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Bordar, ato transgressor?
CATEGORIAS: AMÉRICA LATINA, CULTURA, DESTAQUES
– ON 18/09/2013
Originado na resistência à ditadura Pinochet, movimento cultural que procura empoderar mulheres por meio da arte manual espalha-se pelo mundo e chega ao Brasil
Por Guilherme Weimann
O sofrimento e a dor de cada uma não são comparáveis, são vivências pessoais ou sociais. Mas o desafio e o ânimo de se converter em autora da sua própria história podem, sim, ser comparados.
A afirmação é da chilena Roberta Bacic, curadora da exposição Arpilleras da Resistência Política Chilena, que percorreu mais de trinta países, inclusive o Brasil, com circulação em cinco capitais no primeiro semestre do ano passado.
A exposição traz fragmentos da memória chilena de 1973 a 1990, período de repressão e terror da ditadura militar no país, comandados pelo general Augusto Pinochet, através de uma técnica de bordado conhecida como arpillera.
Essa é uma técnica antiga que surgiu a partir de uma tradição popular de Isla Negra, no Chile, onde grupos de mulheres se reuniam para produzir peças de bordados como forma de subsistência.
No período da ditadura, diversos grupos de mulheres se apropriaram das arpilleras e transformaram uma atividade tipicamente familiar em uma arma de comunicação contra a repressão. Ou, como afirmou Roberta, “transgrediram todos estes papeis e utilizaram a costura para não somente sobreviver economicamente, mas também para fazer a perspectiva de se tornar parte dos fatos que estavam ocorrendo”.
Nas oficinas de arpilleras que se espalharam pelo país, mulheres bordavam telas com as roupas de seus parentes desaparecidos pelo regime ditatorial. Estas obras foram enviadas através da Vicaria de Solidariedad, uma instituição ligada à Igreja, a diversos países da Europa e Canadá, e serviram como denúncia internacional ao sistema de Pinochet.
A partir desta experiência, Roberta expandiu essa expressão a mulheres de diversos países do mundo que também sofrem com violações de direitos humanos.
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), movimento social que existe há mais de 20 anos defendendo os direitos das populações atingidas por barragens e um projeto energético popular, pretende se apropriar desta técnica aqui no Brasil.
Através do projeto realizado em parceria com a União Europeia, que tem como objetivo diminuir os riscos de violação dos direitos humanos em áreas atingidas por barragens, o MAB irá desenvolver um trabalho com as arpilleras.
O objetivo é realizar diversas oficinas nacionais e regionais até 2014, envolvendo 3.300 mulheres atingidas das regiões norte, nordeste, sudeste e sul para comunicarem através das telas as violações sofridas com a implantação das obras.
Segundo relatório da Comissão Especial “Atingidas por Barragens”, do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), “as mulheres são atingidas de forma particularmente grave e encontram maiores obstáculo para a recomposição de seus meios e modos de vida; [...] elas não têm, via de regra, sido consideradas em suas especificidades e dificuldades particulares” e, por isso, “têm sido as principais vítimas dos processos de empobrecimento e marginalização decorrentes do planejamento, implementação e operação de barragens”.
A dor não pode ser comparável, mas o ânimo e vontade de se tornar autora da sua própria história sim. Para Violeta Parra, uma precursora da técnica, “as arpilleras são como canções que se pintam”. Por isso, talvez as atingidas possam materializar o coro entoado há anos: “pra mudar a sociedade do jeito que a gente quer, participando sem medo de ser mulher”.
Leia a seguir a entrevista com Roberta Bacic:
Qual o significado da costura para a mulher?
Os significados são múltiplos, já que abordam o nível pessoal, familiar e social da vida. A costura se relaciona diretamente com a vida familiar, com o cotidiano, com a tarefa de cuidar, dar calor e proteger a família. Em muitos casos para a mulher, transforma-se também em uma forma de contribuir com o orçamento familiar. No caso das Arpilleras, as mulheres transgrediram todos estes papeis e utilizaram a costura para não somente sobreviver economicamente, mas também para fazer a perspectiva de se tornar parte dos feitos que estavam ocorrendo. Através das Arpilleras, as mulheres têm contribuído ao testemunho, à memoria, à resistência e à denuncia. Em particular me refiro às Arpilleras chilenas que nasceram durante a ditadura militar, entre 1973 e 1989.
Como as Arpilleras contribuem para a emancipação da mulher?
As mulheres tiveram que se empoderar diante dos problemas que as afligiam e atuaram com as ferramentas que tinham ao seu alcance, neste caso a costura. As oficinas de arpilleras, apoiadas pela Vicaria de Solidaridad e outras instituições do Chile, geraram nelas um espaço de socialização, fraternidade, diálogo, ação e reflexão. Estas oficinas também foram uma fonte de trabalho.
Como e quando surge a ideia das exposições?
A ideia de exibir as arpilleras como parte do testemunho, memória e denúncia das violações dos direitos humanos no Chile durante 1973 e 1989 surge no ano de 2007 na Irlanda do Norte, enquanto fui solicitada, como curadora convidada, para apresentar uma exposição de têxteis com histórias no contexto do Dia Internacional da Mulher, em 2008. As arpilleras construíram um eixo da exposição que se distribuiu em nove espaços da cidade de Derry, na Irlanda do Norte. Esta exposição intitulada The Politics of Chilean Arpillerasteve grande acolhida e foi convidada a diferentes lugares. Desde então, não pararam. As arpilleras estiveram em diferentes países, contextos, continentes e não apenas se apresentando, mas também encorajando mulheres de outras latitudes a contar suas próprias histórias usando a mesma técnica.
Houve outros projetos similares como este do MAB, com mulheres atingidas por barragens ou por outros conflitos?
Claro: em Zimbábue, Peru, Catalunha, Irlanda do Norte e agora também no Brasil, que já incursiona desde o ano de 2011. Várias destas arpilleras serão apresentadas na exposiçãoRetazos testimoniales: arpilleras de Chile y otras latitudes, no Parque da Memória de Buenos Aires, como parte do núcleo Outras Latitudes. Estarão presentes a partir do dia 28 de setembro Parto en casa e Memórias de la dictadura, Arpilleras nascidas de oficinas facilitadas por Esther Vital. Encerraremos a exposição com oficinas para integrantes do MAB, que fornecerão trabalhos já feitos e farão novos.
Podemos comparar a dor das arpilleristas chilenas e das mulheres atingidas por barragens?
A dor de cada uma não é comparável, é uma vivência pessoal ou social. O que é comparável é o comprometer-se, atuar, desafiar e se a animar a converter-se em autora de sua própria história e se somar a caminhos já empreendidos por outras mulheres.
Duas das arpilleras mostram situações comuns às vividas por atingidas por barragens. Uma ilustra a falta de água e outra mostra cabos elétricos sobre poucas casas. Você se lembra delas? Estes são problemas que eram recorrentes para os chilenos? Existem ainda, são problemas atuais?
Não somente me recordo como percebo e identifico-as de forma patente. O problema da falta de água e a pobreza, que limita o acesso à luz elétrica, também atinge mulheres pobres no Chile hoje e em outros países. As arpilleras que você menciona têm muita força e mostram que as arpilleristas que as fizeram, além dos problemas da repressão política, tinham que lidar com esta realidade tão penosa como é a pobreza.
Patricio Guzmán, no documentário Nostalgia de la luz, diz que a memória tem força de gravidade, sempre nos atrai. Os que têm memória são capazes de viver no frágil tempo presente, os que não a têm, não vivem em nenhuma parte. Qual é a importância da memória?
Compartilho da opinião que disse Patricio Guzmán. Agrego um elemento muito presente no filme magistral de Guzmán que você menciona: a necessidade humana básica de saber e conhecer. Tanto os astrólogos como as mulheres que buscam seus desaparecidos no deserto do Atacama do Norte do Chile enfrentam o mesmo dilema. Os cientistas buscam entender/saber/conhecer nossa origem, as mulheres dos desaparecidos querem saber “Onde estão?” Ambos seguem buscando ainda que não encontrem respostas. As perguntas essenciais básicas são as que nos mantêm vivos/as.
Mais alguma coisa importante para ressaltar?
O valor da comunidade, a participação e o papel-chave de facilitadoras que sejam capazes de gerar iniciativas que movam as pessoas atingidas. Para isso, são necessárias novas leituras, gerar instâncias de maior comunicação para ir somando entendimento e diminuir a confrontação que divide e não dialoga. Destaco aqui a relevância de contar com Esther Vital, quem já caminha por esses caminhos desde 2008. Haveria muito mais para dizer, que sigam as mulheres do MAB com suas agulhas, telas e linhas contando suas histórias e fazendo propostas de novos caminhares.
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