Saturday, 17 November 2018

Construção coletiva

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Construção coletiva

Edição do mês
Construção coletiva
Aula pública 'No país da escravidão, de que fascismo falamos?', no Teatro Oficina, São Paulo (Foto: PC Pereira/ Revista CULT)

A dez dias do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, numa quinta-feira chuvosa, cerca de 650 pessoas lotaram o Teatro Oficina, região central de São Paulo – e outras tantas se apertaram na calçada, do lado de fora – para participar da aula pública “No país da escravidão, de que fascismo falamos?”, convocada pelo Núcleo de Consciência Negra da USP, pela UNEAFRO-Brasil e pelo Aparelha Luzia.
Até aquele dia, que havia começado com a notícia da compra ilegal de pacotes de disparos em massa de mensagens anti-PT pelo WhatsApp, esquema revelado pela Folha de S.Paulo, o candidato de extrema direita à Presidência da República Jair Bolsonaro (PSL) oscilava pouco nas pesquisas eleitorais e alcançava 59% dos votos válidos, enquanto Fernando Haddad (PT) chegava a 41%.
Diante desse cenário, núcleos do movimento negro de São Paulo articularam, em menos de uma semana, um encontro para discutir formas de resistência ao avanço do fascismo – ideologia que, como prática política, nunca deixou de existir para o povo negro, diz à reportagem da CULT Mariléa Almeida, pesquisadora, doutora em História pela Unicamp e uma das mediadoras do debate. “Claro, do ponto de vista histórico, o fascismo é datado, mas como forma de política, se pensarmos em como ele se expressa na violência cotidiana, na tentativa da impossibilidade da vida na sua expressão mais plena, para o povo preto infelizmente não é.”
Isso porque, nas periferias, “a polícia mete o pé nas casas, arromba, prende, silencia e mata há muito tempo”, ressalta Maria José Menezes, militante do Núcleo de Consciência Negra da USP. “Até aqui vivíamos ou não um momento de totalitarismo, de desrespeito, de militarização? Isso é estranho para alguém que está aqui?”, questiona, no microfone, afirmando que a escalada do candidato do PSL representa uma “exacerbação” dessa mesma violência.
“A figura de Bolsonaro aglutinou ressentimentos que antes estavam um pouco difusos na sociedade em relação à ocupação de espaços que até pouco tempo a gente não ocupava, como as universidades”, diz Mariléa que realizou doutorado sanduíche na Universidade de Columbia, em Nova York, onde estudou os feminismos negros norte-americanos.
Educador, ativista social e militante de movimentos de cursinhos populares, Douglas Belchior concorda. “Bolsonaro personifica todo o ódio e tudo aquilo que o Brasil tem acumulado em sua própria história. A gente está num momento em que os horrores não são mais maquiados ou escondidos, são enunciados, são arrotados em cada esquina e, pior, eles encontram colo em grande parte da população, porque, sim, ela foi historicamente e culturalmente construída para ser conservadora nos costumes. E isso agora está exposto.”
(Foto PC Pereira)
Leci Brandão fala na aula pública ‘No país da escravidão, de que fascismo falamos?’, no Teatro Oficina, São Paulo(Foto PC Pereira/Revista CULT)
O organizador da UNEAFRO Brasil, rede de articulação e formação de jovens e adultos moradores de regiões periféricas do país, quase eleito para a Câmara dos Deputados nas eleições de 2018 com 46 mil votos, acredita que a militância desacompanhou a inteligência leiga; “do homem na estrada, como diria Mano Brown; do cidadão comum, como diria Belchior”.
“Faz todo o sentido para a vida dessas pessoas pedir mais polícia e mais cadeia: trabalho muito, ganho pouco, compro alguma coisa e alguém vem e rouba. Cadeia pro vagabundo, morte pro vagabundo. Não importa dar informações racionais diante da vivência do sujeito. Em que medida nossos argumentos conversam com as vivências das pessoas?”, questiona.
Para a ativista, educadora e artista Erica Malunguinho, os argumentos “não batem” também devido a uma moralidade normativa racista, xenofóbica, transfóbica e homofóbica construída compulsoriamente na mentalidade dos cidadãos. “Eu gosto sempre de perguntar: qual é o Bolsonaro que habita em você? Qual é o Bolsonaro que habita em cada um de nós? Quando a gente naturaliza a ausência dos corpos negros, trans e LGBTs nos espaços, damos passagem para que essa lógica bolsonarista adentre. Foi a naturalização das nossas ausências que construiu esse monstro.”
Eleita deputada estadual pelo PSOL com mais de 50 mil votos, ela se junta a Leci Brandão (PCdoB) no legislativo de São Paulo, que elegeu 56 novos parlamentares – 15 deles do PSL, partido de Bolsonaro, que de inexistente na Alesp passou à maior bancada da Casa. “Se a gente não estiver nesses lugares, outras pessoas vão estar para dar vazão a essa onda, a essa enxurrada, a esse rio perene chamado fascismo”, afirma.
Vem daí a importância de ocupar a institucionalidade com mandatos comprometidos com as pautas do movimento negro. “Para a gente que tem essa corzinha aqui, a dificuldade de encontrar a nossa cara nesses lugares é muito grande. Nós não estamos nos poderes deste país, em nenhum deles”, critica Leci Brandão, eleita para o terceiro mandato na Alesp. Ela ressalta a importância da construção de mandatos coletivos, com a participação da sociedade civil na elaboração de projetos de lei: “Não basta só ocupar a política, é preciso ocupar e ter uma atuação de comprometimento e identidade com o povo que representa.”
Nas eleições de 2018, o número de senadores, deputados estaduais e federais que se autodeclaram pretos e pardos subiu 25% em relação ao último pleito, representando 444 dos eleitos para as 1.626 vagas. Na Câmara dos Deputados, o número de parlamentares negros cresceu quase 5% em relação a 2014, representando 24,36% da composição da Casa. No Rio, três ex-assessoras da vereadora Marielle Franco, assassinada em março, foram eleitas. A Bahia elegeu sua primeira parlamentar negra, Olívia Santana (PCdoB), com quase 58 mil votos, e Pernambuco levou à assembleia Robeyoncé Lima (PSOL), mulher negra transexual e primeira advogada a ter o direito de usar o nome social na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do estado.
“Isso é luta. Faz parte de deslocamento, do que é que a gente fez com a nossa raiva”, diz Mariléa Almeida. “Essa eleição específica tem mostrado o que a gente já sabia: os partidos como estão aí não nos representam, as organizações políticas como estão aí não nos interessam. A gente tem usado essas estruturas para nos aquilombar, para fortalecer a nossa luta.”
Advogada popular, eleita deputada estadual em Minas Gerais com quase 18 mil votos, Andreia de Jesus afirma que a saída não é “reproduzir a lógica democrática branca, colonizadora, que continuamos reproduzindo na relação de trabalho: quanto mais trabalho, mais dinheiro, menos tempo, menos raciocínio, menos informação”. “Vamos ter que fechar o corpo, abrir o coração, construir junto e aprender com essa juventude que está hackeando a política. Resgatar a nossa ancestralidade, a nossa cultura roubada. Não adianta ocupar a institucionalidade e reproduzir a lógica do colonizador para superar a opressão”, diz. “É possível uma política do cotidiano, de inclusão das minorias políticas.”
Até o fechamento desta edição, construia-se um clima de virada em torno da campanha de Fernando Haddad, que de acordo com a última pesquisa DataFolha publicada no dia 25 de outubro, tinha 44% dos votos válidos, contra 56% do outro candidato. Mas, mesmo com a improvável vitória do candidato petista, a violência autorizada por Jair Bolsonaro não volta para o armário na segunda-feira pós-eleições, lembra Douglas Belchior.
“Esse monstro tem que ser destruído nas próximas semanas, mas também tem que ser enxotado das mentes e dos corações, das periferias das cidades de qualquer lugar do mundo para sempre. Esse é um trabalho constante de destruição dessa guerra que eles declaram contra nós, mas que nós venceremos, porque nós sempre vencemos, ou não estaríamos aqui”, declara Maria José Menezes, do Núcleo de Consciência Negra da USP.
Mais de 650 pessoas se reuniram no Teatro Oficina, em São Paulo, para debater o avanço do fascismo no Brasil (Foto PC Pereira/Revista CULT)
Nesse contexto, Erica Malunguinho afirma que discutir raça é fundamental para pensar um novo processo de nação. “É preciso romper com essa lógica que só cria tragédia, dor e violência. Ou a gente pactua que a partir de agora vamos olhar pra todo lado, vamos contar os pretos, os LGBTs presentes seja num bar, seja no trabalho, em qualquer lugar que estivermos, e vamos nos incomodar com a ausência desses corpos, ou a gente não vai avançar”, diz. “Nós vimos toda a estrutura se construir sobre a nossa cabeça. Criamos inteligências, estratégias de sobrevivência, e por isso temos habilidade para desconstruir essa estrutura violenta. Retomando a máxima de Angela Davis, quando as mulheres negras se movem, tudo se move. Nossa luta fala de si, sobre si, mas é para todos, é pela emancipação coletiva.”
Segundo Belchior, tanto o sucesso daquele encontro organizado em poucos dias quanto a força de candidaturas ligadas ao movimento negro demonstrada nas urnas comprovam a construção de um campo de articulação política do movimento negro em São Paulo e em todo o Brasil. “Alcançamos um patamar em que é possível construir coletivamente nosso quadrado a partir das nossas pautas, com as nossas lideranças, com os nossos eleitos e as nossas representações políticas”, afirma. “Acho que o grande recado é esse, nós vamos enfrentar o racismo e ajudar a esquerda branca, somar nesses esforços porque temos um inimigo em comum. Mas estamos construindo o nosso próprio campo.”
Douglas Belchior Foto PC Pereira10

Douglas Belchior, 39, professor, organizador da UNEAFRO Brasil


“Se ao mesmo tempo é verdade que existe o fascismo brotando nas esquinas feito erva daninha, também é verdade que existe nós, a nossa luta e o nosso povo. E eles vão ter que brigar com a gente também, porque nós também avançamos, porque nós também temos potencialidades”

Erica Malunguinho Foto PC Pereira11
(Foto: PC Pereira/ Revista CULT)

Erica Malunguinho, 36, educadora, artista e deputada estadual (SP)


“Quando eu me disponho, junto com meu povo, a estar nessa luta, a estar na institucionalidade, estou também cobrando que a gente assuma um novo pacto civilizatório: no novo governo, nas novas formações de gabinete, nas novas composições de ministérios, vão considerar nossos corpos presentes lá dentro, e não como destinatário das políticas públicas, mas como escrevente delas”

(Foto PC Pereira)
(Foto PC Pereira/Revista CULT)

Maria José Menezes, 56, integrante do Núcleo de Consciência Negra na USP


“Nós sempre combatemos o fascismo, porque sempre fomos às ruas contra o genocídio da juventude negra. Mas éramos poucos. A necessidade de [todos] se aperceberem do quanto isso é perverso para toda a sociedade é fundamental para vencermos esse momento que se avizinha há muito tempo”

(Foto PC Pereira)
(Foto PC Pereira/Revista CULT)

Andreia de Jesus, 30, advogada popular e deputada estadual (MG)


“Nós não vamos ‘disputar’ com evangélicos, com a mídia. Vamos construir o nosso, carregar no afeto, trazer as pessoas para o nosso lado. Fazer política no cotidiano é revolucionário”

(Foto PC Pereira)
(Foto PC Pereira/Revista CULT)

Teodoro Nagô, 30, músico


“[Bolsonaro] representa a perda de uma batalha. O antídoto para isso é nos aquilombar, nos fortalecer, nos unir aos nossos. É dessa forma que resistiremos. Pode ser que a gente perca essa batalha, mas não a guerra”

(Foto PC Pereira)
(Foto PC Pereira/Revista CULT)

Leci Brandão, 74, cantora, compositora e deputada estadual (SP)


“Nós, mulheres negras, temos as mesmas histórias. Só que a gente não quer mais que a nossa história seja essa de amamentar o filho da sinhá, de lavar a casa-grande, de servir o senhor. Queremos cadeiras nos poderes”

(Foto PC Pereira)
(Foto PC Pereira/Revista CULT)

Mariléa Almeida, historiadora, professora e pesquisadora


“Como assim, a filha da empregada acha que pode estar na mesma universidade que eu? Quem você pensa que é para pensar que pode estar na mesma Alesp que eu? É isso o que Bolsonaro encarna. Ele é uma figura, mas é preciso ficar de olho nesse fascismo interno, no Bolsonaro que existe dentro de cada um de nós”

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