Wednesday 23 October 2019

Antropoceno, transumanismo e pós-humanismo. Entrevista com José Manuel de Cózar

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Antropoceno, transumanismo e pós-humanismo. Entrevista com José Manuel de Cózar
José Manuel de Cózar, professor da Universidade de La Laguna [Espanha], é autor de El Antropoceno: tecnología, naturaleza y condición humana, um ensaio que analisa as implicações da nova era geológica, na qual a história humana e a do planeta convergem.
A entrevista é de Mariano De Santa Ana, publicada por El Día, 22-10-2019. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Quais as implicações do Antropoceno para a espécie humana?
Cabe questionar qual é o significado ou a necessidade de propor o Antropoceno como uma nova era. A principal ideia por trás do termo antropoceno é que a atividade humana atingiu tal nível que a sua influência no planeta é semelhante às poderosas forças e agentes geológicos, como a atividade vulcânica e a erosão causada pelas águas. Quando percebemos esta nova situação, os velhos modos de compreender nossa relação com a Terra entram em questão. Não é possível separar claramente a dinâmica humana e a natural. A pegada humana sobre o planeta já é irreversível e global, embora a responsabilidade de cada pessoa possa ser muito diferente quando se trata de ver quais impactos negativos estamos provocando.
A sobrevivência de nossa espécie está comprometida a curto prazo, como anunciam muitos especialistas em mudanças climáticas?
No que diz respeito à sobrevivência da humanidade a curto prazo, e enfatizo a curto prazo, minha opinião é que, a menos que ocorra um desastre de magnitudes colossais, como o impacto de um grande asteroide, a erupção de um supervulcão ou um confronto nuclear total, é improvável que nossa espécie seja completamente extinta. Para sustentar minha opinião, apoio-me no êxito de nossa história evolutiva, que nos permitiu colonizar todos os habitats terrestres, graças às nossas capacidades cognitivas e sociais e à nossa rápida evolução cultural.
Além disso, a população mundial é considerável: vamos para oito bilhões de pessoas espalhadas por todo o planeta. Bastaria que em qualquer lugar remoto sobrevivesse um grupo relativamente reduzido, a partir do qual o Homo sapiens voltaria a se recuperar e disseminar. O que, sim, vejo como mais provável é que as condições de vida das grandes massas populacionais passem a se deteriorar paulatinamente, que a existência cotidiana se torne cada vez mais difícil, na medida em que os recursos naturais passem a se esgotar devido à incessante e avassaladora atividade humana, e que os desequilíbrios sistêmicos se traduzam em fenômenos meteorológicos adversos cada vez mais graves e frequentes.
Essa perspectiva é especialmente trágica quando ainda existem tantos milhões de pessoas no mundo lutando para sair de condições de pobreza intoleráveis. Em outras palavras, embora eu não considere o cenário de uma total aniquilação de nossa espécie, acredito que estamos totalmente envolvidos em uma crise ecossocial tremendamente grave e com vistas de durar.
Quais delineamentos existem para sair dessa crise de magnitudes sem precedentes?
Do ponto de vista da polêmica sobre o antropoceno, existem dois grupos opostos: os antropocenistas e os catastrofistas do Antropoceno.
Em que consistem as duas posições?
Os antropocenistas são otimistas. Pensam que o antropoceno poderá ser bem gerenciado, que será um bom antropoceno e que sairemos da crise graças ao conhecimento e à tecnologia. Os catastrofistas ou misantropocênicos temem um desastre futuro, acreditam que estamos enfrentando um mau antropoceno com o qual temos que ir nos adaptando, a partir de agora, colocando em prática medidas drásticas.
O pós-humanismo e o transumanismo são dois assuntos que marcam a agenda de nosso tempo e se imbricam com o antropoceno. Pode nos falar sobre estas noções e de sua relação com o antropoceno?
Não há uma resposta curta para essas perguntas. Em uma primeira aproximação, poderíamos dizer que o transumanismo é uma visão, cada vez mais ampla entre as elites intelectuais e empresariais, que propugna o melhoramento humano, físico, intelectual e até moral, fazendo um uso profundo e decisivo dos últimos conhecimentos científicos e das tecnologias disponíveis agora ou no futuro. Para alguns, o transumanismo seria uma fase dentro de uma evolução que conduziria ao pós-humano, descendente de nossa espécie, mas muito acima dela em capacidades, como estaríamos nós em relação aos nossos ancestrais distantes.
No entanto, muitos defensores do pós-humanismo observam com receio o movimento transumanista, por acreditar que abraça com demasiada falta de crítica a tecnologia moderna, sem atender adequadamente as desigualdades sociais e todos os tipos de problemas éticos, econômicos, de segurança, etc., que essa aplicação profunda da tecnologia no melhoramento humano poderia trazer consigo.
Digamos que o pós-humanismo constitui mais um ponto de vista intelectual, aplicável aos problemas sociais, que busca superar os vícios herdados do velho humanismo, mas sem cair nos possíveis excessos do transumanismo ou, ao menos, em algumas de suas variantes. O humanismo teria que superar, entre outros, seus preconceitos sexistas, colonialistas, de classe, racistas e homofóbicos. Também seria necessário derrubar de uma vez por todas a ideia prejudicial que coloca o ser humano no centro da criação, supostamente autorizado pela vontade divina ou pelas próprias leis humanas a explorar a natureza em seu benefício, com tudo o que contém.
O capitalismo é o responsável por temos entrado no antropoceno?
Há um debate em andamento sobre isso. Alguns autores dizem que o antropoceno é uma cortina de fumaça que oculta as responsabilidades socioambientais do sistema capitalista dominante, ao distribui-las injustamente entre a humanidade por completo, e que seria necessário falar muito mais em capitaloceno. Outros autores argumentam que o desenvolvimento do capitalismo moderno, mesmo sendo de grande importância na crise ecossocial global, tem apenas alguns séculos de existência, ao passo que o Antropoceno supõe pensar em termos temporais muito mais amplos, de milênios e até milhões de anos. Argumenta-se que já nos tempos neolíticos os seres humanos transformaram substancialmente os ecossistemas, de modo que não se deve jogar toda a responsabilidade no capitalismo.
Tudo isso faz sentido, mas, mesmo assim, na minha opinião, o atual modelo capitalista representa a versão hegemônica do legado da modernidade e tem sido a causa de boa parte dos efeitos negativos sobre a natureza da atividade humana, nas últimas décadas, ainda que não apenas ele, já que convém lembrar que, por exemplo, a antiga União Soviética ocasionou, em seu momento, destruições ambientais de enormes dimensões.
Em todo caso, é significativo que a visão antropocêntrica da modernidade tenha coincidido amplamente com a expansão do capitalismo a partir do século XV. Outra face do problema, no meu entender muito preocupante, é a crescente aliança do sistema capitalista de inovação com pelo menos parte do movimento transumanista.
Em que consiste essa aliança e no que pode afetar o antropoceno?
O capitalismo de hoje em dia não impõe limites ao que alguém pode ou não fazer, desde que tenha os meios para isso, desde que possa comprá-los. As únicas limitações provêm das legislações existentes em cada país ou local e, previsivelmente, a pressão para atenuá-las ou eliminá-las será cada vez maior, com os possíveis efeitos negativos que isso possa provocar. Por outro lado, existem transumanistas que tentam inovar a baixo custo, para que suas inovações possam ser desfrutadas por muitos, mas o previsível é que os melhoramentos genéticos, robóticos e outros sejam muito caros e criem uma distância entre aqueles que puderem pagar e os que ficarão excluídos dos benefícios. Na medida em que os melhoramentos intelectuais forem maiores dentro de uma elite, a distância poderá aumentar indefinidamente.
No que diz respeito ao antropoceno, há vários cenários possíveis. Por um lado, poderia haver um grupo seleto de transumanos adaptados a condições ambientais mais severas, de modo que não sofressem as piores consequências da degradação ambiental. Ou, então, transumanos aceitos para fazer parte da tripulação de um reduzido número de naves espaciais que saísse para a exploração e colonização de outros planetas, abandonando uma terra moribunda. Nesse caso, não seria necessário se adaptar ao Antropoceno, mas, ao contrário, promover a terraformação de outros mundos, como Marte. Esta fantasia, em particular, está no centro do imaginário transumanista.
Em minha opinião, trata-se de uma fantasia muito perigosa, já que pode nos persuadir de que existe um plano B, caso as condições de vida em nosso planeta se tornem extremamente severas para a nossa espécie. Mesmo no caso de que o plano de fuga fosse viável, a questão é, em um mundo superpovoado, quantas pessoas poderiam se beneficiar dessa eventualidade.
No entanto, diante dessa pulsão canibal que o humanismo não erradicou, como você explica no livro, há pensadores transumanistas que apostam no “biomelhoramento moral”. Pode aprofundar esta questão e expor a sua posição?
Alguns proponentes do transumanismo não limitam esse projeto ao melhoramento físico e intelectual, mas, ao contrário, buscam um melhoramento moral das pessoas. De fato, para alguns, essa é a verdadeira chave. É preciso levar em conta que o transumanismo baseia seu projeto na prevenção do sofrimento causado pela psique e o corpo, por assim dizer, defeituosos, o que inclui a doença, o envelhecimento e a morte. O melhoramento moral transumanista buscaria o que o humanismo perseguiu, ao menos em teoria, ou seja, tornar-nos mais empáticos, altruístas, pacíficos e solidários. A formação humanista parece ter fracassado em seu longo empreendimento de melhoramento moral, como testemunham as duas guerras mundiais e os intermináveis conflitos armados, atos de violência e de injustiças que continuam assolando o mundo.
Então, aposta no melhoramento moral transumanista? Isso não implica grandes perigos?
Seria necessário ter muitíssimo cuidado para evitar que a intervenção genética ou a administração de certas substâncias, entre outras técnicas que pudessem ser aplicadas, provocassem efeitos indesejados, ou que supusessem uma poderosa ferramenta de controle nas mãos de pessoas e grupos sem escrúpulos. Arriscando-nos a que o remédio acabe sendo pior que a doença, e tomando todas as precauções possíveis, acredito que não se deveria descartar esta opção sem ser estudada detidamente.
É preciso pensar no formidável bem que poderia ser não apenas para a humanidade, mas para o conjunto dos seres vivos. Repito que os riscos são enormes, mas é que tanto a situação atual do mundo como o futuro próximo também acarretam riscos assustadores, muitos dos quais devidos à imperfeita moral humana.
Em algumas passagens do livro, refere-se ao budismo. Como o budismo responde ao antropoceno?
Existem diversas manifestações históricas do budismo, e muitas perduram na atualidade, por isso é difícil especificar o papel do mesmo no antropoceno. Simplificando a questão, caberia dizer que as tradições culturais, filosóficas e religiosas ocidentais, em geral, demonstraram uma atitude de pouco respeito pelos seres vivos e pela natureza em seu conjunto. Argumentou-se que, ao oferecer certas justificativas, tais tradições suspenderam o veto, por assim dizer, à exploração humana, intensa e extensa, do mundo.
Em contrapartida, e com todas as ressalvas que se queiram estabelecer, há razões para sustentar que as tradições espirituais budistas oferecem outra perspectiva. Enfatizam a empatia com, e o respeito pelas outras pessoas, é claro, mas, e esta é a sua característica distintiva, ampliam a atitude empática e respeitosa ao resto dos seres vivos. Tal atitude, bem compreendida, sem cair em dogmatismos, pode ser de grande ajuda nos turbulentos tempos antropocênicos.
Que relação pode ser estabelecida, se é que é possível estabelecer alguma, entre o budismo, o pós-humanismo e o transhumanismo?
O budismo oferece uma cosmovisão relacional que, na minha opinião, não está longe do antiessencialismo e do gosto pelas conexões entre todos os tipos de seres que o pensamento pós-humanista manifesta. Quanto ao transumanismo, o que os une é a sensibilidade ao sofrimento e, mais especificamente, a convicção de que é possível se libertar do mesmo, ainda que as diferenças aqui sejam consideráveis. Nas tradições espirituais budistas, a libertação do sofrimento virá pela meditação e a iluminação, ao passo que o movimento transumanista, sem forçosamente rejeitar essa via tradicional, aposta em um atalho, que seria facilitado pela tecnologia moderna. Digamos que um transumanista tomaria primeiro um analgésico e depois imitaria ao budista, que, sem renunciar aos medicamentos, prefere talvez começar focando sua atenção plena na dor que está experimentando.
Seu livro se inscreve nas humanidades ambientais, campo no qual, como destaca, as humanidades deixariam de definhar e onde, inclusive, poderiam assumir um “papel não desdenhável” para redirecionar a situação limite em que nos encontramos. Em que consistem as humanidades ambientais? Quem são seus autores de referência? Qual é o seu potencial?
As humanidades ambientais representam um campo de estudo em alta, cujo principal interesse é que facilita o diálogo entre as disciplinas humanísticas e sociais tradicionais, como são a filosofia, as belas artes, a história, a antropologia e a sociologia. E, sobretudo, promove o cruzamento interdisciplinar destas com as ciências naturais, como a ecologia e as geociências, e com as tecnologias e engenharias. Dessa forma, pretendem superar as limitações do humanismo tradicional e contribuir para a compreensão das interações entre a atividade humana e o meio natural.
O interesse das humanidades ambientais não é apenas acadêmico, já que possui uma vertente prática que pode ser útil no momento de encarar as controvérsias socioambientais, por exemplo, ajudando a definir melhor os problemas ecossociais e a caracterizar as interações entre os diferentes entes envolvidos nesses problemas, bem como os critérios de avaliação das soluções propostas. Autores destacados, entre outros, são Donna HarawayTimothy MortonVandana Shiva e Cary Wolfe, ainda que não possuam motivos para se autodefinirem como tais.
Sem dúvida, outro autor que é necessário citar aqui é Bruno Latour. É um pensador difícil de classificar, mas que contribuiu muitíssimo para a reflexão filosófica, sociológica e antropológica sobre o conceito de natureza e suas derivações políticas. As humanidades ambientais podem ajudar a fazer com que cientistas, engenheiros e o público em geral reflitam sobre o significado e implicações do antropoceno.

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