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A perspectiva da Dominica: Antropoceno ou Capitaloceno?
A perspectiva da Dominica: Antropoceno ou Capitaloceno?
A mudança climática não decorre da mera existência de bilhões de seres humanos que habitam o planeta, mas é causada pelos poucos que controlam os meios de produção e tomam as principais decisões sobre o uso da energia, afirma Andreas Malm. No que pode ser considerado mais Capitaloceno do que Antropoceno, um confronto direto com o capital proveniente dos combustíveis fósseis é indispensável para evitar eventos climáticos extremos, como os furacões que devastaram a Dominica*.
Andreas Malm
A Dominica costumava ser uma cadeia de colinas cor verde esmeralda, emergindo diretamente do Mar do Caribe. Quando visitei a nação insular em agosto de 2017, ela continuava coberta por verdes matas, cada cume e ravina cobertos com vegetação. A ilha mais montanhosa da região, com a maior cobertura florestal preservada, era uma maravilha de esplendor natural, mas também pobre. A maior parte de seus 70 mil habitantes – em sua maioria descendentes de africanos – subsistia da agricultura de pequena escala. A banana, a banana-da-terra e o inhame eram complementados com alguma pesca e um pouco de turismo.
A ilha já havia sofrido um golpe antes. Em 2015, a tempestade tropical Erika derramou torrentes de água sobre as colinas, até que algumas delas cederam e desabaram. Na época da minha visita, o país ainda estava se recuperando do desastre, claramente visível na sua parte sudeste, onde as encostas foram cortadas por deslizamentos que levaram o solo superior, árvores e casas. As estradas estavam sendo reconstruídas, e novos assentamentos foram erguidos para abrigar os sobreviventes.
Seis semanas após a minha partida, em 18 de setembro de 2017, o furacão Maria acelerou subitamente para um sistema de categoria 5 – uma das intensificações mais explosivas de um furacão já registrada – e bateu diretamente na Dominica. Em uma noite, a ilha verde se tornou marrom. Os ventos extraordinariamente ferozes simplesmente varreram a cobertura florestal.
Sentimento de perda incalculável
Folhas e galhos foram espalhados pelo mar, troncos desfolhados permaneceram em pé no que pareciam ser áreas desmatadas – se a tempestade tropical Erika havia arranhado a ilha, o furacão Maria a esfolou. Dessa vez, toda a infraestrutura – casas, estradas, pontes, hospitais, escolas – foi pulverizada, e o setor agrícola foi destruído. O custo financeiro foi estimado em duas vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do país, mas, como informou a agência de notícias IRIN, “o sentimento mais profundo de perda está fora de alcance”.
No primeiro mês após o furacão Maria, um quinto dos habitantes pegaram os poucos bens que puderam ser recuperados e partiram. Aqueles que ficaram falavam de si mesmos como soldados em um campo de batalha: o discurso bélico varreu o país. Cinco dias após o furacão, o primeiro-ministro Roosevelt Skerrit, ele próprio desabrigado, dirigiu-se à Assembleia Geral das Nações Unidas: “Venho até vocês diretamente da linha de frente da guerra. [...] À medida que os dominiquenses sofrem com o peso da mudança climática, nós estamos arcando com as consequências das ações de outros, ações que colocam em risco a nossa própria existência, e tudo para o enriquecimento de alguns poucos em outros lugares”.
Os descendentes de escravos que habitam a Dominica não fizeram nada para aquecer este planeta, nem tampouco a pequena população indígena sobrevivente. Os agricultores de subsistência, que recorriam à condução de táxis ou à venda ambulante para complementar sua renda, tinham pegadas de carbono insignificantes e nenhum poder sobre o abastecimento de energia mundial. Ainda assim, no ataque do hiperfuracão, as principais vítimas foram exatamente esses agricultores: eles foram mortos, suas vidas foram devastadas, e a própria terra em que se encontravam foi destruída.
Somos todos responsáveis?
No discurso sobre a mudança climática, tal como se desenvolveu no meio acadêmico ocidental, na mídia e nos grupos que formulam as políticas ao longo da última década, uma outra narrativa se instalou. Ela diz que o problema foi criado por todos nós. O aquecimento global é culpa da espécie humana como um todo. Vivemos no Antropoceno, a época em que nossa própria espécie superou as forças naturais na determinação da trajetória deste planeta, de forma mais óbvia no campo do clima – portanto, os seres humanos em geral são responsáveis pelas catástrofes subsequentes.
Uma afirmação explícita dessa lógica pode ser encontrada em um dos mais célebres livros sobre o tema nos últimos anos: The Great Derangement: Climate Change and the Unthinkable (2017), do autor indiano Amitav Ghosh, no qual aprendemos que o aquecimento global “é a consequência indesejada da própria existência dos seres humanos como espécie”. Mais do que isso, é “o produto da totalidade das ações humanas ao longo do tempo. Todos os seres humanos que já viveram desempenharam um papel em nos tornar a espécie dominante neste planeta e, nesse sentido, todos os seres humanos, passados e presentes, contribuíram para o atual ciclo da mudança climática”. Por essa perspectiva, o produtor de café comum na Dominica contribuiu para o furacão Maria simplesmente por pertencer à espécie Homo sapiens. Assim como seus antepassados escravos trazidos para a ilha. Assim como o povo kalinago, que lá vivia em paz antes de os europeus chegarem à ilha em 1492.
Narrativa falha
É extremamente difícil enxergar os fundamentos científicos que podem existir em tal perspectiva; contudo, inúmeros intelectuais que abordaram o Antropoceno fizeram afirmações semelhantes. Para escolher apenas um outro caso, o historiador Dipesh Chakrabarty, talvez o mais influente intérprete do conceito nas ciências humanas e sociais, argumenta que, quando se trata da produção da mudança climática, “os pobres participam daquela história compartilhada da evolução humana, tanto quanto os ricos” (CHAKRABARTY; D. Climate and Capital: On Conjoined Histories, Critical Inquiry: The University of Chicago Press Journals, v. 41, n. 1, 2014).
Nessa visão, o furacão Maria foi mais um suicídio do que uma guerra-relâmpago (blitzkrieg). Foi um caso de “aqui se faz, aqui se paga”, sem nenhuma injustiça flagrante envolvida de forma especial. Das encostas desnudas da Dominica, a realidade, é claro, parece muito diferente. A narrativa do Antropoceno é falha porque distorce e ofusca aquela realidade – não por dizer que as ações humanas causaram a mudança climática, o que é um fato incontestável, mas por se deslocar daquela observação para a representação da espécie humana como protagonista unificado. É tudo menos isso.
Nos últimos milhares de anos, desde que as sociedades de classes existem, o Homo sapiens tem sido uma entidade profundamente fragmentada, e nunca mais do que neste planeta que vem se aquecendo rapidamente – onde os oito homens mais ricos do mundo têm tanta riqueza (US$ 426 bilhões) quanto a metade mais pobre da população mundial somada (US$ 409 bilhões), segundo a Oxfam, de janeiro de 2017 (link em inglês). Sabe-se que a riqueza está estreitamente correlacionada com as emissões de CO2. É o sinal dos lucros da forma habitual de se fazer negócios e a melhor prova contra as suas consequências. Embebido em combustíveis fósseis, é o motor da tempestade.
Epidemia de plástico
Somos informados que a mudança climática é criada por uma massa anônima de milhões e bilhões de seres humanos, quando, como recentemente argumentou o geógrafo norte-americano Matt Huber, na realidade, é um segmento muito limitado da espécie que controla os meios de produção e toma as decisões mais importantes sobre o uso da energia. Esse segmento opera com um objetivo em vista – expandir ainda mais as suas riquezas. O processo é conhecido como acúmulo de capital e segue de forma implacável, sem considerar o destino dos dominiquenses ou os alarmes cada vez mais desesperados da ciência do clima.
Para citar apenas um exemplo, em dezembro de 2017, o jornal The Guardian noticiou que a produção de plástico nos Estados Unidos deverá aumentar em 40% na próxima década, uma vez que a ExxonMobil, a Shell e outras empresas de combustíveis fósseis têm usado a contínua expansão do gás de xisto para investir massivamente em novas fábricas de plástico. Elas prenderão a economia norte-americana e, por conseguinte, a economia global, ainda mais em sua dependência por produtos plásticos. Em algum momento, estes acabarão alcançando as praias de todo o mundo e, no que diz respeito aos combustíveis fósseis, seu calor encontrará novas ilhas para destruir. Da perspectiva do capital, esta é exatamente a coisa certa a se fazer: investir na produção e no consumo de combustíveis fósseis para gerar lucros. Esse é o processo que tem alimentado o aquecimento global desde o início.
A população da Dominica e seus muitos companheiros de infortúnio em todo o mundo, que devem se multiplicar a cada ano – a menos que comece agora mesmo um confronto direto com o capital proveniente dos combustíveis fósseis – nunca viveram no que se denomina Antropoceno, e suas ações não podem ser culpadas por causar danos ao planeta. Eles sofrem os golpes de uma era rotulada de forma mais apropriada como Capitaloceno. É uma forma de guerra estrutural e sistemática, mas nós podemos esperar que os eventos naturais súbitos de choque e temor se tornem mais frequentes nos próximos anos. Uma questão mais aberta é quando, ou se, uma reação começará. Culpar a espécie humana não fará isso acontecer.
(*) Dominica é um Estado insular situado no Caribe, na região das Pequenas Antilhas. Não confundir com a República Dominicana
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