Wednesday, 23 February 2022

Vai ter guerra na Amazônia

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Vai ter guerra na Amazônia


Claudio Angelo

Queimada em Novo Progresso no "Dia do Fogo"

 

No fim do ano passado tive o privilégio duvidoso de passar quase 20 dias viajando pela Amazônia. Desci a BR-163 de Santarém até Castelo dos Sonhos, no Pará, e na volta percorri a Transamazônica de Itaituba, a capital brasileira do ouro ilegal, até Altamira. Estava acompanhado de Tasso Azevedo, um dos arquitetos das políticas que levaram à queda do desmatamento entre 2005 e 2012 e, em alguns trechos, da jornalista Giovana Girardi, que cobre meio ambiente há mais tempo do que ela gosta de admitir.

Em todos os lugares, mas especialmente no sul do Pará, me senti no famigerado putsch de 7 de setembro na Esplanada. Em Novo Progresso, cidade que come, bebe e respira crime ambiental, era difícil encontrar um estabelecimento comercial ou uma porteira de fazenda sem uma bandeira do Brasil na fachada. Adesivos do “mito” adornavam carros. Uma loja de caça e pesca exibia orgulhosa banners de “não é pelas armas, é pela liberdade”. Para andar sozinho sem despertar suspeitas, colei um adesivo de “Bozo 2022” na mochila, mas na porta do hotel Tasso logo me avisou da futilidade do esforço: “Você é a única pessoa de máscara na cidade, todo mundo vai saber que você é de fora”.

Novo Progresso está vivendo seu grande momento. Em seus restaurantes lotados, onde uma pizza é vendida a 130 reais, em suas concessionárias de pás carregadeiras e lojas de motosserras, em seus silos e frigoríficos, tudo recende a um lugar onde está correndo dinheiro. Dinheiro de garimpo clandestino, de venda de terra grilada, de gado criado dentro de uma área protegida vizinha à cidade, de soja colhida onde antes era o gado e antes do gado era o grilo e antes do grilo era a mata. Novo Progresso e as vizinhas Castelo dos Sonhos (um distrito de Altamira), Trairão e Itaituba reelegerão Jair Messias Bolsonaro por larga margem em outubro deste ano.

Bolsonaro deu a essas e outras cidades amazônicas exatamente o que prometera na campanha e o que elas sempre desejaram: liberdade total. Seu governo arrancou o superego do chamado “setor produtivo” ao assegurar que o Estado, na forma do Ibama, da Polícia Federal, da Agência Nacional de Mineração e outras, não mais perturbaria o trabalho honesto e suado dessas pessoas de bem. Em janeiro deste ano, gabou-se do serviço bem feito ao dizer que “reduzimos em 80% (sic) as multagens (sic)” no campo. 

Embora a redução não tenha sido de 80% (por que Bolsonaro não mentiria sobre isso também?), todos os indicadores de desempenho do Ibama em sua gestão, ano após ano, são os piores das últimas duas décadas. O governo disponibiliza dinheiro para a fiscalização ambiental como um decoy. Enquanto a imprensa e John Kerry perseguem o fetiche dos recursos, o governo os disponibiliza, mas garante que eles não servirão para nada. O homem amazônico da fronteira ganhou segurança para fazer o que faz de melhor desde a década de 1970: privatizar terras públicas, incorporando sua madeira, os nutrientes de seu solo e seus minérios.

À primeira vista, Novo Progresso é a própria realização da visão de Paulo Guedes de um mundo onde o setor privado opera sem travas, sem regulações e sem o dedo do Estado. Quem chegar primeiro leva, escolhe-se entre ter emprego e ter direitos e frequentemente “meritocracia” se mede pela quantidade de balas no revólver. O problema é que, como toda utopia anarcocapitalista, essa também tem muito de “anarco” e pouco de “capitalista”. A economia da fronteira amazônica só prospera porque é enormemente subsidiada. A terra é de graça; os nutrientes do capim que engorda o boi são de graça; e os efeitos climáticos do desmatamento, a mãe de todas as falhas de mercado, não são abatidos do preço da arroba de carne nem da saca de soja. A conta quem paga é você a cada enchente em Itabuna, cada deslizamento em Franco da Rocha e cada seca que esgota a energia das hidrelétricas do Centro-Sul. Para os homens (porque são quase sempre homens) de bem da Amazônia, the mamata never ends. E a teta nunca foi tão generosa quanto na era Bolsonaro. E é por isso que em 2023, não se engane, a floresta vai entrar em guerra.

Com a possibilidade felizmente cada vez mais plausível de o facínora perder a eleição, o próximo presidente vai precisar fazer uma escolha muito difícil sobre a Amazônia. Pode deixar tudo como está, com a economia de metade do território entregue ao crime organizado. Ou pode intervir. E aí o bicho vai pegar.

Porque qualquer intervenção que se faça para conter o ecocídio e o etnocídio em curso na Amazônia necessariamente terá de envolver a volta do Estado por meio de ações pesadas de comando e controle. As grandes investigações do Ibama e da PF, com prisões de funcionários públicos, apreensão de gado, embargo de fazenda de deputado e queima de equipamento de amigo de senador, terão de voltar a ser rotina. O finado Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia, que vigorou de 2004 a 2019, vai ter de fazer um retorno triunfal. E o “setor produtivo” vai precisar voltar a ter medo de satélite.

Se o eleito for Luiz Inácio Lula da Silva, essa responsabilidade será redobrada. Em seu governo começaram a ser adotadas as medidas que levaram à queda do desmatamento (que ele próprio passou a torpedear depois, mas essa é outra história). Lula, que andou visitando os chefes de governo climaticamente conscienciosos da Europa, sabe que um choque de gestão ambiental com drástica redução do desmatamento é a primeira medida a ser adotada para que o Brasil seja novamente aceito à mesa da comunidade internacional.  

Nada disso vai acontecer com o Exército gastando meio bilhão de reais para distribuir panfletos educativos aos bandidos ou com o governo pedindo moderação à turma da motosserra. Há três anos eles estão com a chave da adega e um passe livre no Bahamas; não serão simplesmente persuadidos a ficar sóbrios e castos só porque o filme do Brasil está queimado e o planeta está tostando. Haverá, anote, bloqueios de rodovia, passeatas, atentados a escritórios do Ibama, veículos queimados, agentes alvejados. O helicóptero do órgão ambiental incendiado dentro de um aeroclube em Manaus em janeiro foi só um aperitivo do que vem por aí. Para citar apenas um exemplo, há um CAC (clube de atiradores, esse instrumento da milicianização oficial do país) sendo construído no meio do nada numa fazenda em Castelo dos Sonhos a 40 quilômetros de uma terra indígena. Ninguém faz uma coisa dessas num lugar desses para treinar atletas para a Olimpíada de Paris.

Haverá pressão total de prefeitos e parlamentares locais sobre governadores recém-eleitos e do Centrão sobre o Planalto para um enorme “deixa disso”, um acordo “com Supremo, com tudo” para mudar a legislação ambiental e “pacificar de vez” o campo. Foi esse o papo usado em 2010 para mudar o Código Florestal, em 2012, o que não apenas não pacificou coisa alguma como pôs fim ao ciclo virtuoso de queda na devastação da Amazônia.

O próximo ocupante do Palácio do Planalto terá de chegar a Brasília em janeiro com tampões no ouvido e amarrado ao mastro para não sucumbir ao canto de sereia da flexibilização das leis. Ao mesmo tempo, terá de estar preparado para uma reação violenta de patriotas armados a qualquer plano sistemático para reduzir as taxas de desmatamento. Bolsonaro pode até ir embora, mas o bolsonarismo criou raízes na floresta e não vai largar o osso fácil. Dois mil e vinte e três será um ano tenso, ruidoso e possivelmente sangrento na Amazônia.

Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como NatureScientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.




Ibama analisa processos para autorização de hidrovia entre Cáceres e Corumbá

 https://correiodoestado.com.br/cidades/ibama-analisa-processos-para-autorizacao-de-hidrovia/396854


Ibama analisa processos para autorização de hidrovia entre Cáceres e Corumbá

Entidades ambientais apontaram que o órgão federal tem a possibilidade de ampliar uma licença atual

RODOLFO CÉSAR

23/02/2022 09:30

    

A autorização para dragagem do Rio Paraguai, para permitir que a Hidrovia Paraguai-Paraná possa ser viabilizada, está sob análise do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), informou a Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT).  

Conforme a pasta, são dois processos em andamento, os quais correspondem ao trecho I da hidrovia, que é de Cáceres, onde tem a nascente do rio, até Corumbá, que está no meio do Pantanal.  

A viabilização desse modal de transporte tem sido questionada por órgãos ambientais, ongs e universidades, pela falta de estudos que detalhem os impactos. O trecho já possui navegação, mas de embarcações de turismo e de menor porte.  

Para haver o transporte de cargas, o rio terá de ter estrutura para a navegação de embarcações de 140 metros de comprimento por 24 metros de largura, no período de 24 horas, 8 meses por ano.

Análises anteriores da Embrapa Pantanal e do Ministério Público Federal de MS indicaram que uma dragagem necessária para o transporte de cargas no trecho entre Cáceres e Corumbá tem o risco de mudar o ciclo de cheia nas regiões da Estação Ecológica Taiamã, no Parque Estadual do Guirá (Rio Cuiabá) e no Parque Nacional Pantanal Mato-Grossense, que é considerado um sítio de área úmida de importância internacional (Sítio Ramsar) desde 1993.

De acordo com a Sema-MT, como o funcionamento da hidrovia em si é de competência da União, a regulamentação da navegação fluvial precisa passar por licenciamento do Ibama e todos os procedimentos legais estão sendo seguidos.

“O Ibama tem a competência de licenciar eventuais obras necessárias no curso da hidrovia, como obras de engenharia e dragagens, o que já vem sendo feito pelo órgão com dois processos de dragagem do rio”, afirmou a secretaria em nota enviada ao Correio do Estado.

O jornal publicou o assunto na edição do dia 14 deste mês, apontando o alerta de que 168 entidades, muitas delas ligadas ao grupo Observatório Pantanal, fizeram os processos de licença ambiental tanto para uso da hidrovia como para a construção do porto Barranco Vermelho, a ser erguido às margens do Rio Paraguai, em Cáceres.  

PREOCUPAÇÃO

Uma carta de manifesto foi divulgada para questionar a falta de critérios técnicos de autoridades de Mato Grosso para autorizar a obra de construção de armazéns do porto, concedida em 26 de janeiro.

Atualmente, há uma licença concedida pelo Ibama para a dragagem do Rio Paraguai, porém, essa intervenção é voltada para permitir que embarcações de turismo e de pequeno porte possam navegar com segurança.  

Essa autorização serve, inclusive, para a realização de dragagem até a região de Corumbá. Ela tem validade até 2023 e anualmente passa por renovação, desde 2021.

Conforme apurado com entidades que atuam no monitoramento do Pantanal tanto em Mato Grosso como em Mato Grosso do Sul, a atual licença do Ibama dá margem para que seja solicitada uma ampliação, que permitiria a dragagem com dimensão que viabilizaria a navegação de grandes embarcações.  

Quem faria esse pedido seria o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Juridicamente existe essa possibilidade e, caso isso seja autorizada pelo Ibama, essa medida acaba não sendo obrigatória para ser publicada no Diário Oficial da União.

Apesar da possibilidade de ampliação da licença, oficialmente não existe confirmação de que esse pedido já foi feito.  

A reportagem contatou o Ibama, mas não obteve retorno. Conforme entidades que têm acesso a sistemas de autorização e monitoram publicações oficiais, não houve ainda notificação.

O que gera alerta sobre esse cenário de ampliação da dragagem é o avanço de obras em torno do porto Barranco Vermelho, em Cáceres.  

O pedido de licenciamento para o empreendimento existia desde outubro de 2016, no entanto, só avançou em janeiro deste ano. 

De acordo com a Sema-MT, todos os procedimentos legais foram observados para haver a autorização da licença prévia para a obra.

 
 

Saiba

A Sema-MT apontou que a licença prévia para construção do porto Barranco Vermelho exigiu da Líneas Panchita – multinacional paraguaia ligada ao LPG Group, responsável pela construção do empreendimento – a compensação a ser feita na região com 14 atividades distintas, entre as quais estão o Programa de Controle de Processos Erosivos; de Ruídos; de Afluentes e Monitoramento das Águas Superficiais. 

Milton Santos | 13 livros em PDF para download

 https://www.geledes.org.br/milton-santos-13-livros-em-pdf-para-download/

Milton Santos | 13 livros em PDF para download

Milton Santos (1926 – 2001) destacou-se por seus trabalhos em diversas áreas da geografia, em especial nos estudos de urbanização do Terceiro Mundo. Foi um dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil ocorrida na década de 1970. Sua obra caracterizou-se por apresentar um posicionamento crítico ao sistema capitalista, e seus pressupostos teóricos dominantes na geografia de seu tempo.

Em Por uma Outra Globalização, livro escrito dois anos antes de sua morte, o autor realiza uma abordagem crítica sobre o processo de globalização capitalista, ao qual corresponde, segundo o geógrafo, a produção de novos totalitarismos e o pensamento único, que transformam o consumo em ideologia e os cidadãos em meros consumidores, massificando e padronizando a cultura e concentrando a riqueza nas mãos de poucos.

Para aqueles que queiram conhecer melhor a obra do autor, segue abaixo o link para download de 13 de seus livros em PDF:

A cidade como centro da região – CLIQUE AQUI!
A Natureza do espaço – CLIQUE AQUI!
A Urbanização Brasileira – CLIQUE AQUI!
Economia espacial, críticas e alternativas – CLIQUE AQUI!
Metamorfoses do espaço habitado – CLIQUE AQUI!
O país distorcido – CLIQUE AQUI!
Por uma outra globalização – CLIQUE AQUI!
Técnica Espaço Tempo – CLIQUE AQUI!
O centro da cidade de Salvador – CLIQUE AQUI!
Por uma nova Geografia – CLIQUE AQUI!
Territórios, Territórios – Ensaio sobre o ordenamento territorial – CLIQUE AQUI!
O Brasil – Território e sociedade no início do século XXI – CLIQUE AQUI!
Território – Globalização e fragmentação – CLIQUE AQUI!

Para aqueles que gostaram deste post, indicamos também o post “Milton Santos | O mundo visto do lado de cá: Documentário”, para ver é só clicar aqui!

Foto em destaque: Reprodução/Site Milton Santos

Monday, 21 February 2022

Imagens de fotógrafo argentino revelam o efeito devastador dos agrotóxicos

 https://midianinja.org/news/imagens-de-fotografo-argentino-revelam-o-efeito-devastador-dos-agrotoxicos/

Foto: Pablo Piovano

Por Nadine Nascimento e Luiza Mançano

Atrofia muscular, câncer, mutações genéticas, hidrocefalia e retardo mental são algumas das condições que afetam crianças e adultos nas províncias de Misiones, Entre Ríos e Chaco, na Argentina, onde o glifosato, herbicida comercializado pela Monsanto sob o nome comercial de Roundup, é utilizado em grande escala. No ensaio e documentário, o fotógrafo argentino Pablo Piovano, que trabalha no jornal Página 12, retrata o efeito devastador do uso indiscriminado de agroquímicos na agricultura.

O fotógrafo conta que a ideia para o projeto surgiu em 2014, após ser apresentado a dados médicos sobre a contaminação de pessoas pela utilização de agrotóxicos. “Em 2005, aproximadamente, a Rede de Médicos do Povo fez um encontro em que divulgaram dados contundentes, com números alarmantes, quase uma catástrofe sanitária na zona rural. Quando eu vi esses números e vi que os meios de comunicação eram cúmplices desse silêncio, decidi sair e documentar pra ver o que estava acontecendo”, relata.

De forma independente e com recursos próprios, ele partiu no final de 2014 para registrar os casos, percorrendo aproximadamente 15 mil quilômetros em sete viagens. Piovano foi motivado por sua “ideia romântica” de que a fotografia deve ser um instrumento de transformação. “Ao longo do tempo, a memória que constrói a fotografia de denúncia sempre serve para produzir uma mudança”, acredita.

O fotógrafo diz que foi recebido de “portas abertas” nas mais de cem casas que visitou, pois os atingidos tinham a necessidade de narrar suas histórias. “A maioria das pessoas sabe porque os filhos nascem com má-formação. Em todas as fotos que tenho, há um testemunho dos pais dizendo que a má-formação dos seus filhos é causada pelos agrotóxicos”, lembra.

Foto: Pablo Piovano

Território de experimentação

Em 1996, a Argentina faz um acordo com a Monsanto para o uso de sementes transgênicas e do glifosato em sua produção de soja, em um trâmite rápido “sem análise científica, sem avaliação de danos humanos”. A partir desse momento, o país se tornaria “um território de experimentação”, segundo o documentário.

Em duas décadas, 60% da área cultivável do país passou a ser ocupada por lavouras transgênicas que recebem, anualmente, mais de 300 milhões de litros de agrotóxicos. Os números estão diretamente relacionados com os casos de câncer e abortos espontâneos que triplicaram na Argentina nesse período.

O fotógrafo explica que a força dos grandes latifundiários que utilizam agrotóxicos e dos fabricantes desses produtos é muito grande, por isso o tema da contaminação não é pauta na imprensa tradicional do país, apenas em veículos independentes. “O motivo é simples: os donos dos meios são latifundiários, que têm poder político. Estamos falando de um negócio muito grande, que no fundo e no centro está o controle alimentar, a soberania alimentar, o que não é pouca coisa”.

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Mapa das cinco viagens realizadas entre 2014 e 2017 às províncias de Entre Ríos, Misiones, Chaco, Córdoba e Santa Fe. Indo e voltando, o fotógrafo Pablo E. Piovano percorreu aproximadamente 15.000 quilômetros.

Confira o ensaio completo

Wednesday, 16 February 2022

O futuro da sustentabilidade: bioeconomia bioecológica garantirá inclusão e equidade social

 https://umsoplaneta.globo.com/opiniao/colunas-e-blogs/o-mundo-que-queremos/post/2022/02/o-futuro-da-sustentabilidade-bioeconomia-bioecologica-garantira-inclusao-e-equidade-social.ghtml

Por Francisco de Assis Costa e Carlos Nobre*

 

Desde o marcante Relatório Brundtland patrocinado pela ONU, o icônico Nosso Futuro Comum, publicado em 1987, evoluem dois movimentos de ideias e ações correlacionadas cruciais para o nosso tempo. De um lado, o reconhecimento de que uma crise global ambiental-ecológica se instalara, inerente aos padrões de crescimento das sociedades industriais, os quais, ademais, aprofundavam desigualdades sociais que não eram neutras na crise ambiental-ecológica; de outro, o estabelecimento de princípios orientadores de um desenvolvimento na contramão dessa crise.

Nos anos que se seguiram, em oposição à insustentabilidade que se conseguia discernir no âmago dos processos reprodutivos das sociedades contemporâneas, se desenvolveu um ideário de sustentabilidade, mediante o qual, disposições e instituições deveriam primar por crescimento ambiental e ecologicamente prudente, socialmente equânime e economicamente viável. Com isso, procurando reduzir o risco de uma catástrofe climática e de perda irreversível da biodiversidade, se estabeleceu a esperança de garantir para as gerações futuras as condições naturais que fundamentaram a existência das atuais.

Correlatamente, emergiram “operadores programáticos” do ideário do desenvolvimento sustentável: o delineamento de panoramas de possibilidades, a organização de portfólios de alternativas, ou, ainda, planos e lineamentos de ação que, ao abordarem, em termos práticos, aspectos específicos da insustentabilidade, dão sentido real e concreto ao ideário da sustentabilidade. Os programas “Crescimento Verde”, do Banco Mundial, e “Economia Verde” da ONU, lançados com grande expectativa em fins da primeira, início da segunda década do presente século, incluem-se entre esses “operadores”. O movimento de ideias e de ações em torno da noção de bioeconomia, com grande força no presente momento, também.

Conceitos e práticas de bioeconomia vêm se desenvolvendo carregados desse sentido de transição ecológica, do insustentável para o sustentável: dos pontos em que trajetórias tecno-produtivas se mostram insustentáveis (por se aproximarem das fronteiras em que eliminarão seus fundamentos naturais) para outros, a partir dos quais, presumivelmente, elas retomariam o desenvolvimento com atributos de sustentabilidade.

Assim, ali onde as técnicas produtivas, por seus conteúdos mecânicos e químicos, se mostram cumulativa e perigosamente degradantes para a vida, desenvolvem-se tensões que configuram ambientes de inovações em processos de base biológica – biotecnologias; ali onde são os meios e resultados dos processos produtivos, pelas suas constituições inorgânicas ou existências finitas, os vetores de agressão aos ciclos vitais da natureza, se enfatiza o desenvolvimento de produtos, seja como novas matérias primas, seja como novos bens finais de base biológica e renovável.

Essas duas rotas constituem mainstreams da bioeconomia na Europa (ênfase em bioeconomia de bioprocessos, ou biotecnológica) e nos Estados Unidos (ênfase em bioeconomia de bioprodutos) e vêm se estabelecendo como referências para diferentes iniciativas no Brasil, importantes porque podem reorientar o agribusiness em uma perspectiva ambientalmente menos agressiva.

Não obstante, uma terceira rota, pouco tratada e obscurecida, se apresenta fundamental entre nós: trata-se de uma bioeconomia bioecológica, guiada por princípios agroecológicos ou agroflorestais, referidas aos biomas do país e aderentes às necessidades de inclusão e equidade social. Exemplos dessas bioeconomias de floresta em pé, e em expansão, já existem e são, por suposto, ambientalmente saudáveis. A transição aqui, na perspectiva do desenvolvimento sustentável, seria de ordem econômica e social: de economias de fundamentos infraestruturais, organizacionais e mercadológicos precários – o que lhes empresta, na atualidade, caráter subalterno, com baixa retenção dos seus resultados – para economias com capacidade de interações virtuosas com o mercado e com a política.

Na Amazônia, a bioeconomia referida ao bioma se faz ou porque se manejam os recursos originários do bioma (os recursos das matas, das águas e dos solos) numa espécie de “extrativismo dinâmico”, mantendo a diversidade e complexidade seminais em “sistemas silviagriculturais”; ou porque se procuram imitar em “sistemas agrosilviculturais” as qualidades do bioma – o que resulta numa “agricultura holística”, diversa e complexa.

Em conjunto, essas duas rotas compõem uma economia significativa e dinâmica: o capítulo 15 do relatório do Science Panel for the Amazon, da ONU, recém-lançado em Glasgow, na COP26, dá conta de que o número de estabelecimentos rurais dela participantes em todos os municípios do bioma amazônico saiu de 125 mil em 1995, para 186 mil em 2017, crescendo o valor da produção rural a 4,2% a.a. no mesmo período, de US$ 400 milhões para US$ 1,1 bilhões, para um emprego que se mantém na casa dos 400 mil trabalhadores.

Um outro estudo recente, A Bioeconomia da Sociobiodiversidade no Pará, patrocinado pela TNC, BID e Natura, mostra que a economia urbana em torno dela (indústria e serviços) multiplica o valor da produção rural por 2,9. A essa particular economia deve ser dada atenção primordial.

*Francisco de Assis Costa é Professor Titular do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos e do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal do Pará e membro e autor líder do Painel Científico da Amazônia e Carlos Nobre é Pesquisador Colaborador do Instituto de Estudos Avançados da USP, vice-presidente e autor líder do Painel Científico da Amazônia.