Thursday, 31 March 2022

58 anos do Golpe - A "muralha", as "ordens do dia" e o Brasil

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Diálogos Públicos
Colunista do UOL
31/03/2022 06h00



Marcelo Pimentel *

58 anos do Golpe - A "muralha", as "ordens do dia" e o Brasil

As Forças Armadas, integradas por militares na ativa e inatividade, devem ser politicamente neutras, ideologicamente imparciais, apartidárias em sentido amplo, funcionalmente isentas, essencialmente profissionais e estritamente constitucionais.

Esses princípios, presentes nas democracias liberais e consolidados pelas lições da História, funcionam como camadas de uma "muralha" que deve separar as Forças Armadas e os militares da política e de governos - quaisquer política e governos. A segregação dos espaços "institucionais" evita ou, ao menos, reduz os riscos de que características e dinâmicas essenciais e desejáveis em um possam degenerar-se quando impropriamente levadas para outro.

"Quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina sai pela outra". A frase, celebrizada pelo general Peri Bevilacqua à época da imposição do Ato Institucional nº 5 em 1968 - ele mesmo compulsoriamente "aposentado" como ministro do Superior Tribunal Militar por criticar aquele instrumento ditatorial - resume com alguma precisão os efeitos negativos que o "ethos" político pode provocar ao penetrar e pautar o espaço militar, que é predominantemente rígido, verticalizado em sentido descendente - do líder para o liderado - e fundamentado na coesão, na obediência sem discussão e na unidade imposta, sintetizando-se na relação-função comandar-obedecer.

"É simples assim: um manda e o outro obedece". A expressão, notabilizada por um general na ativa no desempenho do cargo político de Ministro da Saúde - com autorização ou consentimento do Comando do Exército e do Ministério da Defesa em 2020 - explicando o motivo de ter retroagido na celebração de um pré-contrato para aquisição de vacinas, resume com alguma precisão os efeitos que o "ethos" militar pode provocar ao invadir e guiar o espaço político, que é flexível, horizontalizado ou verticalizado em sentido ascendente - do liderado para o líder - e fundamentado no dissenso, na discussão entre "iguais" e no partidarismo, sintetizando-se na relação-função eleger-governar.

A ordem jurídica estabelecida pela Constituição Federal de 1988 define claramente o lugar social e institucional do militar e das Forças Armadas, onde devem atuar, funcional e politicamente, sempre de acordo com os princípios "organizacionais" da hierarquia e da disciplina.

Impróprio e anacrônico, o atual protagonismo político de cúpulas hierárquicas - generais e coronéis - acentua os evidentes processos de politização das Forças Armadas - de seus integrantes - e de militarização da política e da sociedade, exercendo sobre a "muralha" pressões que já parecem comprometê-la.

A História do Brasil, especialmente desde o término da Guerra da Tríplice Aliança no século XIX, apresenta inúmeros exemplos de revoltas, rebeliões, "quarteladas", motins, "putsch", golpes - tentados ou efetivados - e todo tipo de intervenção militar na política. Três décadas foram necessárias para a sociedade brasileira e suas Forças Armadas erguerem a "muralha" após os vinte e um anos do regime ditatorial inaugurado pelo Golpe iniciado em 31 de março de 1964.

Por tudo isso, é muito preocupante que, na segunda década do Século XXI, generais comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, em conjunto com o Ministro da Defesa, também general, publiquem "ordens do dia" versando sobre aqueles eventos - o Golpe e a Ditadura.

Documentos oficiais, as "ordens do dia" são uma comunicação do comandante com a tropa em situações especiais. Têm caráter de pauta, orientação, baliza, referência e, em sentido amplo, de ordem. Quando um comandante a assina e publica, todos os oficiais e praças devem tomar conhecimento. Muitas vezes, são lidas em formatura e referem-se, normalmente, a efemérides militares relacionadas a batalhas, guerras e personagens de atuação destacada e meritória "em combate".

Será cabível, então, referir-se ao Golpe de 1964 e à Ditadura como "marcos para a democracia" diante de homens e mulheres imóveis, silenciados e obrigados a escutar texto laudatório a tais eventos? Foi o que ocorreu, por exemplo, em 2020, na "ordem do dia" que se iniciava com o seguinte período: "O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. O Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época".

Naquela e em outras "ordens do dia" sobre a "Revolução" ou o "Movimento", e como forma de "justificar" ou contemporizar sua inspiração, essência e dinâmica autoritárias, menciona-se realizações práticas do regime ditatorial julgadas "positivas" nos campos econômico e social, sem nenhuma referência à deterioração do campo político e às graves crises econômico-sociais de efeitos duradouros.

Expedir "ordem do dia" para os eventos relacionados à Ditadura 64-85 e à "Intentona Comunista de 1935" - outro exemplo de rebelião militar que tem sido motivo para a expedição do documento -, implicaria, por questões lógicas e isonômicas, a publicação de "ordens do dia" para todos os demais eventos de natureza política que, de alguma forma, tiveram o protagonismo das Forças Armadas, em especial de suas cúpulas hierárquicas. Por que não fazer uma "ordem do dia", por exemplo, sobre o "Golpe do Estado Novo" ou sobre o primeiro e segundo 5 de julho (1922 e 1924)? Também foram "marcos históricos da evolução política brasileira", título, aliás, da "ordem do dia" que rememora o Golpe de 1964 e a Ditadura no presente ano.

Evidentemente, temas de tal categoria são absolutamente inapropriados para abordagens nesse tipo de comunicação oficial de caráter impositivo, elogioso e geral. Caso seja julgado necessário, as problematizações devem ser feitas nas esferas de natureza "escolar" e "acadêmica" - militar ou não - sujeitas a métodos específicos para tratamento de objetos como esse.

Entretanto, também nessas esferas observa-se algumas caracterizações superficiais e possivelmente enganosas ou distorcidas sobre o Golpe de 64 e o regime ditatorial que inaugurou. Na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, destinada à preparação do capitão para o prosseguimento da carreira até o posto de coronel, por exemplo, o plano da disciplina "História Militar" dedica oito horas ao estudo do "período dos Governos Militares", estabelecendo como objetivos ao capitão-aluno: "descrever os antecedentes do Movimento de 31 de março de 1964, destacando as ações do Movimento Comunista Internacional"; "apresentar a atuação dos presidentes militares [...] do período de 1964 a 1985"; e "apresentar o processo de abertura do Brasil, iniciada pelo Presidente Geisel" (sic). É dispensável realçar as imprecisões conceituais presentes nesses marcos didático-pedagógicos para se entender como pode estar sendo processada a "formação" da visão do oficial do Exército sobre a História do país e da própria Instituição.

Não é necessário, sequer, recorrer à farta produção intelectual - acadêmica ou não - para caracterização, categorização e definição daqueles fatos como marcos do autoritarismo - não como "marcos para a democracia" -, como Golpe - não como "Movimento" - e como Ditadura - não como "período de Governos Militares".

Suficiente é ler os dezessete atos institucionais produzidos durante o período que, assim como as "ordens do dia", estão assinados por generais. Na fria letra da lei, fonte histórica de valor indiscutível, mostra-se do que se tratava aquilo que os signatários da "ordem do dia" de 2020 chamavam de "marcos para a democracia".

Em verdade, nem é necessário dar-se ao trabalho de ler os Atos, bastando a leitura do preâmbulo do Ato Institucional nº 1, redigido pelo mesmo autor da Constituição de 1937, que fundou a Ditadura do Estado Novo - Francisco Campos.

Naquele preâmbulo de 9 de abril de 1964, uma espécie de "ordem do dia" dos comandantes das Forças Armadas ao "povo", o "movimento civil e militar [...] que houve e continuará a haver [...], não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na própria opinião pública nacional, é uma autêntica revolução".

Inspirados pela revisão historiográfica da Ditadura do Estado Novo, fundada, mantida e encerrada por cúpulas hierárquicas das Forças Armadas -transformou-se o Golpe Civil-Militar de 1930 em "Revolução de 1930" -, os golpistas de 1964 atribuíam-se, desde o início, a falsa categoria de "revolucionários".

No preâmbulo, mais adiante, "a revolução vitoriosa [...] se legitima a si mesma. [...] Destitui o governo anterior [...] e não procura legitimar-se através do CongressoEste é que recebe deste Ato Institucional, [...] a sua legitimação". Em suma, estabelecia-se o caráter essencialmente ditatorial e antidemocrático que iria marcar os vinte e um anos seguintes. Isto não era e nunca será "marco para a democracia". Dizê-lo, assim e agora, não parece preciso nem sensato.

A manutenção da prática de expedição de "ordens do dia" abordando tais eventos e períodos - o Golpe de 1964 e a Ditadura -, além de demonstrar a impropriedade do ato em si no contexto nacional e internacional - não se conhece país democrático e livre em que chefias das Forças Armadas procedam de modo similar -, evidencia a passividade e a leniência de autoridades e da sociedade brasileiras, deficiências que não devem confundir-se com tolerância e consenso. Chefes de organizações de Estado não devem elevar opinião ou visão pessoal sobre temas de natureza sócio-histórica a posição ou postura "institucional", sempre generalizante, vinculadora e uniforme, menos ainda em corporações militares baseadas na hierarquia e disciplina.

"O passado nunca foi, o passado continua". Esta frase do sociólogo e então deputado Gilberto Freyre no plenário da Constituinte de 1946 é criticada pela antropóloga e escritora Lilia Moritz Schwarcz que, em seu último livro - "Sobre o Autoritarismo Brasileiro" -, expõe uma síntese muito pertinente a partir desse passado que não passa: "[...] mas é esse passado que vira e mexe vem nos assombrar, não como mérito e sim tal qual fantasma perdido, sem rumo certo. O nosso passado escravocrata, o espectro do colonialismo, as estruturas de mandonismo patriarcalismo, a da corrupção renitente, a discriminação racial, as manifestações de intolerância de gênero, sexo e religião, todos esses elementos juntos tendem a reaparecer, de maneira ainda mais incisiva, sob a forma de novos governos autoritários, os quais, de tempos em tempos, comparecem na cena política brasileira" (2019, p. 224).

Numa época de exacerbação de extremismos políticos e sociais frequentemente fantasiados de nacionalismo ou sentimento de amor à Pátria, em que se "partidarizam" símbolos e significados pertencentes a todos os brasileiros, é imprescindível elaborar duas questões, com as quais se encerra essa construtiva reflexão crítica em defesa da consolidação do Estado Democrático de Direito no Brasil e em respeito às suas Forças Armadas, a que pertenço com muito orgulho:

- o Brasil vai continuar ignorando o esfacelamento da "muralha" que deve separar as Forças Armadas e os militares da política e de governos - quaisquer política e governos?

- o Brasil vai continuar permitindo que as chefias de suas Forças Armadas e de seu Ministério da Defesa publiquem "ordens do dia" sobre o Golpe de 64 e a Ditadura, a eles se referindo como "marcos para a democracia brasileira"?

* Marcelo Pimentel é oficial do Exército, na inatividade. É Mestre em Ciências Militares, stricto sensu, pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, 2006.

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“Herança da ditadura tem de ser combatida com reforma no ensino militar”, diz Vannuchi


“Herança da ditadura tem de ser combatida com reforma no ensino militar”, diz Vannuchi

https://apublica.org/2022/03/heranca-da-ditadura-tem-de-ser-combatida-com-reforma-no-ensino-militar-diz-vannuchi/

Fonte: Agência Pública

Resumo:

Em entrevista à Pública, ex-ministro Paulo Vannuchi e diretora da Anistia Internacional, Jurema Werneck, apontam retrocessos e apologia da ditadura por parte de governo e militares

Por Vasconcelo Quadros

O país chega aos 58 anos do golpe de 31 de março de 1964 num ambiente democrático, mas com sombras de censura – como a tentativa de calar artistas nas manifestações durante o Lollapalooza – e retrocessos flagrantes na política de direitos humanos. Dois especialistas no tema ouvidos pela Agência Pública, o ex-ministro Paulo Vannuchi, e a diretora executiva da Anistia Internacional, Jurema Werneck denunciam que, sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, houve um deliberado desmonte dos mecanismos institucionais do direito à memória e à verdade construídos nos últimos 20 anos para restabelecer a realidade dos fatos ocorridos durante a ditadura e reparar as vítimas do Estado.

Para o ex-ministro dos Direitos Humanos e a diretora da Anistia Internacional, além de descumprir a Lei da Anistia, o governo e o Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos agiram intencionalmente no sentido de inverter o funcionamento da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e da Comissão da Anistia, antes sob responsabilidade do Ministério da Justiça, pasta mais adequada para lidar com o tema. Com isso interrompeu-se o processo de reparação e buscas para localizar os corpos de militantes políticos, que somam, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), 434 mortos e desaparecimentos nunca reconhecidos pelo regime militar.

“A Constituição de 1988 estabeleceu os parâmetros de como o Brasil deve funcionar. Infelizmente, a partir da campanha eleitoral de 2018, a gente tem visto o atual dirigente em confronto com essa visão. O que se vê em relação a esse capítulo é o descumprimento da legislação e da decisão que o Brasil já havia tomado em relação a herança militar”, completa Jurema Werneck, destacando que a Anistia Internacional se juntará aos movimentos que terão de agir de forma “consistente e insistente” para “recolocar o Brasil na restauração dos mecanismos de preservação dos direitos humanos”, interrompida pelo governo Bolsonaro. 

“A memória, a justiça e a reparação são direitos estabelecidos. As Forças Armadas, que servem ao Brasil e se envolveram em graves violações, devem colaborar para recolocar o país no rumo certo”, diz a diretora da Anistia. 

Jurema Werneck durante sessão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2016; Jurema é uma mulher negra com cabelos e olhos castanhos, ela usa óculos quadrados e veste um casaco colorido
Para Jurema Werneck, “todos os mecanismos que garantiam o direito à memória e à verdade foram desmantelados”

Ontem o ministério da Defesa e as Forças Armadas divulgaram nota chamando o golpe de 1964 de “marco histórico da evolução política brasileira”.

Responsável pelo maior acervo de direito à memória e à verdade organizado durante o governo Lula, Vannuchi destaca entre o desmonte da política de direitos humanos a paralisia e, em muitos casos, anulação dos processos pelo reconhecimento das vítimas da perseguição política. “Colocaram uma ideologia de ódio nas comissões e estão negando ou anulando processos sob o argumento de que os autores de requerimentos são terroristas. Não foi só lá. O Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, é gerido por um dirigente de clube de tiro (Ricardo Borda D’ Água de Almeida Braga cuja nomeação está sendo investigada pelo MPF)”.

Quando ministro, Vannuchi coordenou boa parte das investigações que resultaram na organização do banco de dados, inclusive com o DNA de familiares das vítimas da ditadura. “A orientação do presidente Lula tinha duas linhas básicas: encontrar corpos e abrir arquivos. A tarefa de punição dos violadores ficaria com o judiciário. Deixamos lá um trabalho intenso, que levou à CNV no governo Dilma, e se tornou irreversível. O momento é de virar essa página da história, mas isso exigirá tempo e esforço”, afirma. 

Ele garante que todos os arquivos importantes com documentos sobre memória estão intactos e com backups muito bem guardados. “Superado o governo Bolsonaro, o Brasil precisará recuperar o que foi destruído. Mas houve, antes disso, um avanço institucional de preservar o que foi feito, o que significa que para prosseguir e concluir a destruição, Bolsonaro precisaria ser reeleito”, explica. 

“Tortura não é crime político”

Werneck e Vannuchi chamam a atenção também para efeitos do rompimento de acordos internacionais com uma possível expulsão do Brasil das Cortes internacionais de direitos humanos. “Todos os mecanismos que garantiam o direito à memória, à verdade e proteção social foram desmantelados, enfraquecidos ou estão sendo geridos por administradores desinteressados, para dizer o mínimo”, diz Jurema Werneck. 

O ex-ministro avalia que até o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, os poderes Executivo e Legislativo adotaram medidas ou criaram leis para garantir direitos às famílias das vítimas da ditadura e punir os responsáveis. O problema, segundo ele, está também nas instâncias superiores do judiciário, que “constitucionalizaram” a Lei de Anistia. Todas as investigações realizadas até aqui, esbarraram, segundo ele, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), que anulam os processos e impedem a condenação de violadores, procedimento, segundo ele, que não resistirá por muito tempo.

 “Os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário vão obrigar o país a retroceder no entendimento aplicado até agora. Mais cedo ou mais tarde as cortes internacionais vão forçar o STF a reinterpretar os crimes da ditadura de acordo com o entendimento e recomendações aplicadas no mundo, senão o Brasil será expulso dessas cortes e se tornará um pária internacional, como é visto atualmente o governo do presidente Jair Bolsonaro em função dos crimes ambientais”, diz o ex-ministro. 

Paulo Vannuchi durante sessão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Vannuchi é um homem branco, calvo, ele veste um terno preto e usa óculos
“Tem que responsabilizar os violadores, mesmo que não se encontre mais nenhum deles vivo para colocar na cadeia”, afirma Vannuchi, sobre militares da ditadura

A ação penal em curso na Argentina para esclarecer o sequestro e sumiço do brasileiro Edmundo Péricles Camargo, militante comunista retirado de um avião em 1971 e depois sequestrado por tripulantes de um avião da FAB é, segundo o ex-ministro, bom parâmetro sobre a forma distinta com que os dois países tratam os crimes da ditadura. “Na Argentina, onde houve o engajamento do poder judiciário contra o terrorismo de estado. O caso Edmur mostra que estamos defasados. Argentina, Chile, Uruguai e mesmo no Paraguai, não aceitam mais a tortura como procedimento em nenhuma hipótese. Aqui ainda é necessário dizer que não se pode torturar, executar, degolar, cortar cabeças, como se fez no Araguaia, que repetiu a barbárie de Canudos”, afirma. Paulo Vannuchi acha que as mudanças vão se dar pela internalização de medidas de punição que já são aceitas como regras em outros países continente, como funcionou no caso Augusto Pinochet, ex-ditador do Chile, preso por ordem do juiz Baltasar Garzón ao pisar em Londres, em 1998.

“Tortura não é crime político e nem pode ser considerado crime conexo. Crime conexo é quando um ladrão de banco rouba um carro para fazer o assalto”, exemplifica Vannuchi. “Tem que responsabilizar os violadores, mesmo que não se encontre mais nenhum deles vivo para colocar na cadeia”, afirma, ressaltando que os brasileiros precisam conhecer amplamente o que houve no regime militar e reforçar a consciência democrática para que ditaduras não se repitam.

Escolas militares

Para o ex-ministro, uma das primeiras tarefas do governante que substituir Bolsonaro será mexer no currículo das escolas militares. “A herança da ditadura tem de ser combatida com reforma profunda no ensino militar. É necessário entrar na Agulhas Negras (Academia Militar de Agulhas Negras), que é a fábrica de Bolsonaros e de Villas Boas (referência ao ex-comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, autor da nota ameaçando o STF caso Lula fosse solto) e fazer uma mudança no ensino militar”, sustenta Vannuchi. 

Uma reportagem da Pública, publicada em agosto do ano passado e assinada pelo historiador Lucas Pedretti, revelou que os ideais Orvil, uma versão distorcida dos fatos ocorridos na ditadura criada pelos militares da repressão circulou muito tempo depois da redemocratização e ainda reverbera no governo Bolsonaro. 

Presas a um currículo ainda baseado em teorias de segurança nacional que miram o chamado “inimigo interno”, as gerações pós-ditadura, carregam o ranço do passado golpista e autoritário. O ex-ministro vê essas características inclusive no perfil do próprio presidente da República, um ex-capitão do Exército que além de elogiar um torturador, o falecido coronel Carlos Brilhante Ustra, disse que era necessário exterminar 30 mil opositores do regime militar. 

O presidente Jair Bolsonaro durante o desfile de 7 de Setembro, em Brasília.
Governo Bolsonaro é um “retrato de negligência” no trato de direitos humanos

“Se olhar direito, o Bolsonaro tem jeito de torturador. Só não foi porque, pela trajetória cronológica de sua carreira, não deu tempo”, cutuca Vannuchi, com a experiência de quem foi preso político e vê na falta de empatia do presidente com a tragédia da pandemia da Covid-19, que seria um reflexo psicológico da visão autoritária do presidente. “Não matou na ditadura, mas matou na pandemia. Ele poderia ter evitado muitas mortes com um mínimo de gestão eficiente do Ministério da Saúde”, afirma. 

O ex-ministro chama a atenção para o fato de o presidente assumir como referência personagens que estiveram à frente da linha dura do regime militar, onde se enfileiravam extremistas do aparelho repressivo que e, já no esgotamento do regime, foram responsáveis pela morte do jornalista Vladimir Herzog, do operário Manoel Fiel filho e pelos atentados que tentaram evitar a redemocratização. Tanto o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República quanto Ustra, torturador e autor do livro de cabeceira do presidente, segundo Vannuchi, foram homens de confiança do general Sylvio Frota, demitido do comando do Exército pelo então presidente Ernesto Geisel por tolerar os crimes da extrema direita militar.

Vannuchi vê uma hipertrofia de militares no aparelho estatal, o que impõe ao próximo governo a tarefa de racionalizar o emprego de integrantes das Forças Armadas. “Na formação do governo Lula, quando visitei o Palácio do Planalto acompanhado de Gushiken (Luiz Gushiken, ex-ministro falecido) e Gilberto Carvalho (ex-ministro chefe da Secretaria Geral da Presidência da República), o Eduardo Graeff (ex-secretário-geral no governo Fernando Henrique) me falou: nós tiramos muitos militares do governo. Vocês vão precisar tirar mais. Tiramos, mas eles voltaram com o golpe dado por Temer e com a formação do governo Bolsonaro. Hoje há uma hipertrofia de militares no governo. Eles estão também no TSE e no STF. O rearranjo no próximo governo deve começar pelas Forças Armadas”, disse o ex-ministro. Para ele, a nova ordem na relação entre poder civil e militares será não tolerar mais episódios como o que ele chamou de “golpe tabajara”, o desfile de tanques pela Esplanada dos Ministérios no 7 de setembro do ano passado, uma demonstração de força de um presidente que flerta o tempo todo com recaídas golpistas.

Gerações de militares pós-ditadura carregam o ranço do passado golpista e autoritário, de acordo com especialistas

A reforma no ensino militar, segundo o ex-ministro deve ser acompanhada de outras recomendações da CNV, como o reconhecimento e um pedido de perdão das Forças Armadas pela tortura e assassinatos praticados por agentes do regime em estabelecimentos militares. São dezenas de casos investigações fartamente documentados e nunca negados. Um desses agentes, Sebastião Rodrigues de Moura, conhecido por Major Curió, admitiu em depoimento à Justiça Federal, que é verdadeiro seu relato num livro sobre sua biografia, que na repressão à Guerrilha do Araguaia 41 dos 67 militantes desaparecidos foram sumariamente executados depois de feitos prisioneiros. Por se tratar de crimes contra a humanidade, segundo o ex-ministro, esses agentes não deveriam ser protegidos e nem contemplados pela Lei da Anistia. “Será bom para as Forças Armadas separar o joio do trigo”, sugere.

Vannuchi destaca que o governante que suceder o presidente Jair Bolsonaro, terá uma enorme tarefa de reconstrução das políticas de direitos humanos que, embora interrompidas, devem ser retomadas a partir dos estágios de evolução deixados pelos governos Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e pelas 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff. Além disso, a sociedade também terá de pressionar o judiciário. “A nova palavra de ordem terá de ser reinterpretação já”, prevê o ex-ministro.

Para ele, manifestações como as que ocorreram no Rio de Janeiro no último fim de semana, são sintomas de ansiedade por democracia. “O que houve no show do Lollapalooza, expressão da cultura, foi uma grande manifestação política contra Bolsonaro, uma fase de reencontro com a cidadania depois do isolamento imposto pela pandemia. Os manifestantes soltaram um grito que estava preso na garganta”, diz.

Na rabeira dos países que defendem os direitos humanos

Personificação retardada do regime militar, o governo Bolsonaro, não é por acaso, recebeu da Anistia Internacional no Informe 2021/2022, divulgado na terça-feira (30/03) uma das piores avaliações entre os mais de 154 países em que a ONG atua.

Embora violações tenham ocorrido também em outros períodos do regime civil, Werneck disse à Pública que em qualquer direção que se olhe sobre o que houve no ano passado, o governo Bolsonaro é um “retrato de negligência” no trato de direitos humanos: a fome voltou e atinge atualmente 20 milhões de pessoas; a gestão da pandemia foi uma tragédia, quando poderia, conforme estudos da ONG, ter evitado pelo menos 120 mil mortes com ações adequadas, mesmo antes da vacinação; aumentaram os assassinatos contra transexuais, com registros de 125 pessoas mortas, o que torna o Brasil o campeão absoluto de assassinatos de pessoas desse gênero, com quase o dobro do México, que está em segundo lugar com 65 casos; o eixo de assassinatos nos conflitos pela terra se deslocou para as comunidades indígenas, com 8 dos 26 assassinatos registrados.

“Houve também o aumento dos homicídios praticados por agentes do estado, de gente que usa arma em nosso nome e para nossa proteção. Eles mataram 6.416 pessoas, a maioria jovens negros de favelas e periferias. Nos Estados Unidos que, no mesmo período enfrentou o movimento “vidas importam”, a polícia matou 888, e já era considerado gravíssimo”, compara.

Jurema Werneck afirma que um dos maiores retrocessos foi na proteção à pobreza. “O Brasil já tinha aprendido a erradicar a fome, mas ela voltou. Em 2021 quase 20 milhões de pessoas passaram fome, com a grave ironia de que as comunidades tradicionais foram mais afetadas que a população em geral. Indígenas, quilombolas, ribeirinhos tiveram taxas de 12% de aumento na fome, enquanto na população pobre em geral cresceu 9%”, diz Werneck. Os conflitos pela terra na comparação com 2019/2020 aumentaram em 102%, segundo a diretora da Anistia, estimulados por um discurso oficial autorizativo às invasões, sobretudo em terras indígenas, que são protegidas pela Constituição.

“O que a gente levantou é que os conflitos são efeitos da negligência, com uma certa incitação das autoridades. Quando as autoridades enfraquecem os mecanismos de proteção da lei, verbalizam a iniciativa de “passar a boiada”, estimulando a grilagem de terras indígenas ou não titulam os quilombolas, é uma autorização para as invasões. É o retrato da negligência, porque é uma decisão de não fazer o que é obrigação das autoridades, uma violação explícita dos direitos dessas comunidades. O mundo olha e lamenta o que está acontecendo no Brasil”, afirma a diretora da Anistia Internacional.

Créditos de imagens

 Daniel Cima/CIDH
 Daniel Cima/CIDH
 Marcelo Camargo/Agência Brasil
 Valter Campanato/Agência Brasil

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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Wednesday, 30 March 2022

Os fantasmas de Arthur Lira

 

Os fantasmas de Arthur Lira

https://apublica.org/2022/03/os-fantasmas-de-arthur-lira/

Fonte: Agência Pública

Resumo:

Em três mandatos, deputado federal empregou 7 parentes de assessor acusado de operar esquema de “rachadinha” em Alagoas; indícios mostram que um deles seria “funcionário fantasma”

Por Alice Maciel

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), empregou ao longo de seus três mandatos na Casa, de 2011 a 2021, sete parentes de seu assessor parlamentar e amigo Djair Marcelino da Silva, conforme levantamento da Agência Pública. Djair é apontado como operador de um esquema de “rachadinhas” na Assembleia Legislativa de Alagoas, que teria sido liderado por Lira quando ele ainda era deputado estadual (2001-2007), de acordo com denúncia do Ministério Público Federal (MPF) de 2018, decorrente da Operação Taturana, deflagrada em 2007 pela Polícia Federal (PF). Além de Djair, atualmente apenas seu sobrinho, Luciano José Lessa de Oliveira, está lotado no gabinete do líder do Centrão como secretário parlamentar, mas a reportagem da Pública revela indícios de que ele dá expediente em outro local.

Filho da cunhada de Djair, Lessa é dono de uma gráfica em Maceió (AL), a Sete Comunicação Visual. A reportagem o flagrou cinco vezes no local em horário comercial. No primeiro contato, uma quarta-feira, 16 de fevereiro, às 10h50, o encontramos em sua gráfica pintando uma faixa e atendendo a um cliente. Voltamos no dia 22 de março, terça-feira, às 14 horas. Dessa vez, sem saber que éramos jornalistas, ele fez um orçamento de banner para festa infantil. 

Fachada da gráfica de Lessa, funcionário do gabinete de Arthur Lira
Lessa é um homem negro, com cabelos e olhos castanhos; ele veste uma regata preta, máscara branca e óculos retangulares; na imagem Lessa está usando um notebook
Lessa, na imagem, está lotado no gabinete de Arthur Lira desde 2011. À época, ele já tocava a Sete Comunicação

Ainda passamos em frente à sua loja nos três dias seguintes, quarta-feira às 15 horas, quinta-feira às 12 horas, sexta-feira às 13 horas, e a gráfica estava aberta ao público. Nos dias de funcionamento, Lessa coloca na calçada uma placa com seus contatos e a divulgação do seu trabalho: “banners, adesivos, placas e faixas”. O horário de atendimento divulgado nas redes sociais da Sete Comunicação é das 9 horas às 22h30.  

“Eu passo o dia todo fora, de vez em quando eu venho aqui na bodega [na gráfica] porque eu tenho três gatos, aí eu passo para colocar a comida dos gatos, boto a máquina para dar uma esquentada para não perder ela, porque eu não estou utilizando ela”, justificou Lessa, ao ser procurado pela Pública. Segundo vizinhos ouvidos pela reportagem, no entanto, “ele costuma passar o dia na gráfica”.

As regras da Câmara dos Deputados permitem o trabalho do assessor no estado de origem do deputado, mas sua atividade deve ser inerente ao exercício do mandato. De acordo com a Câmara, o secretário parlamentar está sujeito a uma jornada semanal de 40 horas e poderá ser autorizado a realizar atividade privada, desde que fora do período de trabalho — o que não se enquadraria no caso de Luciano Lessa.

Lessa: “Quase não frequento o escritório”

Arthur Lira possui um escritório em Maceió, mas Lessa afirmou que quase não o frequenta. De acordo com ele, sua responsabilidade no gabinete do deputado é “cuidar da comunicação visual”. “Desde a campanha de 2010 que eu fiquei encarregado de ficar fazendo as partes de comunicação visual dele, que é camisa, placa, faixa”, contou o servidor. Ele alega que seu trabalho é fazer a cotação de preço nas gráficas para a impressão do material produzido por agências de publicidade. 

“A minha função é fazer a ponte entre o que a agência de publicidade manda de layout e as gráficas, fazer cotação de preço, ficar brigando por desconto, e depois passo para o financeiro”, explicou. Por conta disso, justifica, ele passa mais tempo na rua e tem horário de trabalho flexível. “Meu horário é: ‘a hora que precisam de mim, eu tô. Todo dia eu vejo o que é pra ser feito, executo minha parte e fico livre o dia todo”, disse, acrescentando: “Não tem a necessidade de eu estar lá [no escritório] primeiro, porque lá eu fico ocioso, meu negócio é ficar correndo atrás de gráfica. Como eu não gosto de ficar resolvendo esses negócios via telefone, eu gosto de ir direto nos locais”. Lessa reforçou ainda, durante a conversa, que não executa nenhuma função para as redes sociais: “Meu negócio é papel, adesivo, tecido”.  

Com base em seu relato, a reportagem checou a prestação de contas do gabinete de Arthur Lira dos últimos quatro anos, e não foram localizados registros de gastos com material impresso nem com gráficas. O gasto dos deputados federais com  “divulgação de atividade parlamentar” está previsto na “Cota para o exercício da Atividade Parlamentar”, que é um valor mensal que eles recebem para manutenção do mandato. Fizemos um levantamento dos gastos de Lira com essa rubrica no portal da transparência da Câmara, de janeiro de 2019 a fevereiro de 2022. Nesse período, o presidente da Casa investiu apenas em propaganda nas redes sociais, blogs e sites de Alagoas. 

Luciano Lessa está lotado no gabinete de Arthur Lira desde o início do primeiro mandato do político na Câmara dos Deputados, em 7 de fevereiro de 2011. Nessa época, ele já tocava a Sete Comunicação havia um ano, conforme registro na Receita Federal. Atualmente, o servidor ganha um salário bruto de R$ 5.726,13 mais auxílio de R$ 982,29. Ele contou que trabalhou na campanha de Lira nas eleições de 2010, a convite do tio Djair, e que, posteriormente, foi convidado a integrar o quadro de funcionários do gabinete. Luciano disse, no entanto, que não vai a Brasília. “Eu lido aqui direto, com o pessoal daqui de Maceió”, afirmou.

O  caso lembra o da ex-funcionária de Jair Bolsonaro, Walderice Santos da Conceição, que ficou conhecida como Wal do Açaí. Lotada no gabinete de Bolsonaro quando ele era deputado federal, a servidora tinha uma loja de açaí em Angra dos Reis, conforme revelou a Folha de S.Paulo. O MPF denunciou o presidente por improbidade administrativa na semana passada por tê-la mantido como funcionária fantasma por 15 anos na Câmara (2003 a 2018). A investigação revelou que ela nunca esteve em Brasília, não exerceu nenhuma função relacionada ao cargo e ainda prestava serviços particulares para Bolsonaro. 

Jair Bolsonaro (à esquerda) é um homem branco na faixa dos 60 anos, ele veste camisa azul claro e gravata azul escuro; Já Arthur Lira (à direita) é um homem branco com cabelos grisalhos, olhos castanhos, ele veste terno preto com gravata azul
Caso lembra o do presidente Jair Bolsonaro e Wal do Açaí, apontada como funcionária fantasma

Djair, o Queiroz de Arthur Lira? 

Arthur Lira e Djair Silva se conheceram em 1989, quando o político promovia vaquejadas no parque Arthur Filho, no município de Pilar (AL) e Djair trabalhava na TV Gazeta de Alagoas. O empresário contratou Djair para cuidar dos eventos no parque e, ao longo do tempo, ele foi se transformando em um “faz-tudo” do político. “O Djair toma conta do escritório de Arthur Lira em Maceió. Pensão alimentícia de Arthur Lira, quem paga é Djair, ele pagava o colégio do filho do Arthur Lira quando o menino vivia em Maceió; cartão de saúde, quem renovava era ele, tudo! Até quando o pai tinha que comparecer no colégio, quem ia era o Djair”, revelou uma pessoa próxima a eles que prefere não se identificar. 

Djair é um homem pardo, com cabelos castanhos; ele usa óculos retangulares e veste camiseta azul
Na foto, Djair Marcelino da Silva. Arthur Lira empregou ao longo de seus mandatos sete parentes do assessor parlamentar

Em 11 de maio de 2020, Djair Silva foi nomeado secretário parlamentar no gabinete de Lira no Legislativo Federal, com salário de R$ 7.509,50 e auxílios no valor de R$ 982,29 e é “encarregado pela parte financeira”, segundo Luciano Lessa. 

“Eu fui chefe de gabinete do Arthur na Assembleia e hoje eu sou chefe de gabinete dele em Maceió. É uma questão de confiança”, afirmou Djair. A reportagem o encontrou numa manhã de sexta-feira, 25 de março, sozinho no escritório do deputado localizado na orla da capital alagoana. 

Ele foi chefe de gabinete de Arthur Lira de 2001 a 2010, quando o parlamentar ainda era deputado estadual, e teria sido peça-chave no esquema de rachadinhas na Assembleia Legislativa de Alagoas, de acordo com denúncia do MPF. Detalhes da investigação que indica o líder do Centrão como chefe do esquema foram revelados pelo jornal O Estado de S. Paulo e confirmados pela Pública

O processo, que corre em segredo de Justiça, tem um capítulo dedicado ao político. “Arthur Lira é ex-primeiro secretário da Mesa Diretora da ALE/AL e foi beneficiado com os esquemas de manipulação da folha de pagamento e descontos indevidos de cheques da ALE/AL, bem como na obtenção fraudulenta de empréstimos consignados”, diz um trecho da acusação, descrito no livro Os bens que os políticos fazem  histórias de quem enriqueceu durante o exercício dos mandatos, do jornalista Chico de Gois.   

A média de recursos desviados da rachadinha — quando funcionários são coagidos a devolver parte de seus salários — era de R$285 mil por mês (nos valores da época), de acordo com manuscritos encontrados na investigação. 

Fatos descobertos na operação renderam a Lira duas condenações na esfera cível por improbidade administrativa — em primeira instância, em 2012; em segunda instância, em 2016. O deputado recorreu, mas ainda aguarda as decisões. Na esfera criminal, ele foi absolvido depois que a investigação foi anulada em juízo sob a justificativa de que deveria ter sido realizada pela Justiça Estadual, e não pela Federal. O Ministério Público de Alagoas tenta reverter a sentença. 

A ação, que começou com o MPF, foi parar nas mãos dos promotores do estado em 2018, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que limitou o foro privilegiado a crimes durante e em função do cargo.

Num paralelo entre o caso envolvendo a família Bolsonaro e o do deputado Arthur Lira, a atuação de Djair Marcelino da Silva guardaria semelhança com a de Fabrício Queiroz. Isso porque os investigadores identificaram que parte dos recursos que teriam sido desviados de 2001 a 2007 saía do salário de funcionários fantasmas e seria Djair, então chefe de gabinete de Lira, supostamente o responsável por retirar o dinheiro na boca do caixa. Ele teria descontado “aproximadamente dez cheques nominais” de servidores comissionados contratados pelo deputado, conforme depoimento de um gerente do Banco Bradesco em 2007, que consta na ação. 

Ao ser questionado sobre as acusações, Djair afirmou: “Já é matéria vencida”. “Eu fui envolvido nessa questão lá atrás, mas não ficou nada comprovado. Se tivesse, eu teria dito”, acrescentou.

Imagem mostra sala da Assembleia Legislativa de Alagoas, com deputados sentados em mesas, de costas para a câmera
Djair é apontado como operador de um esquema de “rachadinhas” na Assembleia de Alagoas

A PF identificou que parte dos recursos desviados foi depositada na sua conta e da então esposa de Lira, Jullyene Lins. Ela confessou no processo ter sido funcionária fantasma do ex-marido e de ser proprietária da conta que recebia o dinheiro ilícito. Na terça-feira passada (22/3), Jullyene postou um vídeo nas redes sociais com a promessa de revelar informações sobre o ex-marido. “São várias coisas que a partir de hoje, eu vou começar a abrir para vocês, para vocês terem noção, porque eu cansei de ficar calada”, diz ela em um trecho da gravação.   

Entre os servidores que trabalhavam para Arthur Lira na Assembleia de Alagoas, também estão os filhos de Djair, Djair Afonso Lessa Marcelino, que chegou a ser investigado pelo MPF, e Davi Afonso Lessa Marcelino, e o sobrinho, Anderson José Silva do Nascimento — os dois últimos posteriormente contratados por Lira na Câmara dos Deputados. 

Procurado, Djair Afonso afirmou que trabalhava na parte de marketing do mandato de Lira na Assembleia. Ele disse desconhecer qualquer esquema de “rachadinhas” envolvendo seu pai e o político e garantiu que recebia o salário integral. A reportagem tentou contato com Davi e Anderson por meio de e-mail e das redes sociais, mas não obteve retorno. 

Ao todo, entre 2011 e 2021, passaram pelo gabinete de Arthur Lira na Câmara sete parentes do amigo Djair Silva: dois filhos, três sobrinhos, a ex-mulher e uma prima. 

“Todo político tem que ter as pessoas que ele possa confiar”, justificou Djair. Ele afirmou que cada um dos seus parentes “acompanhava determinada comunidade, ou determinado município”. “Que a gente possa ter gente de confiança, que a gente possa mandar para determinadas bases e saber que vai ser cumprida a tarefa, a necessidade daquela comunidade, daquele município”, defendeu. 

Ao ser questionado se existe a prática da “rachadinha” no gabinete do presidente da Câmara, ele respondeu: “Pelo que eu conheço do Arthur, há muito tempo, ele não permitiria esse tipo de coisa, tá certo? Nem eu permitiria, quanto a minha condição de católico, religioso, que é uma coisa tão espúria”.

Laços de família  

Quatro anos depois de deflagrada a Operação Taturana, Arthur Lira assumiu seu primeiro mandato como deputado federal e, no mês seguinte ao da posse, nomeou para seu gabinete como secretário parlamentar dois filhos de Djair. Davi Marcelino ocupou a vaga de 9 de fevereiro de 2011 a abril de 2012. À época, ele já era sócio do irmão Djair Afonso na agência de publicidade Affesta, registrada na Receita Federal em 2009.

Fachada do prédio onde funciona o escritório de Arthur Lira; o prédio tem vidraças na cor azul
No escritório de Lira em Maceió, é Djair quem toma conta

Ainda calouro na Casa, Lira contratou outro filho do amigo, André Marcelino Loureiro Viana Silva. Ele é fruto do relacionamento de Djair com Rose Marie Loureiro Viana, que também trabalhou como secretária parlamentar do deputado no Legislativo Federal, de 12 de maio de 2011 a 6 de maio de 2020.

André ficou na vaga por pouco mais de dois anos — de 2 de fevereiro de 2011 a 3 de setembro de 2013Em março de 2016, ele assumiu um cargo comissionado na Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), onde permanece até hoje. A empresa pública é vinculada ao Ministério de Desenvolvimento Regional e teria influência política de Arthur Lira. 

Além do filho de seu assessor, estão na estatal Carlos Jorge Ferreira Cavalcante e Gláucia Cavalcante, irmão e esposa do braço-direito e chefe de gabinete de Lira em Brasília, Luciano Cavalcante. Gláucia também foi servidora de Lira na Câmara. 

Estivemos no dia 16 de fevereiro no apartamento onde André mora com a mãe, em Maceió. Ele estava em casa, mas não quis responder aos questionamentos da Pública e disse que sua mãe também não falaria com a reportagem. 

O deputado Arthur Lira empregou também em seu gabinete o filho da irmã de Djair, Anderson José Silva do Nascimento. Ele ficou de junho de 2011 a fevereiro de 2013. Um mês depois, ele “foi substituído por seu irmão”, conforme admitiu Djair. Djacy Afonso da Silva Neto assumiu a vaga no dia primeiro de março de 2013, na qual permaneceu até 27 de maio de 2020. Ele trabalhou com sua prima Patrícia Marcelino da Silva, que entrou em abril de 2014 no gabinete de Lira. Ela, no entanto, saiu antes, em 2017

Entramos em contato com Djacy por telefone e pelas redes sociais, mas não obtivemos resposta. Também tentamos contato com Patrícia, sem retorno. 

A reportagem identificou ainda no gabinete de Arthur Lira outras quatro pessoas com laços familiares entre si. Maria Cicera da Costa Albuquerque, lotada na Câmara dos Deputados de fevereiro de 2011 a abril de 2012, é mãe de Mirela da Costa Albuquerque, que foi secretária parlamentar do deputado de fevereiro de 2011 a julho de 2012. Elas são de Quipapá, Pernambuco, onde o pai do político possui uma fazenda, mas Mirela informa nas suas redes sociais que mora em Maceió. 

Ela afirmou à reportagem que sua função no gabinete era a de atender as pessoas que chegavam do interior. “E passava para o seu Djair as solicitações das pessoas”, contou. Mirela disse ainda que recebia o salário integral. Procuramos sua mãe, Maria Cicera, na segunda-feira (28/03), mas ela desligou o telefone ao ser informada que se tratava de uma reportagem e não retornou às mensagens de whatsapp. 

Outro caso parecido é o de Itamar Benedito Missano Tavares e Igor Barros de Souza Missano, que são pai e filho, respectivamente. Itamar entrou no gabinete de Arthur Lira em 16 de maio de 2014, onde permanece até hoje. Já Igor ficou apenas no primeiro mandato do deputado, de fevereiro de 2011 a maio de 2014. Tentamos contato com os dois por telefone e e-mail, mas não obtivemos resposta. 

Outro lado 

Arthur Lira informou por meio de nota que Djair trabalha no gabinete local do deputado em Maceió prestando funções relacionadas ao cargo que ocupa. Já o servidor Luciano Lessa, exerce o trabalho de base junto à comunidade, com acompanhamento e monitoramento da mídia local e possui uma empresa, sem qualquer vínculo com sua atividade no gabinete. Em relação aos outros parentes de Djair, o deputado afirmou que “alguns foram servidores, em cargo de confiança, em épocas distintas e já totalmente desligados”. “Os processos referentes à operação Taturana foram analisados pela Justiça de Alagoas. O deputado foi absolvido”, acrescentou.

Créditos de imagens

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 Reprodução/Redes Sociais
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 ASCOM Assembleia de Alagoas
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*Colaborou: Aliny Gama

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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