Aula pública 'No país da escravidão, de que fascismo falamos?', no Teatro Oficina, São Paulo (Foto: PC Pereira/ Revista CULT)
A dez dias do segundo turno das
eleições presidenciais de 2018, numa quinta-feira chuvosa, cerca de 650
pessoas lotaram o Teatro Oficina, região central de São Paulo – e outras
tantas se apertaram na calçada, do lado de fora – para participar da
aula pública “No país da escravidão, de que fascismo falamos?”,
convocada pelo Núcleo de Consciência Negra da USP, pela UNEAFRO-Brasil e
pelo Aparelha Luzia. Até aquele dia, que havia começado
com a notícia da compra ilegal de pacotes de disparos em massa de
mensagens anti-PT pelo WhatsApp, esquema revelado pela Folha de S.Paulo,
o candidato de extrema direita à Presidência da República Jair
Bolsonaro (PSL) oscilava pouco nas pesquisas eleitorais e alcançava 59%
dos votos válidos, enquanto Fernando Haddad (PT) chegava a 41%. Diante desse cenário, núcleos do
movimento negro de São Paulo articularam, em menos de uma semana, um
encontro para discutir formas de resistência ao avanço do fascismo –
ideologia que, como prática política, nunca deixou de existir para o
povo negro, diz à reportagem da CULT Mariléa Almeida, pesquisadora,
doutora em História pela Unicamp e uma das mediadoras do debate. “Claro,
do ponto de vista histórico, o fascismo é datado, mas como forma de
política, se pensarmos em como ele se expressa na violência cotidiana,
na tentativa da impossibilidade da vida na sua expressão mais plena,
para o povo preto infelizmente não é.” Isso porque, nas periferias, “a
polícia mete o pé nas casas, arromba, prende, silencia e mata há muito
tempo”, ressalta Maria José Menezes, militante do Núcleo de Consciência
Negra da USP. “Até aqui vivíamos ou não um momento de totalitarismo, de
desrespeito, de militarização? Isso é estranho para alguém que está
aqui?”, questiona, no microfone, afirmando que a escalada do candidato
do PSL representa uma “exacerbação” dessa mesma violência. “A figura de Bolsonaro aglutinou
ressentimentos que antes estavam um pouco difusos na sociedade em
relação à ocupação de espaços que até pouco tempo a gente não ocupava,
como as universidades”, diz Mariléa que realizou doutorado sanduíche na
Universidade de Columbia, em Nova York, onde estudou os feminismos
negros norte-americanos. Educador, ativista social e militante
de movimentos de cursinhos populares, Douglas Belchior concorda.
“Bolsonaro personifica todo o ódio e tudo aquilo que o Brasil tem
acumulado em sua própria história. A gente está num momento em que os
horrores não são mais maquiados ou escondidos, são enunciados, são
arrotados em cada esquina e, pior, eles encontram colo em grande parte
da população, porque, sim, ela foi historicamente e culturalmente
construída para ser conservadora nos costumes. E isso agora está
exposto.” Leci
Brandão fala na aula pública ‘No país da escravidão, de que fascismo
falamos?’, no Teatro Oficina, São Paulo(Foto PC Pereira/Revista CULT)O organizador da UNEAFRO Brasil, rede
de articulação e formação de jovens e adultos moradores de regiões
periféricas do país, quase eleito para a Câmara dos Deputados nas
eleições de 2018 com 46 mil votos, acredita que a militância
desacompanhou a inteligência leiga; “do homem na estrada, como diria
Mano Brown; do cidadão comum, como diria Belchior”. “Faz todo o sentido para a vida
dessas pessoas pedir mais polícia e mais cadeia: trabalho muito, ganho
pouco, compro alguma coisa e alguém vem e rouba. Cadeia pro vagabundo,
morte pro vagabundo. Não importa dar informações racionais diante da
vivência do sujeito. Em que medida nossos argumentos conversam com as
vivências das pessoas?”, questiona. Para a ativista, educadora e artista
Erica Malunguinho, os argumentos “não batem” também devido a uma
moralidade normativa racista, xenofóbica, transfóbica e homofóbica
construída compulsoriamente na mentalidade dos cidadãos. “Eu gosto
sempre de perguntar: qual é o Bolsonaro que habita em você? Qual é o
Bolsonaro que habita em cada um de nós? Quando a gente naturaliza a
ausência dos corpos negros, trans e LGBTs nos espaços, damos passagem
para que essa lógica bolsonarista adentre. Foi a naturalização das
nossas ausências que construiu esse monstro.” Eleita deputada estadual pelo PSOL
com mais de 50 mil votos, ela se junta a Leci Brandão (PCdoB) no
legislativo de São Paulo, que elegeu 56 novos parlamentares – 15 deles
do PSL, partido de Bolsonaro, que de inexistente na Alesp passou à maior
bancada da Casa. “Se a gente não estiver nesses lugares, outras pessoas
vão estar para dar vazão a essa onda, a essa enxurrada, a esse rio
perene chamado fascismo”, afirma. Vem daí a importância de ocupar a
institucionalidade com mandatos comprometidos com as pautas do movimento
negro. “Para a gente que tem essa corzinha aqui, a dificuldade de
encontrar a nossa cara nesses lugares é muito grande. Nós não estamos
nos poderes deste país, em nenhum deles”, critica Leci Brandão, eleita
para o terceiro mandato na Alesp. Ela ressalta a importância da
construção de mandatos coletivos, com a participação da sociedade civil
na elaboração de projetos de lei: “Não basta só ocupar a política, é
preciso ocupar e ter uma atuação de comprometimento e identidade com o
povo que representa.” Nas eleições de 2018, o número de
senadores, deputados estaduais e federais que se autodeclaram pretos e
pardos subiu 25% em relação ao último pleito, representando 444 dos
eleitos para as 1.626 vagas. Na Câmara dos Deputados, o número de
parlamentares negros cresceu quase 5% em relação a 2014, representando
24,36% da composição da Casa. No Rio, três ex-assessoras da vereadora
Marielle Franco, assassinada em março, foram eleitas. A Bahia elegeu sua
primeira parlamentar negra, Olívia Santana (PCdoB), com quase 58 mil
votos, e Pernambuco levou à assembleia Robeyoncé Lima (PSOL), mulher
negra transexual e primeira advogada a ter o direito de usar o nome
social na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do estado. “Isso é luta. Faz parte de
deslocamento, do que é que a gente fez com a nossa raiva”, diz Mariléa
Almeida. “Essa eleição específica tem mostrado o que a gente já sabia:
os partidos como estão aí não nos representam, as organizações políticas
como estão aí não nos interessam. A gente tem usado essas estruturas
para nos aquilombar, para fortalecer a nossa luta.” Advogada popular, eleita deputada
estadual em Minas Gerais com quase 18 mil votos, Andreia de Jesus afirma
que a saída não é “reproduzir a lógica democrática branca,
colonizadora, que continuamos reproduzindo na relação de trabalho:
quanto mais trabalho, mais dinheiro, menos tempo, menos raciocínio,
menos informação”. “Vamos ter que fechar o corpo, abrir o coração,
construir junto e aprender com essa juventude que está hackeando a
política. Resgatar a nossa ancestralidade, a nossa cultura roubada. Não
adianta ocupar a institucionalidade e reproduzir a lógica do colonizador
para superar a opressão”, diz. “É possível uma política do cotidiano,
de inclusão das minorias políticas.” Até o fechamento desta edição,
construia-se um clima de virada em torno da campanha de Fernando Haddad,
que de acordo com a última pesquisa DataFolha publicada no dia 25 de
outubro, tinha 44% dos votos válidos, contra 56% do outro candidato.
Mas, mesmo com a improvável vitória do candidato petista, a violência
autorizada por Jair Bolsonaro não volta para o armário na segunda-feira
pós-eleições, lembra Douglas Belchior. “Esse monstro tem que ser destruído
nas próximas semanas, mas também tem que ser enxotado das mentes e dos
corações, das periferias das cidades de qualquer lugar do mundo para
sempre. Esse é um trabalho constante de destruição dessa guerra que eles
declaram contra nós, mas que nós venceremos, porque nós sempre
vencemos, ou não estaríamos aqui”, declara Maria José Menezes, do Núcleo
de Consciência Negra da USP. Mais
de 650 pessoas se reuniram no Teatro Oficina, em São Paulo, para
debater o avanço do fascismo no Brasil (Foto PC Pereira/Revista CULT)Nesse contexto, Erica Malunguinho
afirma que discutir raça é fundamental para pensar um novo processo de
nação. “É preciso romper com essa lógica que só cria tragédia, dor e
violência. Ou a gente pactua que a partir de agora vamos olhar pra todo
lado, vamos contar os pretos, os LGBTs presentes seja num bar, seja no
trabalho, em qualquer lugar que estivermos, e vamos nos incomodar com a
ausência desses corpos, ou a gente não vai avançar”, diz. “Nós vimos
toda a estrutura se construir sobre a nossa cabeça. Criamos
inteligências, estratégias de sobrevivência, e por isso temos habilidade
para desconstruir essa estrutura violenta. Retomando a máxima de Angela
Davis, quando as mulheres negras se movem, tudo se move. Nossa luta
fala de si, sobre si, mas é para todos, é pela emancipação coletiva.” Segundo Belchior, tanto o sucesso
daquele encontro organizado em poucos dias quanto a força de
candidaturas ligadas ao movimento negro demonstrada nas urnas comprovam a
construção de um campo de articulação política do movimento negro em
São Paulo e em todo o Brasil. “Alcançamos um patamar em que é possível
construir coletivamente nosso quadrado a partir das nossas pautas, com
as nossas lideranças, com os nossos eleitos e as nossas representações
políticas”, afirma. “Acho que o grande recado é esse, nós vamos
enfrentar o racismo e ajudar a esquerda branca, somar nesses esforços
porque temos um inimigo em comum. Mas estamos construindo o nosso
próprio campo.”
Douglas Belchior,39, professor, organizador da UNEAFRO Brasil
“Se ao mesmo tempo é verdade que existe o fascismo
brotando nas esquinas feito erva daninha, também é verdade que existe
nós, a nossa luta e o nosso povo. E eles vão ter que brigar com a gente
também, porque nós também avançamos, porque nós também temos
potencialidades”
(Foto: PC Pereira/ Revista CULT)
Erica Malunguinho, 36, educadora, artista e deputada estadual (SP)
“Quando eu me disponho,
junto com meu povo, a estar nessa luta, a estar na institucionalidade,
estou também cobrando que a gente assuma um novo pacto civilizatório: no
novo governo, nas novas formações de gabinete, nas novas composições de
ministérios, vão considerar nossos corpos presentes lá dentro, e não
como destinatário das políticas públicas, mas como escrevente delas”
(Foto PC Pereira/Revista CULT)
Maria José Menezes, 56, integrante do Núcleo de Consciência Negra na USP
“Nós sempre combatemos o
fascismo, porque sempre fomos às ruas contra o genocídio da juventude
negra. Mas éramos poucos. A necessidade de [todos] se aperceberem do
quanto isso é perverso para toda a sociedade é fundamental para
vencermos esse momento que se avizinha há muito tempo”
(Foto PC Pereira/Revista CULT)
Andreia de Jesus, 30, advogada popular e deputada estadual (MG)
“Nós não vamos ‘disputar’
com evangélicos, com a mídia. Vamos construir o nosso, carregar no
afeto, trazer as pessoas para o nosso lado. Fazer política no cotidiano é
revolucionário”
(Foto PC Pereira/Revista CULT)
Teodoro Nagô, 30, músico
“[Bolsonaro] representa a
perda de uma batalha. O antídoto para isso é nos aquilombar, nos
fortalecer, nos unir aos nossos. É dessa forma que resistiremos. Pode
ser que a gente perca essa batalha, mas não a guerra”
(Foto PC Pereira/Revista CULT)
Leci Brandão, 74, cantora, compositora e deputada estadual (SP)
“Nós, mulheres negras,
temos as mesmas histórias. Só que a gente não quer mais que a nossa
história seja essa de amamentar o filho da sinhá, de lavar a
casa-grande, de servir o senhor. Queremos cadeiras nos poderes”
(Foto PC Pereira/Revista CULT)
Mariléa Almeida, historiadora, professora e pesquisadora
“Como assim, a filha da
empregada acha que pode estar na mesma universidade que eu? Quem você
pensa que é para pensar que pode estar na mesma Alesp que eu? É isso o
que Bolsonaro encarna. Ele é uma figura, mas é preciso ficar de olho
nesse fascismo interno, no Bolsonaro que existe dentro de cada um de
nós”
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