Caso Rubens Valente revela nova censura e põe em risco liberdade de imprensa
https://apublica.org/2022/05/caso-rubens-valente-revela-nova-censura-e-poe-em-risco-liberdade-de-imprensa/
Fonte: Agência Pública
Resumo:
“É um atentado à liberdade de expressão e de informação”, diz jornalista, condenado por STJ e STF a indenizar ministro Gilmar Mendes pela publicação do livro “Operação Banqueiro”
Por Vasconcelo Quadros
Uma sentença reformada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em fevereiro de 2022, já em fase de execução, obrigou o jornalista Rubens Valente a pagar ao ministro Gilmar Mendes, decano do mesmo tribunal, cerca de R$ 310 mil por “danos morais” pela publicação do livro Operação Banqueiro, uma alentada reportagem sobre o banqueiro Daniel Dantas, preso em 2008 pela Operação Satiagraha da Polícia Federal. Numa punição sem precedentes, os dois tribunais ainda impuseram ao jornalista que inclua numa eventual reedição do livro, como direito de resposta, a sentença, acompanhada da transcrição integral e fiel da petição inicial interposta por Gilmar Mendes, algo em torno de 200 páginas que, uma vez enxertadas por força judicial, desfigurariam a obra.
No final de fevereiro, Valente pagou ao ministro R$ 143 mil e, se a execução da sentença não for alterada por decisão do juiz de execução, terá de desembolsar mais R$ 175 mil (corrigidos em valores atuais) como devedor solidário, caso a Geração Editorial, que publicou o livro, não arque com sua parte. O total a ser pago a Mendes representa tudo que o jornalista conseguiu juntar em mais de 30 anos de trabalho como repórter nos principais veículos de comunicação do país. A título de comparação, é um montante quatro vezes maior do que o valor que o ex-procurador Deltan Dallagnol terá de pagar como indenização por danos morais ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo famoso Powerpoint.
No caso Rubens Valente, chama a atenção o conflito de interpretação entre o conteúdo do livro e as alegações do ministro: trata-se de uma obra jornalística, fiel às investigações da Polícia Federal e aos fatos correlatos apurados para traçar os perfis dos principais personagens da história, entre os quais estão, Dantas, o delegado e ex-deputado Protógenes Queiroz, o juiz federal Fausto de Sanctis e, por fim, Gilmar Mendes, este por causa de duas decisões que garantiram a liberdade do banqueiro.
Punição também impede, na prática, reedição do livro Operação Banqueiro
O juiz Valter André de Lima Bueno Araújo, da 15ª Vara Cível de Brasília, que analisou o mérito do processo, não encontrou nada que amparasse a demanda do ministro. Em sua decisão, Bueno Araújo disse que não há “informação falsa ou o intuito difamatório” no livro e afastou também uma pretensa violação a direitos da personalidade previsto na Constituição para proteger a imagem e a honra de qualquer pessoa. Cotejando artigo do então professor de direito e hoje ministro do STF, Luís Roberto Barroso sobre o conflito entre o direito alegado por Mendes e a liberdade de imprensa, o juiz lembrou que o ministro é personalidade pública e, como presidente do STF na ocasião, praticou atos sobre os quais eram claros o interesse público na investigação e divulgação dos fatos. Na sentença, de maio de 2015, o juiz absolveu Rubens Valente e a Geração Editorial, e determinou que o ministro arcasse com as custas do processo.
Mendes então apelou ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), que reformou a sentença, condenando o jornalista e estipulando indenização inicial de R$ 30 mil. A paulada viria dos tribunais superiores: a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não só deu ganho de causa a Mendes e aumentou o valor da indenização, como mandou que os réus incluíssem na eventual reedição de Operação Banqueiro a petição inicial de Mendes e a sentença condenatória. Em agosto do ano passado, por unanimidade dos votos, a Primeira Turma do STF, convalidou a pretensão de Mendes. Apenas um dos cinco ministros, Luís Roberto Barroso, que nos embates internos do STF produziu ácidas críticas a Mendes, não votou. Os outros (Dias Toffoli, Marco Aurélio Mello, este já aposentado, e Rosa Weber), seguiram o voto do relator, Alexandre de Moraes, consolidando a inédita decisão.
Definitiva, a sentença também representa um precedente ameaçador à liberdade de imprensa. Levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), ao qual a Agência Pública teve acesso, mostra que na esteira da jurisprudência criada pelo STF, em quatro processos julgados pelo STJ até dezembro do ano passado foram usados os mesmos argumentos aplicados no Recurso Especial contra o jornalista para condenar outros réus. Nos tribunais estaduais de primeira e segunda instâncias, no mesmo período, em outros dez julgamentos, a mesma jurisprudência serviu como parâmetro para condenação, inclusive para cálculo de reparação por danos morais, com valores semelhantes aos cobrados de Rubens Valente.
Preocupada com os danos da decisão judicial contra o jornalista e com os riscos que representa para a liberdade de imprensa, a Abraji ingressou com uma petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA) para que o órgão avalie o caso.
Procurada pela Pública, a direção da Abraji encaminhou a seguinte nota sobre o caso: “as preocupações a respeito de como o tema estava sendo tratado no Judiciário brasileiro levaram a Abraji, juntamente com o Media Defence e a Fundação Robert Kennedy a buscar o olhar internacional sobre o assunto. Assim, o caso foi encaminhado para a CIDH. A Abraji considera a decisão do STF contra Rubens Valente um precedente perigoso para o regime legal e constitucional da liberdade de expressão no Brasil, porque impõe um dever de indenização muito grave para o exercício da liberdade de imprensa, sobretudo quando não se verifica nenhum abuso por parte do profissional. Sem mencionar os efeitos da autocensura não só sobre Rubens Valente, como também sobre outros jornalistas que desejem cobrir fatos de interesse público contra magistrados”.
Procurado, o ministro Gilmar Mendes disse à Pública que não fala sobre o assunto e sugeriu que a reportagem procurasse seu advogado, Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch, que integra, por indicação do presidente Jair Bolsonaro o grupo de advogados da CorteIDH, que poderá julgar o pedido da Abraji caso a Comissão Interamericana de Direitos Humanos encaminhe o processo. O advogado não retornou o pedido de entrevista encaminhado através de sua assessoria de imprensa.
Jornalistas e entidades ouvidos pela Pública ressaltam que a sentença produz de imediato um efeito intimidatório sobre a investigação jornalística e biografias. O jornalista Octávio Costa, recém eleito presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), vê na decisão do STF uma nova modalidade de censura, com conflito de interesses e abuso de poder em ações movidas por integrantes da mesma Corte que, no final, irá julgar os casos.
“É incrível que se permita que membros do STJ e STF proponham e julguem ações sobre colegas de tribunal. Sem dúvida afeta a liberdade de imprensa; o jornalista fica intimidado pelo assédio judicial. Ninguém é contra o pedido de resposta, mas não pode ser abusivo, com conflito de interesses”, afirma Octávio Costa, ele mesmo réu em outra ação por danos morais movida por Gilmar Mendes, pedindo R$ 150 mil de indenização por reportagem sobre a família do ministro, publicado na revista IstoÉ, em 2018, no período em que Costa dirigia a publicação.
O assédio judicial contra jornalistas se transformou num grande desafio ao jornalismo independente e às entidades que representam a classe. Depois que a lei de imprensa foi extinta, em 2009, as ações por danos morais passaram a ser impetradas diretamente contra jornalistas. As empresas entram como rés solidárias. O caso Rubens Valente traz à tona outras duas questões básicas: a falta de parâmetros para avaliar o valor do suposto dano moral e o teor do que deve ser considerado ofensivo. Ministro Gilmar Mendes já moveu 11 ações contra profissionais da imprensa
Entre 2010 e 2018, segundo a Abraji, o ministro Gilmar Mendes moveu 11 ações nas quais, além de Rubens Valente e Octávio Costa, figuraram como réus outros sete profissionais: Luis Nassif, Patricia Faermann, Tabata Viapiana, Cynara Menezes, Claudio Dantas Sequeira, Monica Iozzi e Paulo Henrique Amorim, falecido em junho de 2019, alvo de seis ações por críticas ao decano do STF. A maioria dos processos está em andamento. Em alguns deles, como o de Iozzi, que pagou R$ 30 mil a Mendes, o valor da indenização foi reduzido. Sobre o caso Rubens Valente, a defesa exigiu pagamento integral e sem parcelamento.
O advogado de Rubens Valente, Cesar Klouri, citou na contestação duas manifestações do STJ para mensurar o valor do suposto dano à imagem, adotadas em casos distintos. Os valores variaram de R$ 15 mil a R$ 20 mil, bem abaixo do valor exigido por Gilmar Mendes e atendido pelos tribunais superiores. Num dos trechos do recurso de apelação, Mendes afirma que o valor da indenização deve levar em conta a gravidade da ofensa, as condições socioeconômicas do ofensor e “deve ser suficientemente elevado para desencorajar novas agressões à honra alheia”. Para o advogado do jornalista, o valor arbitrado é um rombo irrecuperável para qualquer profissional que dependa de salário e uma indiscutível intimidação que, na prática, limita a liberdade de imprensa. De fato, desde que Mendes impetrou a ação, em 2014, o jornalista se absteve de produzir qualquer reportagem sobre Mendes.
Klouri reforçou à Pública que o ministro não é o personagem central do livro, e que não há nada no texto que agrida sua honra. A decisão, segundo ele, contraria toda a orientação do STF sobre liberdade de expressão. “Tamanho é o despropósito, que [a sentença] sequer a encontra precedentes nas Cortes Superiores de Justiça”, argumentou o advogado. Segundo ele, pela decisão, Mendes se tornaria “verdadeiro coautor do livro”, afrontando desde o direito autoral ao “direito à intimidade, individualidade, honra e liberdade de pensamento” do jornalista. O advogado também afirmou ser inadmissível que a obra “seja aviltada com tamanha violência” diante da garantia da liberdade de manifestação no exercício do jornalismo prevista na Constituição.
Lançado em janeiro de 2014 pela Geração Editorial, o livro Operação Banqueiro parte de uma aprofundada apuração jornalística, tendo como fio condutor investigações da Polícia Federal que resultaram na prisão do banqueiro Daniel Dantas, do Opportunity, acusado de lavagem de dinheiro, corrupção e suborno de agentes públicos durante a chamada Operação Satiagraha, à época a maior ofensiva da PF contra a corrupção. No desdobramento das ações, Mendes, então presidente do STF, por duas vezes, num espaço de 72 horas, derrubou os mandados de prisão de Dantas pedidos pelo juiz federal Fausto de Sanctis. Em 2011, com a anulação total da operação pelo STJ, Dantas e os demais réus acusados por corrupção passiva ganharam a liberdade. Os únicos condenados foram o delegado responsável pela investigação, Protógenes Queiroz, por violação de sigilo funcional, e o jornalista que mergulhou na história por seis anos, entre 2008 e 2014, para publicar Operação Banqueiro.
O trecho do livro em que Gilmar Mendes se sente difamado está num capítulo de 42 páginas, “Um Caso Excepcional”, em que Valente traça um perfil do ministro, contando passagens polêmicas de confrontos com o Ministério Público e com a PF, sua atuação como consultor jurídico no Palácio do Planalto nos governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, as relações com advogados que tinham entre os clientes o Opportunity e estrondosos conflitos entre o ministro e seus colegas. Entre os argumentos usados para alegar que o livro teve o propósito de atacar sua reputação, Gilmar Mendes classifica o relato jornalístico como uma “maliciosa distorção” de sua biografia. E afirma que a obra o acusa de “ausência de imparcialidade” ao não se dar por impedido de atuar no caso Dantas por conta de sua relação com dois advogados do Opportunity, Sérgio Bermudes e Arnoldo Wald; também afirma que Rubens Valente deturpou o julgamento do Habeas Corpus que, concedido por ele, garantiu a libertação do banqueiro; por fim, diz que foi “tendenciosa” a narração do jornalista sobre as suspeitas de escutas telefônicas em seu gabinete. O que mais irritou o ministro, porém, foi a descrição sobre sua origem, como membro do clã Mendes de Diamantino (MT), que dominou a política na região pela antiga Arena, partido que deu sustentação à ditadura militar.
O juiz Bueno Araújo, da 15ª Vara Cível de Brasília, confrontou as alegações de Mendes com os trechos das 42 páginas do capítulo citado na petição e derrubou uma por uma, decidindo que “a interpretação dada pelo autor (da ação) é subjetiva demais para ensejar a responsabilização do réu”. Também afirmou: “Não houve emissão de nenhum juízo de valor e não há como concluir, de forma inequívoca, que foram estabelecidas relações de causa e efeito. Ou seja, não há como afirmar que o réu quis dizer que a família do autor ascendeu ao poder justamente porque a cidade entrou em decadência. Extrai-se, no máximo, a simultaneidade desses acontecimentos”, pontuou o magistrado.
Na interpretação do juiz, o direito de divulgação de críticas precede as alegações de uma personalidade pública. “É dado à imprensa e à população questionar a isenção de ânimo de um juiz, sem que isso configure um ataque direto à sua imparcialidade, justamente por se tratar o magistrado de figura que exerce função de Estado e, como tal, sujeita à sindicância de qualquer cidadão”, escreveu. E acrescenta: “Não há como afirmar que o réu faltou com a verdade em sua obra”. Bueno Araújo destacou ainda que Rubens Valente tentou entrevistar o ministro e que foi ele que se recusou a falar.
Nome indissociável do jornalismo investigativo, o repórter Rubens Valente rompeu o silêncio e disse à Pública que sua condenação é injusta, provocou um grande dano à sua vida pessoal e profissional, e a considera “um atentado à liberdade de expressão e de informação”. Leia a entrevista abaixo:“Considero um atentado à liberdade de expressão e de informação”, diz Rubens Valente
Que avaliação você faz da sentença?
O meu livro está longe de ser uma biografia do ministro Gilmar Mendes. Ele é apenas citado num capítulo, a exemplo de vários outros personagens. Porém, tive o cuidado de, ao longo de um ano inteiro, na fase de elaboração do livro, procurar ouvir pessoalmente as posições do ministro Gilmar Mendes. Ele – que constantemente deu e dá entrevistas aos veículos de comunicação ao longo de muitos anos – nunca aceitou tratar comigo a frente das inúmeras declarações e decisões que tomou sobre a Operação Satiagraha. Em vez de me receber para debater o assunto cara a cara, ele esperou o lançamento do livro e abriu o processo. O juiz de primeira instância nos absolveu (eu e a editora) após desmontar todos os argumentos apresentados pelo ministro, um a um. Mas o ministro recorreu com os exatos mesmos argumentos, que passaram a ser aceitos pelo desembargador relator do processo no Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Jamais o livro foi submetido, por exemplo, a uma perícia judicial, uma medida essencial porque tanto meus argumentos quanto os do juiz de primeira instância contradiziam frontalmente as conclusões dos juízes do Tribunal de Justiça do DF. O Judiciário – a saber: Tribunal de Justiça do DF, o STJ e o STF – nunca coletaram depoimento de nenhuma pessoa que poderia falar sobre o que está escrito no livro, inclusive eu, que nunca fui ouvido em depoimento em juízo por nenhum magistrado no Brasil. A sentença acolheu todas as alegações de Gilmar Mendes, as mesmas que haviam sido cabalmente desconstituídas pelo juiz de primeira instância.
Qual a repercussão da decisão sobre sua vida pessoal e profissional?
Sou repórter desde os 19 anos de idade, [comecei] em 1989, e durante todo esse tempo tratei de temas absolutamente espinhosos e complicados que envolveram inúmeras acusações e suspeitas contra pessoas e empresas, como operações policiais, comissões parlamentares de inquérito, processos judiciais, investigações jornalísticas próprias. Porém, jamais fui condenado dentro ou fora do exercício da profissão. Em 21 anos na Folha de S. Paulo, escrevi cerca de 2.500 textos, mas respondi a um único processo, do qual fui absolvido em todas as instâncias. Até 2016, jamais havia sido condenado em qualquer instância. Mas isso tudo muda quando falo, com palavras totalmente objetivas, de um ministro do Supremo. Com base nas alegações do ministro, juízes tanto do Tribunal de Justiça quanto do STJ e do STF passaram a se referir a mim com as piores palavras e expressões, como se eu fosse um bandido, um irresponsável, que merece ser severamente punido. Uma pessoa que não sofreu esse impacto – e espero que nunca sofra -, que considero inteiramente injusto e desproporcional, não poderá entender o seu significado no campo pessoal. A primeira coisa que me vêm à mente são os brasileiros jogados nos calabouços com base em sentenças frágeis e mesmo absurdas. Se eu já sofro essas consequências por um processo cível, imagino o que vive um brasileiro condenado injustamente à cadeia.
Além dos gastos com minha defesa jurídica e de horas e horas trabalhando para minha defesa, agora somos informados de que a Justiça passa a me considerar como “devedor solidário” da editora, mesmo eu tendo já quitado metade da indenização. A posição do Judiciário, na forma atual, condena à dilapidação do meu patrimônio e das minhas reservas reunidas ao longo de 32 anos de trabalho para uma [futura] aposentadoria, impondo valores estratosféricos para um jornalista como eu, que sobrevive unicamente do seu salário. O próprio Supremo já decidiu anos atrás (ADPF 130) que é preciso observar uma “cláusula de modicidade” quando o autor da ação é um agente público, porque “todo agente público está sob permanente vigília da sociedade”. E recomenda ainda que seja verificada “a situação pessoal do ofendido”, para que a indenização não se converta “em fonte de enriquecimento”. Novamente isso não foi observado no meu caso. Com mais de R$ 310 mil é possível comprar um carro de luxo, um apartamento, uma casa.
Você se sente impedido de tratar de Gilmar Mendes em reportagens?
Desde que ele abriu o processo, há 8 anos, eu me considero impedido de realizar investigação jornalística sobre o ministro Gilmar Mendes. E não faltaram oportunidades, pessoas me procurando para pedir que eu checasse situações e fatos relativos ao ministro. Porém, diferentemente de magistrados que julgam processos mesmo tendo relações com pessoas envolvidas na causa, eu me declaro suspeito de fazer tais investigações. Para evitar qualquer questionamento ético sobre mim e sobre as duas empresas nas quais trabalhei desde o lançamento do livro, a Folha e o UOL. Nesse sentido, a ação aberta pelo ministro teve o efeito imediato de restringir o meu trabalho jornalístico.
Do que, afinal, Gilmar Mendes te acusa?
Eu tenho certeza de que as pessoas que leram o livro, que vendeu milhares de exemplares, sabem que jamais ofendi ou agredi o ministro. Basta ler a obra. Se fui crítico em algum ponto, isso é parte indissociável de um jornalista que escreve algo sobre alguma realidade, como bem disse o juiz que me absolveu em primeira instância. Todos os dias centenas de jornalistas são críticos sobre algum servidor público em algum lugar do Brasil.
Para abrir a ação, o ministro misturou oito tópicos que estão e não estão no livro, incluindo entrevistas que concedi na época do lançamento do livro. Por exemplo, a minha participação no programa “Roda Viva”, da TV Cultura. A íntegra da entrevista está disponível na internet. Eu desafio qualquer brasileiro – e qualquer magistrado – a encontrar qualquer ofensa dirigida ao ministro Gilmar Mendes naquela entrevista. Se eu tivesse proferido alguma ofensa a Gilmar Mendes naquele programa, ele poderia, claro, utilizar o mecanismo do Direito de Resposta, previsto em lei. Utilizou? Não. O ministro chega a usar um texto publicado no site “Portal dos Jornalistas” que eu – pasme – jamais escrevi. O site esclareceu que o texto, imediatamente retirado do ar após o meu contato, fora produzido pela sua redação. Eu sou acusado pelo ministro por um texto que nunca escrevi, nós demonstramos que não escrevi, e mesmo assim o Judiciário dá ganho de causa ao ministro.
Desses oito tópicos, ele fala constantemente de um trecho do livro que cita suas relações com advogados do banqueiro Daniel Dantas. Eu explico, por exemplo, que a mulher do ministro trabalhava e [ainda] trabalha no escritório de um importante advogado que prestava serviços ao mesmo banqueiro. Há algo equivocado ou fantasioso nisso? Não. É tudo verdade, tanto que já foi amplamente publicado pela imprensa. E isso foi admitido também numa entrevista concedida pela própria mulher do ministro à revista piauí. E mesmo assim sou condenado.
Qual o reflexo da sentença para o jornalismo independente? O que muda?
Não é preciso ir muito longe para entender o recado dado pelo Judiciário brasileiro, em especial pelo Supremo Tribunal Federal, nesta decisão: há um limite para o jornalismo e o limite é escrever criticamente sobre um membro da Corte. O efeito é intangível, já está na cabeça dos jornalistas que cobrem o Judiciário e se espalha pelas redações na forma da autocensura. As pessoas podem questionar: ‘ah, mas um juiz não tem direito de abrir um processo contra um jornalista?’ Tem, mas duas observações: 1- o conceito de imagem e honra deveria ser amenizado quando a pessoa detém um alto cargo público, ainda mais quando são pessoas que exercem forte influência política nos rumos do país. Sob pena de impedir o livre exercício do jornalismo no país. Já imaginou se todo jornalista que caracterizou Jair Bolsonaro como “genocida” fosse processado, julgado e condenado? Bolsonaro ficaria milionário. Esse princípio, que leva em conta o constante escrutínio salutar sobre uma alta figura pública da República, desapareceu completamente no julgamento do meu caso; 2-justamente por se tratar de um processo aberto por um membro do Poder Judiciário, ainda mais um membro da importância, do poder e da influência de um ministro do Supremo, o Judiciário deveria tomar medidas extras e imprescindíveis para garantir o devido processo legal e o direito à ampla defesa. Como, por exemplo, solicitar perícias, tomar depoimentos. Ao processar um jornalista, um ministro do STF, que é uma corte recursal e tem influência sobre todo o Judiciário, está jogando o jogo dentro do seu próprio campo. Seria como a Federação Nacional dos Jornalistas processar um juiz.
O que o caso representa para a imprensa/liberdade de expressão no contexto da democracia?
O meu processo já está sendo imediatamente usado como jurisprudência em diversas ações de indenização sobre danos morais em diferentes partes do país. Os reflexos ainda são incalculáveis. Se o STF decide que um jornalista pode ser condenado nos termos em que fui, então a porteira foi aberta.
Você pretende reeditar “Operação Banqueiro”?
A decisão tomada pela Turma do STF, com relatoria do ministro Alexandre de Moraes, colega de prédio e de profissão de Gilmar Mendes, provocou na prática o banimento do meu livro do mercado editorial brasileiro. Ela exige que, em eventuais futuras edições, nós publiquemos a íntegra não só da decisão do TJ-DF, mas também a íntegra da petição do ministro Gilmar Mendes. Por decisão minha e da editora, ele jamais será reeditado nesses termos. Quando os últimos exemplares forem vendidos, vai desaparecer das livrarias. Reeditá-lo seria uma fraude intelectual e editorial, a menos que eu assinasse o livro junto com o ministro Gilmar Mendes e com o desembargador do TJDF, porque na prática eles se tornariam coautores da obra. Nosso cálculo é o que o livro ganharia cerca de 200 páginas adicionais, ou seja, uma outra obra enxertada dentro da minha obra.
Considero um atentado à liberdade de expressão e de informação. A partir dessa decisão do STF, basta que uma pessoa obtenha decisão favorável numa causa de danos morais para inviabilizar a comercialização do livro inteiro. Basta redigir uma petição de 100, 200 páginas. Nem as piores obras negacionistas, recheadas de fake news, sofreram tal determinação do Supremo Tribunal Federal. Tudo porque escrevi sobre um ministro do Supremo e ele não gostou.
Créditos de imagens
Divulgação
Nelson Jr./SCO/STF
Roque de Sá/Agência Senado
*Alteração às 10:50 de 06/05/2022: corrigimos o nome da CIDH de Corte para Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
*Alteração às 10:50 de 06/05/2022: Rodrigo Mudrovitsch integra a CorteIDH e não a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A reportagem corrigiu a informação.
Reportagem originalmente publicada na Agência Pública
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