https://diplomatique.org.br/das-fake-news-a-paulo-freire/
Consequentemente, a questão atual não está só com o tio do grupo de família que manda zap sobre Haddad fazer mamadeira em forma de pênis. A raiz está em toda uma nova forma de sociabilidade e cognição no mundo, de uma mudança de paradigma para a era digital, que vivemos já há alguns anos.
Quando digo isso, não quero fazer juízo de valor sobre um meio
extremamente rico em possibilidade de mediações e acesso à informação.
Nem tampouco buscar uma “nostalgia” pré-digital. Quero sim compreender
como os dispositivos e redes atuais são um terreno fértil para mensagens
simples (o meme, a montagem, o tweet, o vídeo curto, a mensagem que
chega no WhatsApp), entendendo qual relação existente entre estas
características midiáticas e a eleição de Bolsonaro. A propaganda
nazista comandada por Goebbels exibia filmes comparando judeus a ratos:
associações simples, ideias rapidamente assimiladas. Pode-se dizer, de
certa forma, que a campanha do candidato do PSL reinventa formas antigas
de manipulação das massas por regimes totalitários.
Para a esquerda, entretanto, é importante ter algo em conta: nesta disputa, perdemos na saída. Enquanto a difusão de ideias simples domina grande parte do discurso da extrema-direita (“bandido bom é bandido morto”, “o PT quer ensinar sexo nas escolas”), a esquerda em geral vai responder de forma mais complexa, apontando os elementos múltiplos que produzem os fenômenos da sociedade. Parece evidente, assim, que as mensagens diretas possuem muito mais possibilidade de difusão, especialmente quando se ligam diretamente aos afetos de quem a recebe (de informações pessoais obtidas a partir do roubo de dados). Tudo isso, é claro, com a influência de meios artificiais nas redes sociais (robôs, fakes), servindo como “nós” nas redes, impulsionadores do “efeito manada”.
Diante disso, o que o campo popular/democrático pode fazer? Uma resposta possível, seria contra-atacar com armas parecidas. Esta alternativa, além de eticamente questionável, está condenada à derrota, em um campo onde a nossa própria base de existir é uma desvantagem neste jogo sujo. Uma outra opção, pensando inicialmente, está próxima a um autor que, não por acaso, é um dos alvos da extrema-direita: Paulo Freire. A educação popular, desenvolvida pelo autor e educador, pode ser uma outra via diante deste dilema entre uma esquerda intelectualmente fechada e uma direita baseada no simplismo e na mentira. Para Freire, devemos superar a “educação bancária”, onde quem ensina deposita conhecimentos numa caixa vazia. Propõe, por outro lado, a “troca”, o “diálogo”, a “comunicação” (ação comum). Para a educação popular, não há tema que seja “complexo” ou “difícil” demais. O que importa, é a reflexão partindo da realidade dos educandos (por exemplo: “o que a Reforma da Previdência vai influenciar na minha vida, no meu bairro, na minha cidade?”). Em suma, todos na sociedade têm muito o que dizer, mas também temos muito o que ouvir e aprender. E desta troca, é produzido o processo educativo: libertário, autônomo e emancipador, exatamente o inverso da “doutrinação” alegada por grupos intolerantes. Além de Paulo Freire, outra referência importante é Vito Giannotti, em cuja obra e militância no jornalismo sindical e popular está o interesse em “traduzir” o “politiquês” e “economês”, repensando a linguagem dentro de uma imprensa de luta.
*Gabriel Barcelos é jornalista, doutor em Multimeios pela Unicamp, autor do blog CineMovimento e autor da websérie Rascunhos da Distopia
Das fake news a Paulo Freire
Acervo Online
| Brasil
por Gabriel Barcelos
novembro 18, 2018
Imagem por Allan Sieber
Não é por acaso que um dos alvos
da extrema-direita seja Paulo Freire. A educação popular, desenvolvida
pelo autor e educador, pode ser uma via diante deste dilema entre uma
esquerda intelectualmente fechada e uma direita baseada no simplismo e
na mentira.
Meus pensamentos e pesquisas
têm sido tomados nos últimos dias por tentar compreender o fenômeno
comunicacional que levou à eleição de Bolsonaro (e suas relações com
outras eleições, como a de Trump). Pretendo iniciar uma série de
reflexões sobre este tema, pensando também em algumas possibilidades de
ação para o campo popular. Mas começo aqui, resumidamente, alguns
apontamentos iniciais.
Já ficou evidenciado que estávamos, durante o processo eleitoral,
diante de uma fábrica de mentiras, robôs, perfis e notícias falsas,
embora não possa ser desprezado o engajamento virtual de um exército de
eleitores reais. Contudo, não temos apenas um fenômeno da mentira. Por
um lado, está sendo produzida uma era da “pós-razão”, onde o referencial
no fato, na prova, na ciência, no elemento concreto e material, se
perdeu. Mas surge, neste momento também, uma era da “simplificação”.
Aqui é necessário um exercício de descermos do pedestal e colocarmos
todos (ou grande parte) da sociedade no mesmo barco. Dentro disso,
caminhamos para a seguinte constatação: as redes sociais, dispositivos
digitais e outras formas de sociabilidade contemporânea nos fizeram
buscar informações de forma mais rápida, simplificada, distraída e com
menor esforço mental. Falo por mim: hoje eu leio menos, vejo menos
filmes e interajo menos de forma presencial com as pessoas. Outros podem
relatar coisas semelhantes.Consequentemente, a questão atual não está só com o tio do grupo de família que manda zap sobre Haddad fazer mamadeira em forma de pênis. A raiz está em toda uma nova forma de sociabilidade e cognição no mundo, de uma mudança de paradigma para a era digital, que vivemos já há alguns anos.
Para a esquerda, entretanto, é importante ter algo em conta: nesta disputa, perdemos na saída. Enquanto a difusão de ideias simples domina grande parte do discurso da extrema-direita (“bandido bom é bandido morto”, “o PT quer ensinar sexo nas escolas”), a esquerda em geral vai responder de forma mais complexa, apontando os elementos múltiplos que produzem os fenômenos da sociedade. Parece evidente, assim, que as mensagens diretas possuem muito mais possibilidade de difusão, especialmente quando se ligam diretamente aos afetos de quem a recebe (de informações pessoais obtidas a partir do roubo de dados). Tudo isso, é claro, com a influência de meios artificiais nas redes sociais (robôs, fakes), servindo como “nós” nas redes, impulsionadores do “efeito manada”.
Diante disso, o que o campo popular/democrático pode fazer? Uma resposta possível, seria contra-atacar com armas parecidas. Esta alternativa, além de eticamente questionável, está condenada à derrota, em um campo onde a nossa própria base de existir é uma desvantagem neste jogo sujo. Uma outra opção, pensando inicialmente, está próxima a um autor que, não por acaso, é um dos alvos da extrema-direita: Paulo Freire. A educação popular, desenvolvida pelo autor e educador, pode ser uma outra via diante deste dilema entre uma esquerda intelectualmente fechada e uma direita baseada no simplismo e na mentira. Para Freire, devemos superar a “educação bancária”, onde quem ensina deposita conhecimentos numa caixa vazia. Propõe, por outro lado, a “troca”, o “diálogo”, a “comunicação” (ação comum). Para a educação popular, não há tema que seja “complexo” ou “difícil” demais. O que importa, é a reflexão partindo da realidade dos educandos (por exemplo: “o que a Reforma da Previdência vai influenciar na minha vida, no meu bairro, na minha cidade?”). Em suma, todos na sociedade têm muito o que dizer, mas também temos muito o que ouvir e aprender. E desta troca, é produzido o processo educativo: libertário, autônomo e emancipador, exatamente o inverso da “doutrinação” alegada por grupos intolerantes. Além de Paulo Freire, outra referência importante é Vito Giannotti, em cuja obra e militância no jornalismo sindical e popular está o interesse em “traduzir” o “politiquês” e “economês”, repensando a linguagem dentro de uma imprensa de luta.
Estamos muito longe de ter alguma
resposta completa sobre como agir diante do atual quadro político e
comunicacional. É essencial estudarmos e compreendermos os fenômenos que
levaram à ascensão da extrema-direita, tanto em suas origens
econômicas/políticas culturais, como em suas questionáveis táticas
midiáticas. Deste modo, para pensarmos um contra-ataque, é importante
fazermos uma síntese entre o entendimento sobre a atualidade e as
experiências históricas de resistência, em seus erros e acertos.
Por hora, é interessante a formação de
redes de apoio, organização e difusão de materiais. Produzamos, da mesma
forma, mais trabalhos de reflexão, aprendizado e debate, com
linguagem acessível, para serem difundidos online e offline, que
estimulem a reflexão com diálogo: vídeos, quadrinhos, fotografias,
textos, músicas, poesias, desenhos, charges, cordéis, grafites,
fanzines, teatro, panfletos, jornais e outros. Paralelo a esta produção,
continuemos o interessante trabalho de base nas ruas que ocorreu no
final da campanha, com a unidade, também, dos movimentos que já realizam
seus respectivos trabalhos de difusão de idéias e transformação da
sociedade em suas bases.
Precisamos reinventar nossa comunicação. Este é um desafio para uma
área infelizmente negligenciada por muitos anos pelo nosso campo.
Auto-crítica é algo necessário. Mas precisamos, a partir disso, apontar
soluções e ações concretas.*Gabriel Barcelos é jornalista, doutor em Multimeios pela Unicamp, autor do blog CineMovimento e autor da websérie Rascunhos da Distopia
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