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Saturday, 7 March 2015

Documentário Água sagrada - mineração em Wirikuta

adital
http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=84268


Documentário Água sagrada - mineração em Wirikuta

Adital
Durante cinco dias, o "deserto" de Wirikuta, no Estado de San Luis Potosí, México, foi o lar de uma equipe de colaboradores/as de meios livres do país para documentar aqueles que seguem em pé de luta pela defensa do seu território. Apesar dos recentes triunfos que tem obtido o povo Wirárika na defesa dos seus locais sagrados, na zona ainda persistem outros projetos mineradores, que ameaçam o sustento das comunidades que realmente habitam esses territórios. Seus argumentos e alegações para defender suas terras ficarão registrados nesse trabalho colaborativo e experimental.
Wirikuta é um dos sítios sagrados naturais mais importantes do povo indígena Wixarika (huichol), e do mundo. O povo Wixarika (huichol) habita em Jalisco, Nayarit e Durango, e é reconhecido por ter conservado sua identidade espiritual e continuar praticando sua tradição cultural e religiosa há mais de milhares de anos. Wirikuta é o território para onde peregrinam as distintas comunidades do povo Wixarika, recriando o percurso que fizeram seus antepassados espirituais. Nesse deserto brota o peyote ou o jícuri, cactos que os wixaritari (huicholes) ingerem ritualmente para receberem o "dom de ver”.
O território sagrado de Wirikuta foi declarado Reserva Ecológica Natural e Cultural, com uma superfície de mais de 140.000 hectares. Abarca os municípios de Catorce, Charcas, Matehuala, Villa de Guadalupe, Villa de La Paz e Villa de Ramos. Wirikuta foi incorporada, em 1988, pela Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] à Rede Mundial de Sítios Sagrados Naturais.
Wirikuta possui um ecossistema único no mundo. Faz parte de uma porção do deserto chihuahuense, onde se concentra a maior biodiversidade e riqueza de cactáceas por metro quadrado do planeta. É muito mais do que um deserto: é um jardim. A maior parte das cactáceas de Wirikuta figura na Norma Oficial Mexicana de Plantas Ameaçadas e em Perigo de Extinção. Uma grande proporção de sua flora e fauna é endêmica, ou seja, que nasce somente lá.

¿O QUE ESTÁ ACONTECENDO EM WIRIKUTA?

Nesse território sagrado, o governo mexicano entregou pelo menos 22 concessões mineradoras à empresa canadense First Majestic Silver Corp, na área de Real de Catorce, através da empresa mexicana Real Bonanza SA de CV. 70% dos 6 mil 326.58 hectares da superfície concedida está dentro da Reserva de Wirikuta.
Recentemente, em dezembro de 2011, acabou de ser anunciado o lançamento do Projeto Universo, um megaprojeto minerador da empresa canadense Revolution Resources. Esse projeto torna os 6 mil 326 hectares da First Majestic como algo insignificante. O Projeto Universo pretende explorar recursos minerais em 59.678 hectares dentro da Área Natural Protegida de Wirikuta, o que representa nada menos do que 42,56% da superfície total de Wirikuta.
As grandes quantidades de água utilizadas pela megamineração provocariam o dessecamento de bacias hídricas que, de acordo com informes da Comissão Nacional da Água, se encontram já sobre-exploradas e têm muito pouca capacidade de recuperação nessa região. Além disso, os mananciais sagrados onde o povo wixarika coleta suas águas benditas correm risco de serem contaminados com cianureto, xântio e metais pesados.
Existem outras concessões mineradoras que batem em Wirikuta e que se encontram na chamada zona de influência da Reserva. Ademais há uma quarta ameaça: empresas tomateiras agroindustriais estão desmontando a zero vários prédios localizados dentro da Reserva, sem terem apresentado nenhum estudo de impacto ambiental. Essas mesmas empresas são responsáveis pela seca dos últimos anos, já que bombardeiam as nuvens com químicos que impedem a chuva, tão necessária para os camponeses que dependem dela; situação que agravou a pobreza e a migração na zona. Para os camponeses de Wirikuta, esta tem sido a pior seca em 50 anos.
Ficha técnica:

Direção: esse documental foi realizado de maneira colaborativa entre diversos meios livres:Koman Ilel (Mirada Colectiva)Naranjas de HiroshimaLa Sandía DigitalSubversiones Agencia Autónoma de Comunicaciónemergenciamx.orgHijos de la Tierra e Caravana Climática por América Latina.
País de produção: México
Ano: 2015
Duração: 28 min
Assista ao documentário em espanhol:

Monday, 21 October 2013

A resistência à felicidade substitutiva e o futuro da Igreja

ihu
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/524838-a-resistencia-a-felicidade-substitutiva-e-o-futuro-da-igreja-entrevista-com-zygmunt-bauman

A resistência à felicidade substitutiva e o futuro da Igreja. Entrevista com Zygmunt Bauman

Por reconhecimento geral, o sociólogo Zygmunt Bauman é um dos mais renomados intérpretes da condição humana da época atual. Nascido de pais judeus em 1925 em Poznan, na Polônia (embora resida há muitos anos na Inglaterra), Bauman cunhou a feliz imagem da "modernidade líquida" para indicar uma situação de incerteza difusa, em que parece desaparecer qualquer ponto estável de referência.
A reportagem é de Giulio Brotti, publicada no jornal L'Osservatore Romano, 20-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Depois de muitos anos, não parece ter se cumprido a profecia positivista pela qual a dimensão religiosa iria declinar fatalmente, com o progresso da modernidade: na América Latina, por exemplo, o pentecostalismo e o protestantismo evangélico têm um grande sucesso. Mas, quanto ao hemisfério Norte do planeta e à Europa em particular, que traços estão assumindo a fé e a espiritualidade nesta primeira parte do século XXI? A quais mudanças elas poderiam ir ao encontro no futuro próximo?
O meu colega Ulrich Beck, há alguns anos, publicou um livro intitulado Der eigene Gott (em edição italiana, Il Dio personale. La nascita della religiosità secolare [O Deus pessoal. O nascimento da religiosidade secular], Ed. Laterza). O argumento desse livro é o retorno da espiritualidade, ou talvez fosse mais correto dizer: do desejo de espiritualidade na sociedade contemporânea. Falando de um desejo, de um anseio, entende-se que ele se orienta a uma certa representação da espiritualidade, concebida como algo que poderia conferir um sentido pleno às nossas vidas, preenchendo-as.
Evidentemente, constata-se que os prazeres materiais ("da carne", se diria tempos atrás) não bastam: é preciso um contato com algo que transcenda as nossas ocupações e preocupações cotidianas. No entanto, Beck defende – com razão, acredito eu – que esse retorno à cena da espiritualidade não corresponde necessariamente a uma adesão às instituições e aos códigos religiosos tradicionais. Ao contrário, a tendência que prevalece hoje não encontra como interlocutores naturais as Igrejas e, talvez, ao contrário do que você sugeria, nem mesmo as inúmeras seitas que confluem no vasto leito do pentecostalismo. Os gostos da nova espiritualidade não propendem pelos dogmas, pelas regras disciplinares compartilhadas: justamente para sublinhar essa novidade, Beck cunhou a fórmula do "Deus pessoal".
Também poderíamos falar de uma religião à la carte: sobretudo os jovens operam uma seleção entre diversas fontes, às vezes decididamente exóticas, em outros casos escavando no interior da tradição católica ou, em menor medida, da anglicana e protestante. Prevalece, contudo, a atitude de hibridizar elementos diferentes, segundo as necessidades particulares e a sensibilidades dos indivíduos: nessa base, é muito difícil que se constituam grupos organizados, comunidades de fé, propriamente ditas.
Trata-se, em essência, de uma religião "psicológica", destinada a tranquilizar e a consolar o sujeito humano?
É uma reação à instabilidade que caracteriza a vida na modernidade "líquida": em uma época de incessantes e repentinas mudanças, busca-se uma faixa de terra para se poder plantar os pés firmemente. Um dos aspectos mais inquietantes do nosso tempo é que não se conseguem prever as consequências a médio prazo das decisões pessoais: são numerosos demais os fatores que interferem nos nossos projetos. Pensemos no que aconteceu há poucos dias nos Estados Unidos, onde, por causa do déficit do orçamento, centenas de milhares de funcionários públicos foram deixados em casa sem salário. E essa situação também pode ter pesadas recaídas na economia mundial inteira, em perspectiva. Busca-se, portanto, um ponto de ancoragem existencial, e essa exigência desemboca, em certos casos, em um neofundamentalismo religioso, mas também pode se expressar de forma diferente: ainda nestes dias, tomamos conhecimento pela imprensa que, na França, o Front National de Marine Le Pen é virtualmente o primeiro partido, segundo as pesquisas que lhe credenciam o favor de 24% dos eleitores, na perspectiva das eleições europeias.
A busca frenética por certezas também pode assumir um aspecto político?
Certamente, e pode até se traduzir na situação sui generis da política italiana, em que os partidos estão desesperadamente em busca de alguém para atacar e para desacreditar, não conseguindo se definir de modo positivo, mediante um programa próprio. O problema de uma incerteza difusa, no entanto, certamente não se deixa reduzir a uma questão interna à Itália: a perda de confiança é global, não se refere apenas a determinados partidos ou líderes, mas sim ao sistema da democracia representativa. O mundo inteiro entrou em uma fase de interregno, para usar uma expressão deAntonio Gramsci: a humanidade tenciona buscar desesperadamente dentro ou fora de si pontos de apoio para se manter de pé, ou freios para parar o fluxo indistinto que, caso contrário, ameaçaria derrubá-la.
Em nível coletivo, essa necessidade também se encontra no movimento dos Indignados, na Espanha, no Occupy Wall Street, em Nova York, ou nas reuniões na Praça Tahrir, no Cairo. Avança-se às apalpadelas, no escuro, em busca de modos para poder agir eficazmente: as instituições que tradicionalmente se faziam intérpretes das necessidades e das preocupações dos indivíduos, traduzindo-os em propostas políticas, não parecem mais à altura do desafio. Quanto tempo durará essa passagem e aonde chegaremos? Eu não acredito nos milagres em sentido tradicional, mas acredito nos milagres da realidade, por assim dizer: na abertura de novas estradas onde o percurso parecia bloqueado, na capacidade inventiva dos seres humanos. Nós, porém, por definição, não somos capazes de prever desde agora como essa capacidade poderá se expressar no futuro.
Atualmente, não parece justamente ter se atrofiado a capacidade de pensar sobre o futuro? A expectativa dos tempos messiânicos no judaísmo, a das coisas últimas no cristianismo sempre foram um elemento essencial dessas tradições religiosas. Agora, porém, tendemos a avançar à vista, como se o nosso horizonte temporal se reduzisse ao próximo fim de semana. A espiritualidade pode abrir mão da dimensão do futuro? Ela poderá sobreviver em uma condição de presente dilatado?
Não é fácil responder à pergunta que você me faz. Eu me limitaria a salientar que, nos nossos dias, a indústria do consumo propõe substitutos para a espiritualidade tradicional, fruíveis on the spot, no momento presente. Muitos produtores não se limitam a pôr no mercado bens materiais, mas os cercam com uma aura religiosa. As agências de viagens e as companhias aéreas, por exemplo, publicizam os destinos turísticos com a promessa de experiências imortais, de metas paradisíacas: os seus slogans muitas vezes são variações sobre o tema da imortalidade agora, a ser obtida imediatamente, e não depois que estivermos mortos. Visitando uma certa localidade, hospedando-se em um certo resort, assistindo a um show de rock, pode-se logo experimentar o que você pode imediatamente experimentar o que as pessoas religiosas esperam poder conseguir em outra vida. O modelo é o do café solúvel, que pode ser saboreado em poucos segundos, depois que o pó se dissolveu na água quente. As agências de marketing capitalizam o desejo de uma fuga da incerteza e da desconfiança difusas na modernidade líquida: as mercadorias atraem os possíveis compradores, prometendo-lhes uma redenção da insensatez normal da cotidianidade.
Como o senhor avalia a "novidade" do pontificado do Papa Bergoglio? Há oito meses, os seus gestos e palavras parecem ter induzido uma sensação de feliz desorientação em muitos observadores e comentaristas, crentes e não crentes. Pensemos, por exemplo, na insistência do papa sobre a necessidade de que a Igreja seja pobre, e na responsabilidade do Ocidente para com as populações do Sul do planeta.
Ah, eu estou encantado com o que Francisco [Bauman pronuncia o nome em italiano, sorrindo] está fazendo: acredito que o seu pontificado constitui uma oportunidade, não só para a Igreja Católica, mas para a humanidade inteira. O fato de o líder de uma grande confissão religiosa chamar a atenção do Norte do mundo sobre o destino dos mais miseráveis já é de enorme importância. Mas eu também fui ler o que ele afirmava em um texto seu de 1991, Corrupción y pecado(publicado na Itália pela Editrice Missionaria Italiana com o título Guarire dalla corruzione, Bolonha, 2013, 64 páginas). Nessas páginas, retornando à parábola evangélica do publicano pecador e do fariseu irrepreensível na implementação das obras da lei, ele sublinha como o relato depõe em favor do primeiro, do coletor de impostos.
Nesse livrinho, há algumas passagens muito bonitas sobre a maior gravidade da corrupção com relação ao pecado: "Poderíamos dizer – afirma Bergoglio, por exemplo – que o pecado é perdoado; a corrupção não pode ser perdoada. Simplesmente pelo fato de que, na raiz de qualquer atitude corrupta, há um cansaço da transcendência. Diante do Deus que não se cansa de perdoar, o corrupto se ergue como autossuficiente na expressão da sua salvação: cansa-se de pedir perdão".
A rejeição do legalismo e a capacidade de Jorge Mario Bergoglio de tocar os corações das pessoas lembram a atitude semelhante de João XXIII. O atual papa é intrépido, eu diria, no seu modo de proceder: eu penso nos gestos que ele fez em Lampedusa, nos discursos dedicados aos "fora da casta" do mundo globalizado. Para voltar ao tema do qual havíamos começado, poderíamos afirmar que Bergoglio sabe falar à espiritualidade típica do nosso tempo: os seguidores do "Deus pessoal", com efeito, não estão muito interessados nas prescrições morais emitidas pelos representantes das instituições religiosas, mas desejam reencontrar um sentido na fragmentariedade das suas existências individuais. Ainda estão à espera de um "evangelho", na acepção original do termo – de uma boa notícia.
Os gestos e as palavras do Papa Francisco não poderiam contribuir para "recolocar em ação" justamente a religiosidade individualista do nosso tempo? Não poderiam oferecer-lhe uma perspectiva, impedindo que ela permaneça em uma espécie de limbo, sem relações com a realidade concreta?
É uma hipótese sugestiva a que você prospecta. Pessoalmente, permaneço à espera – com muita esperança e ansiedade, eu diria – dos futuros desenvolvimentos deste pontificado. Também fiquei impressionado com a ênfase queBergoglio põe na prática do diálogo: um diálogo efetivo, que não deve ser conduzido escolhendo como interlocutores aqueles que, mais ou menos, pensam como você, mas se torna interessante quando você se confronta com pontos de vista realmente diferentes do seu. Nesse caso, realmente pode acontecer que os dialogantes sejam induzidos a modificar as próprias ideias com relação às posições iniciais. Nós temos uma urgente necessidade desse tipo de debate, porque somos chamados a gerir problemas de porte imenso, para os quais não dispomos de soluções já prontas: pensemos nas questões relativas ao fosso entre os ricos e uma considerável parte da população mundial, que ainda vive na miséria; ou na necessidade de frear a exploração indiscriminada dos recursos do planeta, de encontrar uma alternativa para um modelo de desenvolvimento – a expressão já soa irônica – que é claramente insustentável.
Todos esses problemas não param nas fronteiras nacionais: não dizem respeito aos italianos, em vez dos poloneses ou dos chineses, mas a humanidade no seu conjunto. E, de novo, parecem exigir não soluções temporárias, mas sim uma mudança radical do nosso modo de viver. A segunda parte do século passado, no campo econômico, foi dominada por dois pressupostos aparentemente indiscutíveis, que influenciaram profundamente os comportamentos individuais e coletivos dos seres humanos. O primeira foi que o Produto Interno Bruto de um país era a panaceia para todos os problemas sociais: aumentando o PIB, estes seriam automaticamente resolvidos; se, ao invés, o seu crescimento se bloqueasse ou – Deus me livre! – diminuísse, os equilíbrios sociais entrariam em crise. Em suma, o lema era: para enfrentar um problema coletivo, incrementar o PIB (e, portanto, também o consumo, porque o PIB ainda é medido sobre a quantidade de dinheiro que passa de mão em mão).
Qual era o segundo assunto?
Que a busca da felicidade andava de mãos dadas com o aumento do consumo: os lugares naturais de satisfação pessoal eram as lojas, em vez das relações sociais ou das atividades com as quais cada um podia ser útil aos seus semelhantes, cooperando com eles. Essas duas convicções produziram, de fato, uma grande quantidade de miséria material e espiritual, além de atacar gravemente os recursos naturais do planeta inteiro: de um lado, temos vivido acima dos nossos meios; de outro, descobrimos dolorosamente que a felicidade não pode ser comprada. Portanto, a todos nós hoje se pede que mudemos radicalmente a ordem das nossas vidas. Para expressar essa mesma ideia, o Papa Bergoglioprovavelmente usaria um antigo termo da tradição cristã: conversão.

Monday, 5 August 2013

O discurso da servidão voluntária

carta maior
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22465


O discurso da servidão voluntária

O darwinismo social de nosso capitalismo não sentencia que aquilo que sobrevive e sobrepuja é a única força possível – e válida? Sendo assim, por que as vítimas deveriam se identificar com as vítimas? Daniel Balint, protagonista de Tolerância Zero (2001), reproduz o discurso da servidão voluntária, “contanto que eu possa escarrar o meu ódio contra o outro que é tão impotente quanto eu mesmo”. Por Flávio Ricardo Vassoler

Conheçam Daniel Balint, protagonista do filme Tolerância Zero (2001), direção de Henry Bean. Um judeu renegado. Um jovem. Quando ainda estava na escola, Daniel teve uma áspera discussão com seu professor de Teologia. Estava em jogo a natureza da fé e do poder. A identidade de Deus. O professor discutia a passagem bíblica em que Deus ordena a Abraão que lhe ofereça seu filho Isaac em holocausto. Os demais alunos acatam a explicação (chancelada) do professor. “Deus queria testar Abraão para saber se, de fato, seu coração O amava sobre todas as coisas”. Mas Daniel não aceita o sermão repleto de contradições. 

− Ainda que Deus, no derradeiro momento, tenha impedido o pai de imolar o próprio filho; ainda que um cordeiro tenha sido posteriormente oferecido em holocausto, tudo isso demonstra que o Pai está mais preocupado com o temor que impinge em seus filhos do que com a fé e o amor. 

Escandalizado, o professor começa a vociferar e ameaça expulsar Daniel da sala. Mas o intelecto indômito do jovem quer levar a iconoclastia às últimas consequências:

− É isso mesmo, Deus só quer que tenhamos medo! E que importa que Abraão, ao fim e ao cabo, não matou Isaac? Deus lançou tal desafio, e no momento em que Abraão levantou o punhal, seu coração se fez impuro. Como Isaac poderia esquecer tudo aquilo? Poderia o filho perdoar algum dia ao próprio pai? Poderia o pai perdoar a si mesmo? 

Daniel parece ressoar o abandono que outro judeu, Jesus Cristo, exalou em seus últimos momentos de crucificação: 

− Pai, por que me abandonaste? 

Daniel abandonou a escola que não sabia lidar com suas questões e angústias. Em tenra idade descobriu que a fé e o fetichismo são tão contíguos quanto o corpo e a sombra. Os espectadores só não esperávamos tamanha conversão passados alguns anos. No início de sua vida adulta, Daniel Balint começa a militar em movimentos de extrema direita. A cabeça raspada, os coturnos, os suspensórios e a suástica sob a jaqueta surrada não deixam dúvidas sobre sua nova orientação neonazista. Daniel, leitor de Mein Kampf (Minha Luta), discípulo de Adolf Schicklgruber, também conhecido como Adolf Hitler. 

O redivivo episódio bíblico envolvendo Abraão e Isaac parece iluminar uma face obscura de Deus que a trágica conversão de Daniel pretende reproduzir. Como entender que um judeu possa envergar a suástica? Como entender que a vítima queira ser arregimentada pelo carrasco? “Ora”, diria Daniel, “Deus não deu cabo de seus filhos amados? Se assim é, apenas a cerca de arame farpado de Auschwitz, Dachau e Treblinka separa o amor do ódio, a vingança do perdão”. Nossa sociedade não cultua os vencedores? O darwinismo social de nosso capitalismo não sentencia que aquilo que sobrevive e sobrepuja é a única força possível – e válida? Sendo assim, por que as vítimas deveriam se identificar com as vítimas? (Ora, ora: o cliente nem sempre tem razão.) Daniel Balint reproduz o discurso da servidão voluntária, “contanto que eu possa escarrar o meu ódio contra o outro que é tão impotente quanto eu mesmo”. 

Daniel e seus comparsas brigam sem mais. Negros, latinos e judeus. Num restaurante kosher, cujos alimentos obedecem à lei judaica, os neonazis, como Eva, querem comer o fruto proibido. Só que, ali, o proprietário judeu, munido de um taco de baseball, inicia uma briga que vai parar diante de um juiz. Os neonazis são sentenciados pelo dedo em riste da democracia: 

− Vocês podem escolher entre passar 30 dias na cadeia ou ouvir histórias de sobreviventes de Auschwitz. E então, o que vai ser? 

Pela primeira vez em suas vidas, os neonazis precisam se deparar com os efeitos concretos da barbárie fascista. Quando gangues e facções se enfrentam nas ruas e avenidas das megalópoles, o outro não passa de uma abstração. O objeto distante do ódio. Um alvo cada vez mais próximo. Agora, a truculência deve lidar com o sofrimento encarnado, deve escutar histórias daqueles que não conseguem se libertar do algoz da memória. 

A medida judicial me parece fundamental. Há um fosso enorme entre fazer odes fictícias à opressão e assistir à morte de um ser humano por chutes e pauladas. Na verdade, quando uma gangue lincha uma vítima estirada, toda a humanidade da vítima – e dos carrascos – já se evadiu. Assim, os neonazis ouvirão relatos de estupros e afogamentos e torturas e assassínios de pessoas que há muito se sentem culpadas por terem sobrevivido. Já não será possível tratar o judeu como o espólio estatístico da câmera de gás. Ele e ela estão ali, poderiam ser nossos vizinhos, nossos amigos. 

A medida judicial que aproxima vítimas e carrascos deveria se estender aos grandes mandatários que, de seus gabinetes, não ouvem os gritos e súplicas dos condenados da terra. Se o presidente Harry Truman conhecesse os homens e mulheres de Hiroshima e Nagasaki, talvez o bombardeiro Enola Gay não houvesse legado ao Japão sombras fosforescentes como escombros de guerra. As crianças de Hanói não tomariam banho com napalm pela manhã se John Fitzgerald Kennedy e Richard Nixon exalassem o odor dos corpos vietnamitas em decomposição – corpos desfigurados pelo agente laranja despejado pelos mesmos helicópteros hipócritas que, décadas depois, lançariam caixas de alimentos para amortizar a culpa do Ocidente. 

Quando Balint ouve a história de um velho judeu que viu o próprio filho – um bebê! – ser arrancado de seus braços para morrer espetado pela baioneta de um soldado da temível SS, o jovem que outrora questionara Deus por conta de Sua brutalidade para com Abraão e Isaac, quase às lágrimas, só faz gritar:

− Mas o que foi que você fez para conter o soldado, velho? Você ficou assistindo à morte de seu próprio filho? Por que não reagiu? Por que não o matou? Por que você não trucidou aquele assassino? 

Daniel cospe as palavras com ódio, o velho pai chora copiosamente, até que uma sobrevivente logo ao lado questiona com todo o afinco o heroísmo de estufa do jovem Daniel. 

− Mas, ora, como ousa?! Você não estava ali, como pode julgá-lo? Seu tolo, seu estúpido! Jovens mais fortes e mais valentes do que você quedaram inertes em situações similares. Você, aqui, em seu país rico, você acha que pode bancar o herói!? Só alguém dentro de uma situação pode julgá-la. E esse alguém será sempre o último a poder julgá-la. O último! O sobrevivente. 

Por um momento, Daniel se cala. É preciso lutar contra a piedade, “eu não quero chorar, eu não posso chorar!” Súbito, Daniel levanta a cabeça e dispara: 

− Mate o seu inimigo! Resista! Eis o que é preciso fazer. 

Daniel Balint, neonazista judeu, acaba cometendo suicídio. O jovem explode uma sinagoga a que fora para rezar. “Mate o seu inimigo”. Mate a si mesmo. “Ora”, diria Daniel, “Deus não deu cabo de seus filhos amados? Se assim é, apenas a cerca de arame farpado de Auschwitz, Dachau e Treblinka separa o amor do ódio, a vingança do perdão”. Nossa sociedade não cultua os vencedores? O darwinismo social de nosso capitalismo não sentencia que aquilo que sobrevive e sobrepuja é a única força possível – e válida? Sendo assim, por que as vítimas deveriam se identificar com as vítimas? (Ora, ora: o cliente nem sempre tem razão.) Daniel Balint reproduz o discurso da servidão voluntária, “contanto que eu possa escarrar o meu ódio contra o outro que é tão impotente quanto eu mesmo”. 

*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). A partir do dia 02 de setembro, passará a apresentar o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – segundas-feiras, às 19h, na TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

Friday, 22 February 2013

Expedição inédita sai de Manaus e sobe o Rio Negro para mapear lugares sagrados

fórum da amazonia sustentável
http://www.forumamazoniasustentavel.org.br/?p=4097

Expedição inédita sai de Manaus e sobe o Rio Negro para mapear lugares sagrados

Um grupo de índios do Alto Rio Negro chega à cidade, onde se encontra com parceiros de organizações governamentais, não governamentais e universidades para dar início a uma experiência inédita: percorrer o curso do Rio Negro entre Manaus e São Gabriel da Cachoeira, cidade localizada próxima à fronteira Brasil-Colômbia, com o intuito de refazer parte da rota mítica pela qual seus ancestrais alcançaram os territórios onde até hoje vivem. Essa história faz parte de um extenso acervo de narrativas orais compartilhadas pelos grupos indígenas da família linguística tukano, falantes de mais de dez línguas, com cerca de 30 mil pessoas, que vivem nas bacias transfronteiriças dos rios Uaupés e Apapóris.

As notícias sobre a Expedição serão atualizadas no decorrer do percurso, sempre que for possível a comunicação. Acompanhem!
Em Manaus, o embarque do grupo na manhã desta terça, 19/2. Da esq. para a dir. em pé: Aline,Ernesto, Marcelino, Nivaldo, Laureano, João, Geraldo, Arlindo, Marivaldo, Ana Gita, Christine, Guillerno, stephen, Norma, Severiano, Vincent, Jorge; da esq. para a dir. agachados: João Arimar, Erculino, Raoni, Nildo, Higino, Antônio, Miguel, Adelson


A iniciativa é parte de um conjunto de ações que vêm sendo apoiadas por diversas instituições, com destaque para o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e a Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), numa parceria de vários anos da qual participa também o ISA (Instituto Socioambiental), e, mais recentemente, o Ministério de Cultura da Colômbia.
A idéia começou de fato a ser gestada em ambos os lados da fronteira, graças aos projetos desenvolvidos há mais de duas décadas pelo ISA no Brasil e pela Fundación Gaia na Colômbia junto aos povos do noroeste amazônico. Mais recentemente, essas experiências levaram à idealização de um programa binacional de Cartografia e Documentação Cultural dos lugares considerados sagrados pelos povos das famílias linguísticas tukano oriental, arawak e maku (saiba mais).
Participam da expedição 18 indígenas das etnias Tukano, Tuyuca, Pira-Tapuia, Bará, Desana, Tariano e Makuna, provenientes dos rios Uaupés, Tiquié e Pirá-Paraná. (veja no final do texto quadro com os nomes de todos os participantes, indígenas e não indígenas). Dentre estes há conhecedores tradicionais, jovens interessados nesses saberes e documentaristas. Também integram a equipe lideranças da Foirn, pesquisadores e técnicos das instituições envolvidas e uma equipe do Vídeo nas Aldeias. A expectativa inicial é produzir um vídeo-documentário sobre esta parte específica do trajeto mais amplo percorrido pela Anaconda ancestral, que, juntamente com outros materiais gerados, servirá de subsídio à consolidação e desenvolvimento desse programa binacional de cartografia e documentação dos lugares sagrados.

Narrativas de origem

Referidos em suas narrativas de origem e em encantações que os xamãs proferem em cerimônias de cura e proteção, estes locais a serem visitados possuem um alto valor cultural e espiritual, na medida em que guardam a memória e os poderes criativos dos tempos da origem do mundo e da humanidade. Os povos tukano em particular, aos quais pertencem os velhos conhecedores que serão os protagonistas da expedição, contam que seus primeiros ancestrais surgiram no extremo leste da terra, num local chamado Lago de Leite – hoje alguns dizem que este local fica na foz do Rio Amazonas; outros o identificam com a Baía da Guanabara.

Criados pelo Avô do Universo e vivendo inicialmente em forma de peixe (wai mahsã, “gente-peixe”), estes primeiros ancestrais chegaram aos rios da Bacia do Uaupés e Apapóris depois de uma longa viagem subaquática a bordo de uma Cobra-Canoa, a Anaconda ancestral (chamada pelos Pira-Tapuia, por exemplo, Pamulin Yuhkusoa, “Canoa de Transformação”).

Segundo os conhecedores, esta viagem propiciou um longo processo de transformação e desenvolvimento, a partir do qual estes primeiros ancestrais puderam lentamente alcançar a forma humana. Por isso, este longo percurso mítico desde o Lago de Leite, no extremo leste, passando pelos rios Amazonas, Negro e Uaupés até alcançar os locais onde hoje vivem, vem sendo chamado de “rota de transformação”.

Estas rotas estão repletas de pontos identificados pelos conhecedores como locais ou malocas onde estes primeiros ancestrais encostaram para descansar, benzer, fazer festa, cerimônia e vivenciar uma série de eventos cruciais para a sua transformação em humanos verdadeiros e para a futura vida de seus descendentes. Conhecidos como malocas ou “casas de transformação”, hoje estes são locais de muito valor, na medida que constituem fontes de potências espirituais e vitalidades mobilizadas pelos xamãs em seus procedimentos de cura e proteção.

Monday, 17 December 2012

Os velhos e os novos pecados - Leandro Karnal

café filosófico
http://youtu.be/dNVhp98SCbs


Os velhos e os novos pecados - Leandro Karnal



http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=dNVhp98SCbs





Sunday, 9 December 2012

Boitempo lança primeiro volume de "Para uma Ontologia do Ser Social"

carta maior
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21381&boletim_id=1459&componente_id=24715


Boitempo lança primeiro volume de "Para uma Ontologia do Ser Social"

Nas próximas semanas chega às livrarias o primeiro volume da obra de György Lukács, "Para uma Ontologia do ser social", projeto editorial da Boitempo. Nesta obra, o filósofo húngaro pretende instituir uma ontologia filosoficamente fundamentada em categorias essenciais que regem a vida do ser social, bem como nas estruturas da vida cotidiana dos homens. Este primeiro volume também precisa os pontos do debate que agitaram o pensamento marxista nas últimas décadas. O segundo e último volume está previsto para 2013.

Considerada uma das mais importantes obras do filósofo húngaro György Lukács, concebida no curso dos anos 1960, a Para uma Ontologia do Ser Socialpretende instituir uma ontologia filosoficamente fundamentada em categorias essenciais que regem a vida do ser social, bem como nas estruturas da vida cotidiana dos homens.

O primeiro volume de um dos projetos editoriais centrais da Boitempo, acalentado por mais de uma década, finalmente chega às livrarias brasileiras com apresentação de José Paulo Netto e tradução direta do alemão por Mario Duayer e Nélio Schneider, acrescida da tradução de Carlos Nelson Coutinho, introdutor de Lukács no Brasil e profundo conhecedor de sua obra, baseada na edição italiana. O texto contou também com uma minuciosa revisão técnica de Ronaldo Vielmi Fortes, auxiliado por Ester Vaisman e Elcemir Paço Cunha.

A tomada de posição ontológica marxiana de Lukács tem início nos anos 1930, quando o filósofo segue da Hungria para Moscou. No Instituto Marx-Engels-Lenin faz um mergulho definitivo nos Manuscritos econômico-filosóficos do jovem Marx. Mas, se a guinada ontológica de Lukács acontece ainda na juventude, marcando todos os seus escritos dos quarenta anos seguintes, é na maturidade, nos anos de 1950, que lhe ocorre a necessidade de desenvolver uma sistematização categorial das reflexões que vinha fazendo sobre arte e literatura. Retira-se então da vida política para dedicar-se à elaboração dos volumes que compõem a Estética.

Sua finalização aponta para o projeto de uma Ética; antes, porém, era preciso definir o sujeito capaz de assumir um comportamento verdadeiramente ético. Vêm daí as motivações que impeliram Lukács a trabalhar tão arduamente, ao longo de toda a década de 1960, nos manuscritos de Para uma ontologia do ser social.

Segundo o pesquisador romeno Nicolas Tertulian, Lukács tinha perfeita consciência do extremo empobrecimento sofrido pelo pensamento marxista durante a época stalinista. “Desse modo, Para uma ontologia do ser social representa um gigantesco esforço para examinar, passo a passo, as categorias fundamentais do pensamento de Marx, a fim de restituir-lhe a densidade e a substancialidade”, afirma na introdução dos Prolegômenos.

Obra de síntese, Para uma ontologia do ser social pretende ainda precisar os pontos do debate que agitaram o pensamento marxista nas últimas décadas. A Ontologia permitiu-lhe abordar a fundo esses pontos de dissenso e fornecer esclarecimentos acerca dos problemas essenciais do marxismo e dos fundamentos da própria evolução. “Os materiais que deveriam constituir uma “introdução” à Ética adquirem, assim, o estatuto de fundacionais da Ontologia, obra que não foi ainda suficientemente analisada. Em relação a ela no entanto se pode afirmar, com inteira segurança, que abre um novo horizonte teórico-filosófico para o desenvolvimento do marxismo, e que não haverá nenhum renascimento do marxismo se ela for ignorada”, sentencia José Paulo Netto.

Trecho do livro
“Antes de tudo, vida cotidiana, ciência e religião (teologia incluída) de uma época formam um complexo interdependente, sem dúvida frequentemente contraditório, cuja unidade muitas vezes permanece inconsciente. A investigação do pensamento cotidiano é uma das áreas menos pesquisadas até o presente. Há muitos trabalhos sobre a história das ciências, da filosofia, da religião e da teologia, mas são extremamente raros os que se aprofundam em suas relações recíprocas. Em virtude disso, resulta claro que justamente a ontologia se eleva do solo do pensamento cotidiano e nunca mais poderá tornar-se eficaz caso não seja capaz de nele voltar a aterrar – mesmo que de forma muito simplificada, vulgarizada e desfigurada.”

Sobre o autor
Nascido em 13 de abril de 1885 em Budapeste, Hungria, György Lukács é um dos mais influentes filósofos marxistas do século XX. Doutorou-se em Ciências Jurídicas e depois em Filosofia pela Universidade de Budapeste. No final de 1918, influenciado por Béla Kun, aderiu ao Partido Comunista e, no ano seguinte, foi designado Vice-Comissário do Povo para a Cultura e a Educação. Em 1930 mudou-se para Moscou, onde desenvolveu intensa atividade intelectual. O ano de 1945 foi marcado pelo retorno à Hungria, quando assumiu a cátedra de Estética e Filosofia da Cultura na Universidade de Budapeste. Estética, considerada sua obra mais completa, foi publicada em 1963 pela editora Luchterhand. Já seus estudos sobre a noção de ontologia em Marx, que resultariam oito anos depois em Para uma Ontologia do ser social, iniciaram-se em 1960 e agora ganha edição em dois volumes pela Boitempo. Faleceu em sua cidade natal, em 4 de junho de 1971. 

Do autor, a Boitempo já publicou Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios para uma ontologia hoje tornada possível (2010), O romance histórico (2011), Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento (2012) e agora o primeiro volume de Para uma ontologia do ser social. O segundo volume está previsto para 2013.

Saturday, 22 September 2012

Buscar Deus nas brechas da ciência é uma estratégia que leva ao fracasso

IHU
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/buscar-deus-nas-brechas-da-ciencia-e-uma-estrategia-que-leva-ao-fracasso-entrevista-especial-com-marcelo-gleiser/513826-buscar-deus-nas-brechas-da-ciencia-e-uma-estrategia-que-leva-ao-fracasso-entrevista-especial-com-marcelo-gleiser


“Buscar Deus nas brechas da ciência é uma estratégia que leva ao fracasso”. Entrevista especial com Marcelo Gleiser

A espiritualidade é parte constituinte de nosso ser. Os cientistas precisam ter mais humildade sobre o que ainda é “mera especulação”, e muitos deles, ateus ou agnósticos, não entram em combate contra a religião, afirma o físico brasileiro.

Na opinião do físico brasileiro Marcelo Gleiser, “ciência e fé são aspectos complementares de como compreendemos o mundo e nosso lugar nele, de como encontramos sentido em nossas vidas. Nenhum corpo de conhecimento, por si só, pode dar conta da complexidade da nossa existência”.
Na entrevista que concedeu com exclusividade à IHU On-Line, por e-mail, ele afirmou que as ciências começam a ir além do “tradicional método reducionista”, que busca explicações dividindo o todo em partes. “Muitos sistemas físicos e biológicos têm de ser entendidos em toda a sua complexidade, o que gera novos desafios para a ciência do século XXI. Como exemplo, cito a origem e natureza da vida, a emergência e funcionamento da mente humana, o clima”, explicou.
Gleiser comenta, ainda, a “retórica virulenta” dos novos ateístasDawkinsDennetHarris Hitchens, que se valem do mesmo tipo de fundamentalismo que buscam combater. Tal postura é um equívoco, pois não leva a nada e é filosoficamente ingênua, arremata. “O perigo é, de um lado, o obscurantismo e, de outro, a prepotência”.
Marcelo Gleiser(foto -http://bit.ly/QK4N2i)
é graduado em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, mestre em Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutor em Física Teórica pelo King’s College, em Londres. É pós-doutor pelo Fermilab e pela Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, nos Estados Unidos. Leciona no Darthmouth College, em Hanover, nos Estados Unidos. Tem uma vasta produção acadêmica, além de inúmeros artigos e livros publicados, dentre os quais citamos Cartas a um jovem cientista (Rio de Janeiro: Campus, 2007); Conversa sobre fé e ciência (São Paulo: Agir, 2011), escrito com Frei Betto; Criação imperfeita (Rio de Janeiro: Record, 2010) eA dança do universo (Rio de Janeiro: Companhia de bolso, 2006).

Em 02-10-2012, às 17h30min, Gleiser irá proferir a conferência de abertura do XIII Simpósio Internacional IHU Igreja, cultura e sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica, falando sobre As novas gramáticas que emergem hoje das ciências. Na noite de 03-10-2012, a partir das 19h30min, participará de uma mesa redonda com o professor Dr. George Coyne, do Observatório Vaticano e da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. A temática em questão é Fé e ciência: um diálogo possível?
A programação completa pode ser conferida em http://bit.ly/rx2xsL.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as novas gramáticas que emergem hoje das ciências?
Marcelo Gleiser – Se por “gramáticas” entendemos novos modos de se pensar sobre o mundo, talvez a mudança mais óbvia seja a extensão das ciências além do tradicional método reducionista. Hoje, entendemos que nem tudo pode ser entendido ao dividirmos o todo em pequenas partes; muitos sistemas físicos e biológicos têm de ser entendidos em toda a sua complexidade, o que gera novos desafios para a ciência do século XXI. Como exemplo, cito a origem e natureza da vida, a emergência e funcionamento da mente humana, o clima. Mesmo a noção de que as leis naturais que vêm da compreensão do comportamento das entidades mais simples está sendo revisada; existem, também, leis emergentes que não podem ser deduzidas ou previstas daquelas obtidas através do método reducionista.

IHU On-Line – Acredita que pode haver um diálogo autêntico entre ciência e fé? Por quê?
Marcelo Gleiser – Sem dúvida. Ciência e fé são aspectos complementares de como compreendemos o mundo e nosso lugar nele, de como encontramos sentido em nossas vidas. Nenhum corpo de conhecimento, por si só, pode dar conta da complexidade da nossa existência. Porém, é necessário evitar os excessos de ambas as partes. A religião não pode ignorar os avanços da ciência; por sua vez, a ciência não pode proclamar que sabe como resolver questões que, ao menos no momento, estão muito além de sua competência. O perigo é, de um lado, o obscurantismo e, de outro, a prepotência.

IHU On-Line – Quais são os principais avanços para a ciência a partir do diálogo com a fé?
Marcelo Gleiser – Não vejo que a ciência avance devido ao diálogo com a fé, ao menos nos tempos modernos. Sem dúvida, historicamente alguns dos grandes nomes da ciência eram também profundamente religiosos; Copérnico,GalileuKeplerNewton. Para eles, a ciência engrandecia a obra de Deus e era interligada com a fé. Hoje, existe uma separação prática entre as duas. A religião não faz parte do discurso científico, ao menos diretamente. É perigoso para as duas buscar-se por estas ligações. Ciência e fé devem coexistir e não insistir numa relação de dependência mútua. Por outro lado, se buscarmos por uma inspiração na ciência, o que faz tantos homens e mulheres dedicarem suas vidas ao estudo da Natureza, encontraremos, em muitos casos, uma relação de profunda espiritualidade com o mundo, mesmo que, na maioria deles, esta relação não inclua fatores sobrenaturais. A espiritualidade é parte da nossa humanidade, e se manifesta de formas diferentes em tempos diferentes. Hoje a encontramos na relação entre o homem e a Terra, na compreensão da nossa raridade e solidão cósmica, algo que ressaltei em meu livro Criação imperfeita.

IHU On-Line – Qual é o seu ponto de vista sobre o fundamentalismo ateísta, que tem em Richard Dawkins e Daniel Dennett dois de seus maiores expoentes?
Marcelo Gleiser – Acho que DawkinsDennettHarris Hitchens pecam pelo excesso, pelo uso da mesma retórica virulenta que criticam nos extremistas religiosos. Todo fundamentalismo é, por definição, exclusivista e destrutivo. Mesmo que muita gente ache que eles representam a posição da ciência, isso não é verdade. Existem muitos cientistas que, mesmo sendo ateus ou agnósticos, não adotam uma postura combativa em relação à fé. Esse tipo de atitude não só não leva a nada como é filosófica e extremamente ingênua. Basta dar uma olhada mais cuidadosa na ciência e em como ela funciona para entender que têm limitações essenciais, questões que estão além do seu alcance. Isso não significa que as pessoas de fé devam buscar Deus nos limites da nossa compreensão científica, mas que os cientistas precisam ter mais humildade em seus pronunciamentos sobre o que a ciência já compreende e o que é ainda mera especulação. Achar que todas as questões podem ser reduzidas ao método científico é privar a cultura humana de outros modos de compreensão. A realidade é bem mais rica do que isso.

IHU On-Line – Qual é a relação entre a existência da matéria e da antimatéria com a existência de Deus?
Marcelo Gleiser – Nenhuma. Matéria e antimatéria são aspectos complementares das partículas que compõem a realidade física do cosmo. Buscar por Deus nas brechas da ciência é uma estratégia que leva inevitavelmente ao fracasso; a ciência avança e esse Deus que “explicava” o que não se sabia explicar torna-se desnecessário. Melhor guardar a fé para questões de aspecto transcendente, que não são necessariamente abordadas pela ciência e seus métodos: qual o sentido da nossa existência, o que é o amor, por que existe o mal, o que é verdade etc.