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http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/10/11/gargalo-na-sala-de-aula/
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Gargalo na sala de aula
Baixo desempenho no aprendizado de ciências prejudica formação de pesquisadores e deixa o país pouco competitivo
FABRÍCIO MARQUES | Edição 200 - Outubro de 2012
A precariedade do ensino de ciências desponta como uma incômoda pedra no meio do caminho do Brasil, num momento em que o país ambiciona internacionalizar sua pesquisa científica e é desafiado a formar recursos humanos qualificados em grande quantidade para acelerar seu crescimento. O obstáculo é tangível na série histórica de resultados do Pisa, sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, exame que testa, a cada três anos, o nível de competência de adolescentes de 15 anos em leitura, matemática e ciências e é aplicado em mais de 60 países. O Brasil participou da prova de 2009 com uma amostra de 20.127 estudantes e obteve uma média de 405 pontos em ciências. O desempenho superou os 390 pontos obtidos no exame de 2006, mas está muito distante do de países desenvolvidos ou mesmo dos emergentes com os quais compete diretamente. A China, por exemplo, alcançou 575 com um time de estudantes da cidade de Xangai (ver gráfico ao lado). No pelotão do Brasil aparecem países como a Colômbia (402 pontos), a Tunísia (401) e o Cazaquistão (400). “Os alunos brasileiros tiveram um desempenho ruim tanto na parte da prova que avalia conceitos teóricos quanto naquela que exige a solução de problemas concretos”, observa a socióloga Maria Helena Guimarães de Castro, que entre 1995 e 2002 foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) do Ministério da Educação e coordenou a entrada do Brasil no Pisa em 2000.
O Pisa divide os alunos em seis categorias: do nível 1, no qual os jovens só conseguem apresentar explicações científicas que sejam óbvias, até o nível 6, no qual já conseguem demonstrar capacidade consistente de raciocinar de uma forma cientificamente avançada. A situação do Brasil nessa escala é desalentadora. A maioria (83%) da amostra brasileira situou-se até o nível 2. Significa que só possuem conhecimentos para dar explicações em contextos familiares e tirar conclusões baseadas em pesquisas simples.
Os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne as economias mais avançadas do planeta e criou o Pisa, obtiveram desempenho bastante superior: mais da metade dos alunos situava-se entre os níveis 3 e 4, sinal de que são capazes de refletir e tomar decisões usando evidências científicas além de interpretar e usar conhecimentos científicos de várias disciplinas. Menos de 4% dos alunos brasileiros estavam acima do nível 4 da prova de ciências (no nível 6, o mais alto, o resultado brasileiro foi de 0%). É com esse contingente, formado pela elite dos estudantes, que o país conta para criar as futuras gerações de pesquisadores. Outras nações dispõem de um contingente bem maior para cumprir essa missão. Na Coreia, mais de 40% dos alunos estão acima do nível 4. “Os países com melhor desempenho fazem uma boa gestão dos recursos disponíveis e valorizam a carreira docente. São premissas que o Brasil tem de seguir para melhorar”, diz o físico Marcelo Knobel, pró-reitor de Graduação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Num artigo publicado em parceria com Fernando Paixão na Folha de S. Paulo, Knobel chegou a conclusões muito semelhantes relacionando o baixo desempenho dos alunos na prova de matemática do Pisa com a escassez de engenheiros.
Há experiências bem-sucedidas para melhorar a educação científica no Brasil. Em muitos casos, baseiam-se em atividades abertas e experimentais, com o professor fazendo o papel de facilitador das discussões em grupo, o uso de referências do cotidiano dos alunos e a adoção de material didático capaz de estimular a construção do conhecimento. Em 2009, o sociólogo Simon Schwartzman e a pesquisadora Micheline Christophe, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), fizeram um estudo por encomenda da Academia Brasileira de Ciências que analisou várias experiências, algumas delas voltadas para a formação dos professores, outras calcadas em atividades na sala de aula – mas elas só foram aplicadas em ambientes restritos e isolados, sem alcançar o grosso dos alunos nas escolas públicas. “Foi possível observar como essa metodologia cria um ambiente de trabalho motivante e participativo, diferente das aulas em que professores ditam os conteúdos que os alunos anotam, com os problemas associados de incompreensão, desinteresse e indisciplina”, diz o estudo.
Um exemplo é o projeto ABC da Educação Científica Mão na Massa, resultado de um acordo de cooperação entre as academias de ciências do Brasil e da França, com foco nos primeiros anos do ensino fundamental. Iniciado em 2001, suas atividades consistem em programas de formação de professores e orientadores pedagógicos e a produção de materiais para trabalho experimental nos cursos de formação e nas escolas. As atividades irradiaram-se para mais de 10 cidades de vários estados, partindo de três núcleos, a Estação Ciência, museu interativo de ciências da USP, o Centro de Difusão Científica e Cultural da USP em São Carlos e a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. “Em sua maioria, as experiências mantêm-se pela presença de um especialista filiado a uma universidade ou centro de ciências, trabalhando individualmente ou com pouca ajuda”, diz o estudo. Mas o saldo do programa é diversificado, com a produção de módulos didáticos, além de cursos e oficinas para professores de vários tipos.
A experiência com ensino de ciências da empresa Sangari Brasil é outro exemplo. Ela criou módulos de ensino de ciências que são usados em escolas particulares e também em sistemas públicos, como os do Distrito Federal, ou os municípios do Rio de Janeiro e de Manaus. Os professores recebem kits com módulos de 16 aulas, que inspiram os debates e a solução de problemas na sala de aula, e são capacitados por especialistas para lidar com esse material. “Funciona com base em três premissas: o uso do material didático, a formação do professor e o monitoramento das escolas, por meio de tutores. E não dá certo se qualquer uma das três premissas deixar de existir”, afirma Maristela Sarmento, diretora educacional da Sangari. O projeto funciona como parte do currículo, por exemplo, no Rio de Janeiro, mas também é oferecido como atividade extracurricular em escolas privadas de tempo integral. “Os alunos das escolas privadas têm um repertório maior e às vezes se apropriam mais facilmente dos conhecimentos. Mas a curiosidade e o entusiasmo dos alunos de escolas públicas são impressionantes”, diz.
No campo dos museus de ciências, o estudo destaca o Espaço Ciência, de Pernambuco, museu a céu aberto do governo estadual instalado numa área de 120 mil metros quadrados entre Olinda e Recife, com mais de 200 equipamentos interativos em tópicos como física, química, biologia, matemática e geografia. É dotado de instalações como um espelho d’água, uma hidrelétrica gerando corrente, um planetário e uma caverna, e ainda abriga uma área de mangue utilizada para experiências e espaço de educação ambiental. Os visitantes são convidados, por exemplo, a identificar as espécies que habitam o lugar. Todos os anos, 150 mil visitantes passam pelo museu.
O número e a qualidade dos museus de ciência melhoraram nos últimos anos, mas não se criou ainda uma tradição de visitação desses espaços. “Nos países da Europa visitar museus faz parte da tradição das famílias e das escolas. Lá os museus são bastante aproveitados pela sociedade e se tornam ferramentas importantes para disseminar o pensamento científico e para a formação dos cidadãos”, diz Ernst Hamburger, professor de física da USP, que dirigiu o museu Estação Ciência. “Aqui no Brasil o público ainda é restrito. Nenhum museu ultrapassa a marca de 1 milhão de visitantes por ano, o que é pouco para um país com a nossa população”, afirma o professor, para quem a estratégia deveria ser a de levar exposições dos museus para a periferia.
O estudo de Schwartzman alerta que há uma série de desafios a cumprir para aproveitar em larga escala as boas experiências. Uma delas é garantir que os projetos sejam permanentemente monitorados e apoiados. Outro desafio, esse mais complexo, é padronizar e sistematizar os conteúdos a serem dados pelos professores, o que, de certa forma, se contrapõe ao caráter aberto e interativo das experiências. “O problema é que esses processos abertos só funcionam bem quando o professor é muito bem formado e os estudantes também tenham passado por um processo adequado de formação inicial, através do qual tenham consolidado a capacidade de leitura, escrita e uso de conceitos básicos da matemática”, sustenta o estudo.
Para Maria José Pereira Monteiro de Almeida, professora da Faculdade de Educação da Unicamp, a padronização, nos moldes em que é feita hoje, produz resultados danosos. “Muitas escolas adotaram sistemas de ensino que conspiram contra o ensino criativo e participativo. Também se perde a perspectiva de que o trabalho do professor é intelectual. Nesses sistemas o professor só precisa seguir o que está escrito em apostilas, que se considera que fez seu trabalho”, afirma. Maria José lidera o Grupo de Estudo e Pesquisa em Ciência e Ensino da Unicamp, que produziu uma série de contribuições sobre a educação científica. Mostrou, por exemplo, a relevância de se ensinar física moderna e contemporânea no ensino médio, embora o ensino siga limitado à física clássica na maioria das escolas.
Atualmente, o grupo liderado por Maria José investiga, no âmbito do Programa de Melhoria do Ensino Público da FAPESP, estratégias para superar o distanciamento entre as pesquisas que abordam problemas do ensino básico, na área de educação em ciências, e a realidade das escolas. “Temos diversos programas de pós-graduação em ensino de ciências no Brasil, mas os pesquisadores que eles formam em geral acabam empregados nas próprias universidades, enquanto os professores e os alunos, que lidam no dia a dia com a questão, têm pouco acesso a esse conhecimento”, afirma.
O Brasil tem 649 pesquisadores por milhão de habitantes. É um índice baixo, comparado ao de países como o Japão (5.543 pesquisadores por milhão de habitantes), os Estados Unidos (4.726), a Coreia (4.725) ou a China (1.082). No estado de São Paulo, a situação é um pouco melhor, com 1.147 pesquisadores por milhão de habitantes. A necessidade de formar os futuros cientistas é um motivo crucial para melhorar o ensino de ciências, mas há outras razões fundamentais. “Uma delas é fazer com que todos os cidadãos de uma sociedade moderna entendam as implicações mais gerais, positivas e problemáticas, daquilo que hoje se denomina ‘sociedade do conhecimento’, e que impacta a vida de todas as pessoas e países”, diz o sociólogo Simon Schwartzman. Outra razão, observa o professor, é “fazer com que as pessoas adquiram os métodos e atitudes típicas das ciências modernas, caracterizadas pela curiosidade intelectual, dúvida metódica, observação dos fatos e busca de relações causais, reconhecidas como fazendo parte do desenvolvimento do espírito crítico e autonomia intelectual dos cidadãos”.
A pesquisa brasileira sobre ensino de ciência é prolífica – mas tem pouco alcance nas políticas públicas e só ocasionalmente ganha aplicação nas escolas. “A cada pelo menos dois anos há vários encontros nacionais de educação de ciência em que um bom volume de boas pesquisas é apresentado”, diz a professora Maria José, da Unicamp. “Mas quando as experiências são transpostas para a realidade das escolas acabam esbarrando em problemas estruturais, como a falta de professores, e não vão adiante”, explica. O conhecimento produzido também tem dificuldade de chegar às escolas. “Há muita pesquisa sobre as escolas, mas pouca pesquisa com e na escola e envolvendo os professores da escola”, diz Maurício Compiani, professor do Instituto de Geociências da Unicamp e especialista em ensino de ciências. Ele observa que há pouca articulação entre os pesquisadores. “Não existe, nesse estado com tantos grupos de pesquisa em ensino de ciências, um projeto temático da FAPESP que trate das questões mais gerais do ensino de ciências”, afirma.
Formar um professor talhado para ministrar educação científica de qualidade não é tarefa simples. “Para ensinar bem ciências, o professor precisa fazer em sala de aula um trabalho baseado em investigação. Mas ele não é formado para isso. Como pode ensinar investigação se não fez investigação?”, pergunta o físico Ernst Hamburger. Ele observa que leva anos para um bom professor adquirir competência. “Exige-se tanto dos professores de ciências quanto se exige de médicos e engenheiros, mas o abismo salarial entre essas categorias é enorme”, afirma. Hamburger lembra que o progresso quantitativo da educação brasileira nos últimos 50 anos, com a inclusão de larga fatia de brasileiros aos bancos escolares, foi impressionante. “Sou otimista, mas valorizar a profissão de professor e sua formação é condição necessária para continuar a progredir.”
A experiência do projeto Encontros USP-Escola mostra que há professores ávidos por melhorar sua formação. Nas férias de julho e de janeiro, professores do ensino fundamental e médio são convidados a frequentar um conjunto de atividades, entre cursos, palestras e oficinas, voltados para o ensino de física, química, biologia, matemática, astronomia e inglês, e também para o aprendizado de metodologias de sala de aula em que o aluno participe ativamente. “Começamos em 2007 com 50 professores e hoje temos mais de 250 frequentando 10 cursos ministrados”, diz Vera Henriques, coordenadora do projeto, professora do Instituto de Física da USP. Ela afirma que a divulgação dos cursos pelas diretorias de ensino costuma ser falha e que a propaganda boca a boca divulga a iniciativa. “Há professores muito interessados. Alguns deles formaram o Grupo de Trabalho USP-Escola, em conjunto com alguns professores e estudantes da USP. O grupo se reúne mensalmente para desenvolver material didático experimental e estratégias de ensino participativas. Atualmente está preparando uma revista eletrônica que será sediada no Instituto de Física, com o intuito de divulgar materiais e ideias para um ensino de qualidade”, diz.
Há uma tendência nas universidades brasileiras de preparar melhor o professor para lidar com a realidade complexa dos alunos, especialmente nas escolas públicas. Maurício Compiani, da Unicamp, conta que desde 2006 passaram a ser exigidos dos futuros professores estágios de 400 horas nas escolas antes de se formarem. “Agora é que os primeiros professores formados por essa regra estão chegando ao mercado de trabalho e a expectativa é que saibam ver o aluno como um sujeito real, e não idealizado. Hoje o que é valorizado no conhecimento científico é o lado cognitivo, hipotético, lógico e dedutivo. Mas há outros conhecimentos, culturais, afetivos, artísticos, que estão envolvidos nessa criança. O professor precisa fazer a mediação do conhecimento científico com o conhecimento cotidiano que essa criança traz”, afirma. Num projeto vinculado ao Programa de Melhoria do Ensino Público, da FAPESP, realizado entre 2006 e 2010, o grupo liderado por Compiani articulou-se com outro projeto, sobre recuperação ambiental em Campinas, para levar a escolas da cidade conhecimentos socioeconômicos e de geociências com potencial para aproximar o ensino da realidade dos professores e alunos. O professor adverte, porém, que há dificuldades às vezes intransponíveis para obter avanços. “Há escolas públicas na periferia nas quais a rotatividade de professores é de 40% todos os anos. É impossível formar equipes se não há permanência do grupo”, afirma. Outro ponto vulnerável seria a aversão das escolas em estimular a cooperação entre os alunos. “É raro ver um estudante que seja bom em todas as disciplinas”, diz Maria José, da Unicamp. “Há alunos que têm bloqueio em determinadas disciplinas, mas conseguem aprender em conjunto com outros colegas. O costume das escolas, porém, é estimular a competição entre os alunos”, diz.
Pode parecer paradoxal, mas o aluno brasileiro diz ser bastante interessado em ciências. Dados do Pisa mostram que os estudantes do país declaram um elevado apoio às ciências, maior do que o observado até em países desenvolvidos, mas informaram pouco se utilizar do conhecimento científico em benefício próprio. “O que falta, efetivamente, é encontrar meios de fazê-los se apropriar das ciências, e isso a escola brasileira não tem feito”, diz Simon Schwartzman.
Renato Pedrosa, do Centro de Estudos Avançados da Unicamp e ex-coordenador do vestibular da universidade, observa que o país vem obtendo avanços lentos na qualidade do ensino – a série histórica do Pisa mostra que o Brasil aumentou de 365 pontos em ciências em 2000 para 405 em 2009. “Os resultados do Pisa e de outras avaliações mostram que o desempenho brasileiro é desastroso quando comparado com outros países. Embora se observe uma melhora no desempenho ao final do ensino fundamental, ela não se traduziu em melhora no ensino médio, no qual a evasão ainda é muito alta”, afirma Pedrosa.
Para ele, o aumento do nível do emprego e a estratégia do MEC de considerar graduado no ensino médio qualquer estudante aprovado no Enem podem explicar parte da evasão. “No caso do emprego, é fácil de entender. Mais preocupante é o MEC conceder diploma de ensino médio a qualquer aluno que tenha obtido 400 pontos no Enem, quando se sabe que esse desempenho está próximo do alcançado por quem responde às provas aleatoriamente, ou seja, por quem chuta as questões”, afirma. “Agora a nota mínima foi ampliada para 450 pontos, mas mesmo assim é baixa.” Os resultados das avaliações da educação científica revelam, diz Pedrosa, uma realidade dramática. “Em alguns estados brasileiros, como Alagoas e Maranhão, o desempenho dos alunos é baixíssimo e não reage. O desempenho mais alto também vem dos mesmos lugares, como Rio Grande do Sul, Distrito Federal, São Paulo e Minas Gerais”, diz. Sem uma estratégia de impacto, diz Pedrosa, o Brasil vai demorar mais de 50 anos para alcançar os resultados educacionais de países com os quais compete. “É preciso garantir condições melhores para as escolas frequentadas pelos mais pobres, cujas famílias têm mais dificuldade em apoiá-los. O caminho passa, certamente, pela escola integral. Isso pode não ser tão importante para estudantes de classe média alta, mas para os demais faz uma diferença enorme”, afirma.
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