Friday, 10 May 2019

Ideologia oculta

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Ideologia oculta

Edição do mês 
Ideologia oculta
5
(Arte Andreia Freire)

Aprendemos a separar corpo e alma, espírito e matéria, pensamento e ação, feminino e masculino, brancos e pretos, oriente e ocidente, centro e periferia. Não há nenhuma justificativa lógica ou ética suficiente para sustentar essas separações. Elas são meras classificações produzidas ao longo dos séculos por processos hermenêuticos. Devemos considerar a hipótese de que haja motivações ideológicas para que sejam sustentadas.
Por meio dessas separações que opõem algo de positivo e algo de negativo se garante a divisão do trabalho como a verdade profunda de um sistema que define que uns serão privilegiados em detrimento de outros. Ricos em relação a pobres, homens em relação a mulheres, brancos em relação a pretos, europeus a não europeus, e assim por diante sempre em conformidade com exigências ideológicas em vigência dentro do sistema de interesses. A sustentação ideológica mascara a verdade e sustenta a docilidade dos prejudicados. Trabalhadores em geral, operadores das mais ingratas tarefas ao longo de sua vida útil são vítimas da descartabilidade, quando seus corpos já não servem para o fim a que foram destinados pela ideologia em ação. Essa ideologia primeiro os marcou como úteis, depois como objetos descartáveis. A descartabilidade depende da marcação produzida pela ideologia: em que mulher/preto/pobre se justapõem.
No Brasil de hoje, a exemplo de outros países do mundo, os trabalhadores perdem seus direitos e são jogados à mercê da vida e da morte quando se tornam incapazes de trabalhar por falta de condições físicas. O Estado, que antes tinha o papel de proteger sua vida e sua dignidade, cancela a lei e abandona as pessoas à sua própria sorte. A falsa “abolição da escravidão” escondia esse descarte do ser humano como acontece hoje com a destruição da Previdência Social. O caráter serviçal da vida das mulheres é parte essencial da divisão do trabalho à qual elas servem.
Sabemos que, se as vítimas da divisão do trabalho se rebelarem, o sistema ruirá. Seja como racismo, seja como machismo, afinal, são faces de uma mesma moeda, é o capitalismo que ruirá. Por isso, aqueles que administram a divisão do trabalho tentam evitar a todo custo que os administrados percebam o que se passa. Controlar teorias que defendam o bem comum, evitar questionamentos e aniquilar críticos, bem como esconder seus interesses pessoais, é essencial para a sustentação do sistema.
O neoliberalismo como ideologia
Não é difícil entender por que o neoliberalismo precisa evitar a todo custo ser reconhecido em sua ideologia. Se a ideologia é um conjunto de ideias prontas que visa evitar a busca da verdade e se a filosofia é a busca da verdade, as ideologias não são filosofias porque não são questionamentos que poderiam levar à busca da verdade. Como foi dito, ideologias são conjuntos de ideias prontas. Podemos falar em ideologias de partidos, do mesmo modo que podemos dizer que todas as religiões possuem algo de ideológico justamente no elemento dogmático que lhe é inerente.
O capitalismo se torna ideologia ao não ser questionado, seja por opção, seja por imposição. O neoliberalismo é a forma do capitalismo que mais oculta sua própria estrutura ideológica para poder valer sem limitações. Nesse sentido, ele é a autoconsciência do capitalismo em sua fase mais avançada e perversa. Por não agir na contramão dessa consciência, mas se aproveitando dos seus piores ensinamentos, o neoliberalismo se torna uma espécie de perversão na segunda potência do capitalismo. A falta de ética pela desvalorização do ser humano e de sua dignidade é a sua marca fundamental.
O neoliberalismo se apresenta como natural e, portanto, isento de interesses. Se ele revelasse no discurso o seu objetivo, se ele não escondesse o seu verdadeiro propósito anti-humano, que é a eliminação da vida humana na Terra em nome dos privilégios de uns poucos, ele seria rechaçado e a humanidade inteira estaria preocupada com o seu próprio destino.

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