titubeou ao receber o convite. Luzo, que já possui uma rica trajetória de trabalho com imigrantes, em especial os Haitianos, viu no convite a possibilidade de conhecer a história de Rosbelli e aprofundar o diálogo com a comunidade Venezuelana, que migra paulatinamente para o Brasil por conta da crise econômica e política que enfrenta a Venezuela. Luzo compartilha com a gente a possibilidade de emaranhar na história desse casal que, mesmo após os desafios de uma migração não planejada, seguem com amor, esperança e determinação na luta por dias melhores, agora no Brasil.

A partir das conversas com Rosbelli várias ideias surgiram. Fui pensando em cenários, luzes, roupas. Lembro que nesse caso todas as ideias giravam em torno de Rosbelli e de sua personalidade forte, oriunda de sua origem ancestral de povos guerreiros: o pai negro, a mãe indígena. Com base em tudo o que havíamos conversado me ocorreu trabalhar com essa ancestralidade. A beleza e a dignidade nas feições de Rosbelli e seus trajes da Santeria Afrocubana (também conhecida como “regla de oxa”, religião sincrética semelhante ao candomblé brasileiro) completavam o figurino de sua presença feminina. O contraste com a pequenez da kitnet de 30m² onde mora com o marido no bairro Bela Vista em Cuiabá arrematariam a imagem e com ela contaríamos um pouco da tragédia migratória que relega as maiores pessoas a todo tipo de pequenez.

Lembro que era um sábado e eu cheguei na casa de Rosbelli a tarde. Havíamos conversado bastante e já realizado diversas fotos. Victor, seu marido, não estava ainda em casa – é trabalhador de serviços gerais em uma escola da capital mato-grossense. Já quase com o sol caindo ouvimos um cantarolar vindo da rua se tornar mais alto e presente. Era Victor retornando do trabalho. Logo me chamou a atenção o jeito simpático, leve e tranquilo daquele senhor que foi se apresentando e tratando de nos deixar a vontade. Àquela altura já havíamos feito diversas fotos e estávamos cansados, resolvemos dar uma pausa e engatamos uma longa conversa.

O assunto, como não podia deixar de ser, era a história da vinda deles. Me contaram sobre como aquilo que constituía uma vida estável (a casa grande e confortável, a proximidade com o mar, o carro, os amigos, os filhos estudando) foi sendo cada vez mais ameaçado pelas convulsões políticas e sociais em seu país. Como o sonho de uma vida melhor para os mais pobres dos anos chavistas foi se deteriorando nos últimos anos a ponto de obrigá-los a emigrar por temerem pela vida da família. A medida em que conversávamos foi me chamando a atenção a forma como ambos se tratavam, como se referiam um ao outro de forma respeitosa, carinhosa e com uma admiração mútua. Fiquei pensando em como deve ter sido difícil todo esse processo, a perda da estabilidade financeira, o conforto do lar, o recomeço em outro país e sobretudo a separação com os filhos (hoje, dois vivem na Costa Rica e Alejandro, o mais velho, vive também no Brasil, em Blumenau-SC). Me tocou ver aqueles dois ali sentados um ao lado do outro me contando tudo aquilo, as mãos sobrepostas se afagando, os olhares de ambos meio perdidos no horizonte como que lembrando de tudo. Acho que aquela cena me falou mais sobre amor do que qualquer atitude dos “casalsão da porra” do momento. A partir de então resolvi fotografá-los juntos.


Na época, Rosbelli estava desempregada, mas continuava trabalhando em seus projetos de apoio a outros migrantes venezuelanos, realizava falas em audiências e eventos, atividades que continua desempenhando até hoje. A noite, quando ambos estão em casa passam o tempo juntos. Em sua cama Rosbelli escreve, são momentos de sua trajetória, reflexões das mais diversas e outros escritos que está reunindo pensando em talvez publicá-los. Há também registros dos passos dos filhos, em especial escreve para e sobre o pequeno Altair, seu neto, filho de Alejandro que ainda não conheceu. Victor prefere cantar (especialmente rancheras venezuelanas) e ler, embora as vezes também escreva. Ambos compartilham seus diários e cartas. Achei bonito eles lendo coisas antigas deles próprios. Nesse dia Victor estava lendo um livro em português, era uma forma de aprender e praticar a nova língua.

Em Cuiabá e também em diversas outras cidades brasileiras vemos diversos migrantes Venezuelanos pelas ruas. Muitos deles pedindo emprego ou outro tipo de ajuda nos sinais. Quantos serão? Já passam das centenas? Dos milhares? Para mim, mais importante talvez seria saber quem são. Seriam assim tão diferentes da gente? Poderíamos ou deveríamos aprender algo com eles? Relativizar as diferenças, desembaçar as lentes pelas quais vemos o mundo sempre foi um dos objetivos da fotografia e do cinema documental. Há quem acredite que o poder de sensibilização das imagens acabou. Que transformaram-se em mais um produto de fetiche, destinados apenas a preencher paredes de museus, páginas de livros, revistas e agora das redes sociais. Nessa quarentena, revirando arquivos me deparei com esse ensaio e sempre me deu uma vontade enorme de compartilhá-lo. Encontrei no portal A Lente um bom local para fazê-lo. Creio que de outro modo essa história e essas fotos ficariam guardadas comigo não sei até quando. Muita gente conhece esse casal. Rosbelli hoje apresenta um programa de rádio em Cuiabá sobre música latina, além de levar adiante seu trabalho de ajuda aos imigrantes. Victor é figura conhecida onde trabalha, além de já ter sido entrevistado pela mídia local. Mas quantos puderam encontrá-los da mesma forma que eu? Ver o que eu vi aquele dia? Produzir essas imagens? Certamente que nenhum trabalho documental pode ter a pretensão de revelar uma realidade qualquer. Temos que nos contentar em mostrar essas pequenas lascas que nos movem. Nesses tempos rudes, em que os afetos se tornam um inconveniente, espero que essas imagens de amor acrescentem uma camada a mais, por fina que seja, a essa mais recente história de migração ao nosso país.

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