https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Mae-Terra/O-golpe-de-mestre-dos-grandes-poluidores-foi-nos-culpar-pela-crise-climatica/3/45444
Vamos parar de chamar o fenômeno de sexta grande extinção. Comecemos a chamar do que é: o "primeiro grande extermínio". Em ensaio recente, o historiador ambiental Justin McBrien defende que descrever a atual erradicação de sistemas vivos (inclusive de sociedades humanas) como um evento de extinção faz com que essa catástrofe pareça um acidente passivo.
Embora todos tenhamos participação no primeiro grande extermínio, nossa responsabilidade não é compartilhada igualmente. Os impactos da maioria das pessoas são mínimos. Mesmo as pessoas de classe média nos países mais ricos, que causam efeitos significativos, são guiadas por um sistema de pensamento e ação moldado, em grande parte, pelas grandes corporações.
A série do Guardian sobre os poluidores mostra que 20 empresas de combustíveis fósseis, sendo algumas estatais e outras controladas por acionistas privados, produziram sozinhas 35% do dióxido de carbono e do metano liberados pelas atividades humanas desde 1965. Neste mesmo ano, o presidente da American Petroleum Institute disse a seus membros que o dióxido de carbono produzido por eles poderia causar "mudanças acentuadas no clima" até o ano 2000. Eles sabiam o que estavam fazendo.
Mesmo quando seus próprios cientistas alertaram que a extração contínua de combustíveis fósseis poderia causar consequências "catastróficas", as empresas de petróleo injetaram bilhões de dólares para frear ações governamentais. Elas financiaram thinktanks e pagaram cientistas aposentados e organizações locais fajutas para semear dúvidas e desdém sobre as ciências climáticas. Patrocinaram políticos, particularmente no Congresso dos EUA, para bloquear tentativas internacionais de redução das emissões de gases do efeito estufa. Investiram pesadamente no greenwashing, em campanhas para criar a imagem pública de empresas ambientalmente responsáveis.
Esses esforços continuam ainda hoje, com anúncios da Shell e da Exxon que dão a impressão enganosa de que as companhias estão trocando os combustíveis fósseis pela energia renovável. Na realidade, o relatório anual da Shell mostra que a empresa investiu 25 bilhões de dólares em petróleo e gás no ano passado. Mas não apresenta números sobre seus tão apregoados investimentos em tecnologias de baixo carbono. A empresa também não conseguiu me responder quando solicitei estes valores.
Um artigo publicado na Nature mostra que temos poucas chances de evitar mais de 1,5° C de aquecimento global, a menos que a infraestrutura existente de combustíveis fósseis seja aposentada. Em vez disso, o setor pretende acelerar a produção, gastando quase 5 bilhões de dólares nos próximos dez anos no desenvolvimento de novas reservas. Seu comprometimento é com o ecocídio.
Mas a maior e mais bem espalhada mentira que se conta é a seguinte: que o primeiro grande extermínio é uma questão de escolha do consumidor. Em resposta às perguntas do Guardian, algumas empresas de petróleo argumentam que não são responsáveis por nossa decisão de usar seus produtos. Mas estamos inseridos em um sistema criado por eles – uma infraestrutura política, econômica e física que cria uma ilusão de escolha enquanto, na realidade, impede escolhas.
Somos guiados por uma ideologia tão familiar e onipresente que nem a reconhecemos como uma ideologia. Chama-se consumismo. Foi criada com a ajuda de anunciantes e profissionais de marketing hábeis, pela cultura corporativa de celebridades e por uma mídia que nos formata como destinatários de bens e serviços, em vez de nos informar para sermos criadores da realidade política. Está engessada pelos transportes, pelo planejamento urbano e por sistemas de energia que tornam as boas escolhas quase impossíveis. Ela se espalha como uma mancha pelos sistemas políticos, sistematicamente capturados pelo lobby e pelo financiamento de campanhas, até que os líderes políticos já não nos representem e, em vez disso, trabalhem para os polutocratas que os financiam.
Nesse sistema, as escolhas individuais são dissolvidas no ruído. Tentativas de organizar boicotes são notoriamente difíceis e tendem a funcionar apenas quando há um objetivo pontual e imediato. A ideologia do consumismo é altamente eficaz em jogar a culpa para longe: basta ver as atuais diatribes da imprensa bilionária sobre uma suposta hipocrisia dos ativistas ambientais. Em todos os lugares, vejo ocidentais ricos jogando a culpa pela destruição planetária nas taxas de natalidade de pessoas muito mais pobres ou nos "chineses". Essa individualização da responsabilidade, intrínseca ao consumismo, não nos deixa enxergar os verdadeiros agentes da destruição.
O poder do consumismo é que ele nos torna impotentes. Ele nos prende a um círculo estreito de decisões, em que confundimos escolhas insignificantes entre diferentes tipos de destruição com mudanças efetivas. Devemos admitir: é um golpe brilhante.
É o sistema que precisamos mudar, e não os produtos do sistema. É como cidadãos que devemos agir, não como consumidores. Mas como? Parte da resposta é dada em um pequeno livro publicado por um dos fundadores do Extinction Rebellion, Roger Hallam, chamado Common Sense for the 21st Century (Senso Comum para o Século 21, sem tradução em português). Não concordo com tudo o que diz, mas considero que o rigor e a abrangência de sua análise farão dele um clássico da teoria política.
O livro parte da premissa de que campanhas gradualistas, que fazem pequenas demandas, não poderão impedir as catástrofes do clima e o colapso ecológico. Somente rupturas políticas em massa, a partir das quais poderão ser construídas estruturas democráticas novas e mais adaptáveis, poderão proporcionar a transformação necessária.
Ao estudar mobilizações bem-sucedidas, como a Marcha das Crianças, em Birmingham, Alabama, em 1963 (que desempenhou um papel fundamental para acabar com a segregação racial nos EUA), as Manifestações de Segunda-feira, em Leipzig, em 1989 (que, como uma bola de neve, ajudou a derrubar o regime da Alemanha Oriental) e o movimento Jana Andolan, no Nepal, em 2006 (que derrubou a monarquia absolutista e ajudou a acabar com a insurgência armada), Hallam desenvolveu uma fórmula para "ações de dilema" eficazes. Uma ação de dilema é aquela que coloca as autoridades em uma posição desconfortável. Ou a polícia permite a continuação da desobediência civil, encorajando mais pessoas a se juntar à ação, ou ela ataca os manifestantes, criando um poderoso "simbolismo de sacrifício destemido", e incentivando também mais pessoas a se juntarem. Se a ação for bem concebida e executada, as autoridades nunca ganham.
Entre os elementos comuns cruciais, Hallam descobriu, estão a capacidade de reunir milhares de pessoas no centro da capital, uma disciplina estritamente não-violenta, o foco no governo e a permanência por dias ou semanas seguidas. Uma mudança radical, como revela sua pesquisa, “é principalmente uma questão de números. Historicamente, dez mil pessoas que infringiram a lei têm mais impacto do que o ativismo de pequena escala e alto risco”. O principal desafio é organizar ações que atraiam o maior número possível de participantes. Isso significa que devem ser planejados de forma aberta, inclusivos, divertidos, pacíficos e ativamente respeitosos. Você pode participar de ações assim, como a que foi convocada pela Extinction Rebellion no centro de Londres (no dia 9 de outubro).
A pesquisa de Hallam sugere que essa abordagem oferece, pelo menos, a possibilidade de romper a infraestrutura de mentiras criadas pelas empresas de combustíveis fósseis e de desenvolver uma política compatível com a escala dos desafios que enfrentamos. O seu sucesso é difícil e incerto. Mas, como ele ressalta, as chances de que as políticas hoje adotadas apresentem uma ação capaz de reverter nossa situação altamente preocupante são igual a zero. Ações de dilema em massa podem ser nossa última – e melhor – chance de impedir o grande extermínio.
*Publicado originalmente no The Guardian | Tradução Clarisse Meireles
O golpe de mestre dos grandes poluidores foi nos culpar pela crise climática
Os gigantes dos combustíveis fósseis sabem há décadas o mal que causam. Mas criaram um sistema que os isenta de responsabilidade
11/10/2019 17:43
Créditos da foto: (Ilustração de Eva Bee)
Vamos parar de chamar o fenômeno de sexta grande extinção. Comecemos a chamar do que é: o "primeiro grande extermínio". Em ensaio recente, o historiador ambiental Justin McBrien defende que descrever a atual erradicação de sistemas vivos (inclusive de sociedades humanas) como um evento de extinção faz com que essa catástrofe pareça um acidente passivo.
Embora todos tenhamos participação no primeiro grande extermínio, nossa responsabilidade não é compartilhada igualmente. Os impactos da maioria das pessoas são mínimos. Mesmo as pessoas de classe média nos países mais ricos, que causam efeitos significativos, são guiadas por um sistema de pensamento e ação moldado, em grande parte, pelas grandes corporações.
A série do Guardian sobre os poluidores mostra que 20 empresas de combustíveis fósseis, sendo algumas estatais e outras controladas por acionistas privados, produziram sozinhas 35% do dióxido de carbono e do metano liberados pelas atividades humanas desde 1965. Neste mesmo ano, o presidente da American Petroleum Institute disse a seus membros que o dióxido de carbono produzido por eles poderia causar "mudanças acentuadas no clima" até o ano 2000. Eles sabiam o que estavam fazendo.
Mesmo quando seus próprios cientistas alertaram que a extração contínua de combustíveis fósseis poderia causar consequências "catastróficas", as empresas de petróleo injetaram bilhões de dólares para frear ações governamentais. Elas financiaram thinktanks e pagaram cientistas aposentados e organizações locais fajutas para semear dúvidas e desdém sobre as ciências climáticas. Patrocinaram políticos, particularmente no Congresso dos EUA, para bloquear tentativas internacionais de redução das emissões de gases do efeito estufa. Investiram pesadamente no greenwashing, em campanhas para criar a imagem pública de empresas ambientalmente responsáveis.
Esses esforços continuam ainda hoje, com anúncios da Shell e da Exxon que dão a impressão enganosa de que as companhias estão trocando os combustíveis fósseis pela energia renovável. Na realidade, o relatório anual da Shell mostra que a empresa investiu 25 bilhões de dólares em petróleo e gás no ano passado. Mas não apresenta números sobre seus tão apregoados investimentos em tecnologias de baixo carbono. A empresa também não conseguiu me responder quando solicitei estes valores.
Um artigo publicado na Nature mostra que temos poucas chances de evitar mais de 1,5° C de aquecimento global, a menos que a infraestrutura existente de combustíveis fósseis seja aposentada. Em vez disso, o setor pretende acelerar a produção, gastando quase 5 bilhões de dólares nos próximos dez anos no desenvolvimento de novas reservas. Seu comprometimento é com o ecocídio.
Mas a maior e mais bem espalhada mentira que se conta é a seguinte: que o primeiro grande extermínio é uma questão de escolha do consumidor. Em resposta às perguntas do Guardian, algumas empresas de petróleo argumentam que não são responsáveis por nossa decisão de usar seus produtos. Mas estamos inseridos em um sistema criado por eles – uma infraestrutura política, econômica e física que cria uma ilusão de escolha enquanto, na realidade, impede escolhas.
Somos guiados por uma ideologia tão familiar e onipresente que nem a reconhecemos como uma ideologia. Chama-se consumismo. Foi criada com a ajuda de anunciantes e profissionais de marketing hábeis, pela cultura corporativa de celebridades e por uma mídia que nos formata como destinatários de bens e serviços, em vez de nos informar para sermos criadores da realidade política. Está engessada pelos transportes, pelo planejamento urbano e por sistemas de energia que tornam as boas escolhas quase impossíveis. Ela se espalha como uma mancha pelos sistemas políticos, sistematicamente capturados pelo lobby e pelo financiamento de campanhas, até que os líderes políticos já não nos representem e, em vez disso, trabalhem para os polutocratas que os financiam.
Nesse sistema, as escolhas individuais são dissolvidas no ruído. Tentativas de organizar boicotes são notoriamente difíceis e tendem a funcionar apenas quando há um objetivo pontual e imediato. A ideologia do consumismo é altamente eficaz em jogar a culpa para longe: basta ver as atuais diatribes da imprensa bilionária sobre uma suposta hipocrisia dos ativistas ambientais. Em todos os lugares, vejo ocidentais ricos jogando a culpa pela destruição planetária nas taxas de natalidade de pessoas muito mais pobres ou nos "chineses". Essa individualização da responsabilidade, intrínseca ao consumismo, não nos deixa enxergar os verdadeiros agentes da destruição.
O poder do consumismo é que ele nos torna impotentes. Ele nos prende a um círculo estreito de decisões, em que confundimos escolhas insignificantes entre diferentes tipos de destruição com mudanças efetivas. Devemos admitir: é um golpe brilhante.
É o sistema que precisamos mudar, e não os produtos do sistema. É como cidadãos que devemos agir, não como consumidores. Mas como? Parte da resposta é dada em um pequeno livro publicado por um dos fundadores do Extinction Rebellion, Roger Hallam, chamado Common Sense for the 21st Century (Senso Comum para o Século 21, sem tradução em português). Não concordo com tudo o que diz, mas considero que o rigor e a abrangência de sua análise farão dele um clássico da teoria política.
O livro parte da premissa de que campanhas gradualistas, que fazem pequenas demandas, não poderão impedir as catástrofes do clima e o colapso ecológico. Somente rupturas políticas em massa, a partir das quais poderão ser construídas estruturas democráticas novas e mais adaptáveis, poderão proporcionar a transformação necessária.
Ao estudar mobilizações bem-sucedidas, como a Marcha das Crianças, em Birmingham, Alabama, em 1963 (que desempenhou um papel fundamental para acabar com a segregação racial nos EUA), as Manifestações de Segunda-feira, em Leipzig, em 1989 (que, como uma bola de neve, ajudou a derrubar o regime da Alemanha Oriental) e o movimento Jana Andolan, no Nepal, em 2006 (que derrubou a monarquia absolutista e ajudou a acabar com a insurgência armada), Hallam desenvolveu uma fórmula para "ações de dilema" eficazes. Uma ação de dilema é aquela que coloca as autoridades em uma posição desconfortável. Ou a polícia permite a continuação da desobediência civil, encorajando mais pessoas a se juntar à ação, ou ela ataca os manifestantes, criando um poderoso "simbolismo de sacrifício destemido", e incentivando também mais pessoas a se juntarem. Se a ação for bem concebida e executada, as autoridades nunca ganham.
Entre os elementos comuns cruciais, Hallam descobriu, estão a capacidade de reunir milhares de pessoas no centro da capital, uma disciplina estritamente não-violenta, o foco no governo e a permanência por dias ou semanas seguidas. Uma mudança radical, como revela sua pesquisa, “é principalmente uma questão de números. Historicamente, dez mil pessoas que infringiram a lei têm mais impacto do que o ativismo de pequena escala e alto risco”. O principal desafio é organizar ações que atraiam o maior número possível de participantes. Isso significa que devem ser planejados de forma aberta, inclusivos, divertidos, pacíficos e ativamente respeitosos. Você pode participar de ações assim, como a que foi convocada pela Extinction Rebellion no centro de Londres (no dia 9 de outubro).
A pesquisa de Hallam sugere que essa abordagem oferece, pelo menos, a possibilidade de romper a infraestrutura de mentiras criadas pelas empresas de combustíveis fósseis e de desenvolver uma política compatível com a escala dos desafios que enfrentamos. O seu sucesso é difícil e incerto. Mas, como ele ressalta, as chances de que as políticas hoje adotadas apresentem uma ação capaz de reverter nossa situação altamente preocupante são igual a zero. Ações de dilema em massa podem ser nossa última – e melhor – chance de impedir o grande extermínio.
*Publicado originalmente no The Guardian | Tradução Clarisse Meireles
No comments:
Post a Comment