Tuesday, 19 May 2015

​​Brasileiro acha que mudança do clima já afeta o país e que governo faz pouco a respeito


​site: greenpeace.org
Para 95% da população, impactos já estão sendo sentidos, como crise de água e energia; 84% afirmam que o poder público não faz nada ou faz muito pouco para enfrentar o problema

Pesquisa do Datafolha mostra que o brasileiro está muito preocupado com as mudanças climáticas e acha que o governo não compartilha dessa preocupação. Segundo o levantamento,  encomendado pelo Observatório do Clima e pelo Greenpeace Brasil, 95% dos cidadãos acham que as mudanças climáticas já estão afetando o Brasil. Para nove em cada dez entrevistados, as crises da água e energia têm relação direta com o tema, sendo que para 74% há muita relação entre a falta de água e luz e as mudanças climáticas. No entanto, para 84% dos entrevistados, o governo não faz nada ou faz muito pouco para enfrentar o problema. O Datafolha ouviu 2.100 pessoas em todas as regiões do país.
“O cidadão médio tem um ótimo nível de entendimento das causas da mudança climática e de seu impacto sobre o cotidiano da população e mostra que está insatisfeito com o baixo grau de prioridade dado pelo governo a esse tema, crucial para o desenvolvimento do país”, destaca Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima.
Os entrevistados também demonstraram vislumbrar as formas de resolver o problema. Entre as soluções apontadas estão a redução do desmatamento, melhorias no transporte coletivo e investimentos em energias renováveis. Mais de 80% dos brasileiros acham que essas ações inclusive trarão benefícios para a economia do país.
A pesquisa mostrou, ainda, que o brasileiro se enxerga como parte da solução:  62% dos entrevistados estão dispostos a instalar um sistema de microgeração de energia solar em casa – equipamentos conhecidos por 74% da amostra.  Diante da hipótese de ter acesso a uma linha de crédito com juros baixos e a possibilidade de vender o excesso de energia para a rede elétrica, o percentual de interessados sobe para 71%.
“Há uma percepção bastante clara de que a microgeração de energia solar beneficia o cidadão e o país”,  explica Ricardo Baitelo, coordenador de Clima e Energia do Greenpeace Brasil. Entre as principais vantagens citadas pelos entrevistados estão a redução nas despesas com eletricidade (82%), a redução dos impactos de secas prolongadas (77%), a segurança e confiabilidade dessa fonte (70%) e o fato de que se trata de uma alternativa às hidrelétricas (69%).  Os moradores das regiões Sudeste e Nordeste foram os que demonstraram maior entusiasmo com o tema.
Atualmente, a microgeração de energia enfrenta vários entraves como, por exemplo, a forma como o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) incide sobre a geração de eletricidade do cidadão que escolhe produzir sua própria energia. Outras questões, como a criação de linhas de financiamento com baixos juros, também precisam ser resolvidas. “Trata-se de uma excelente oportunidade para o governo agir em sintonia com a vontade da sociedade brasileira”, completa Baitelo. Para pressionar os governadores a assinarem o convênio nº 16 do CONFAZ (Conselho Nacional de Política Fazendária), que permite aos Estados eliminar o imposto ICMS que incide na geração de eletricidade por meio de painéis solares, tornando essa energia mais barata e contribuindo para sua popularização, um abaixo assinado está no ar desde 6 de maio: http://www.avaaz.org/solar
Sobre a atuação do governo, a pesquisa Datafolha mostra que o brasileiro tem uma percepção bastante crítica: para 48%, o governo federal está fazendo menos do que deveria em relação às mudanças climáticas; para 36%, ele simplesmente não está fazendo nada. Os mais críticos são os brasileiros das regiões Nordeste e Sudeste. Mas, para dois terços da amostra (66%), o Brasil deveria assumir uma posição de liderança no enfrentamento do problema em nível internacional. No Nordeste, esse índice chega a 74%.
A pesquisa também confirma que existe um razoável entendimento das causas das mudanças do clima.  Apresentados diante de 9 possíveis causas, as mais apontadas pelos entrevistados foram desmatamento (95%), queima de petróleo (93%), atividades industriais (92%), queima de carvão mineral (90%) e tratamento de lixo (87%).  Para efeito de teste, a pesquisa incluía dois fatores que não tem relação com as mudanças climáticas - ambos ficaram entre os menos apontados pelos entrevistados (El Niño, com 64%, e mudanças no comportamento do Sol, com 83%).  "Considerando a forte oposição patrocinada por setores que têm interesse em negar que as mudanças climáticas sejam causadas pela ação humana, este resultado é extremamente significativo, pois mostra que o negacionismo do clima não colou no Brasil", analisa Rittl.
A pesquisa foi realizada entre 11 e 13 de março de 2015. O Datafolha utilizou metodologia quantitativa, realizando entrevistas pessoais e individuais em pontos de fluxo populacional de 143 municípios de pequeno, médio e grande porte com pessoas com mais de 16 anos de idade. A margem de erro para o total da amostra é de 2,0 pontos percentuais para mais ou para menos.


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Saturday, 16 May 2015

Para reabrir debate sobre o papel da Universidade

http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=145854


Para reabrir debate sobre o papel da Universidade

150515-Leher2
Roberto Leher, reitor recém-eleito da UFRJ, dispara: sistemas de avaliação atuais desestimulam criatividade e reflexão; educação superior precisa buscar novo padrão civilizatório
Entrevista a Pedro Almeida Ferreira Raquel Varela, na Revista Rubra
Com um extenso trabalho de pesquisa em políticas públicas na educação, Roberto Leher falou-nos do ensino universitário e da produção acadêmica, da investigação científica e da ideologia neoliberal aplicada à educação. 
O que é que pensa do processo de avaliações externas e da medição da produtividade do trabalho universitário por número de publicações em revistas científicas?
No Brasil, a avaliação externa de toda a pós-graduação é feita pela CAPES (Coordenação do Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior ). Esta determina prazos para mestrado e doutoramento, estabelece a quantidade mínima de publicações por docente em revistas por ela qualificadas e, conforme a pontuação do programa de pós, atribui uma nota que pode ir de 1 a 7. Entretanto, nem todos programas podem obter a nota 7, a despeito de sua qualidade, pois este conceito é restrito a 3 ou 5 programas por área em todo país. É um campeonato em que a maioria, apesar da febre produtivista, ficará para trás. Programas com índice igual ou inferior a 3 podem ser fechados. A coerção econômica dá-se pela associação entre a nota obtida e o número de bolsas para os estudantes, bem como o apoio a projetos de pesquisa, etc. É uma forma de submeter o trabalho acadêmico às diretrizes gerais do Estado e do mercado, em total desconsideração com a prerrogativa da autonomia universitária constitucionalmente assegurada em 1988.
Não se verifica o mesmo rigor da aferição do desempenho nos novos campi universitários públicos e nos Institutos Federais de Educação Tecnológica. Nestes, os cursos são muito semelhantes aos que, na Europa, seguem o Protocolo de Bolonha — cursos de 2 ou 3 anos. Os professores que atuam nestes cursos dificilmente conseguirão seguir para a pós-graduação e terão de se conformar com a docência em cursos massificados, em geral, com turmas com enorme número de estudantes. Nas instituições privadas, responsáveis por 75% das matrículas, a situação é muito mais grave. É uma educação aligeirada, um genocídio intelectual.
A obsessão de que a única produção acadêmica relevante é a veiculada pelas revistas qualificadas pela CAPES relaciona-se com o que podemos chamar de “rotas de excelência” e com o que é dado a pensar na universidade. As pequenas recompensas materiais que o Estado assegura a alguns pesquisadores — bolsas, recursos para os projetos, viagens, etc. — não são para todos. É preciso criar bloqueios. As revistas são a forma aparentemente “neutra” e “legítima” de segregação, de seleção, de estabelecer os temas desejáveis. O espaço das revistas pertence sobretudo aos “excelentes” que fazem pesquisas “pertinentes”. No entanto, mesmo estes estão presos, em sua maioria, aos interesses das corporações, desenvolvendo “inovação tecnológica”, e de programas de governo, especialmente relacionados com a gestão tecno-científica da pobreza e do controle social. O poder simbólico destes pesquisadores no campo científico decorre em grande parte da capacidade de captação de recursos. Existem exceções, grupos de pesquisa que, apesar de não estarem inseridos na lógica imediata do capital, sobrevivem nesse sistema, mas com alto custo pessoal.
De que forma é que essa captura da universidade pelo capital empobrece a investigação científica e a liberdade do docente?
Eis a grande questão! O Estado, que estruturou o capitalismo monopolista durante a ditadura-militar do Brasil, apropriou e incorporou conhecimento em vários domínios — energia, telecomunicações, engenharias etc. — com as empresas estatais. À medida que estas foram privatizadas, os seus departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento foram fechados. Hoje, as universidades prestam esses serviços e muitos professores viraram funcionários de corporações. Em Berkeley, o Instituto de Biociências e Energia e, na Universidade de São Paulo, a Escola Luiz de Queiroz, recebem recursos da coalizão liderada pela British Petroleum para monopolizar o conhecimento, e a produção, da agro-energia mundial, o etanol. Cabe indagar: como estes grupos financiados pela corporação poderão avaliar de modo isento os impactos sócio-ambientais desta forma de produção de energia?
A situação paradoxal é que grande parte dos recursos de pesquisa é destinada a inovação tecnológica; contudo, a inovação, nos Estados Unidos e nos países do G7, ocorre fundamentalmente dentro das empresas e não na universidade. No Brasil, como realidade geral, a inovação tecnológica, no sentido próprio do termo, não existe. Somos um país capitalista dependente, inserido em circuitos produtivos em que o grosso da produção industrial já recebe tecnologia pronta. Então, o que a universidade está fazendo é simplesmente prestar serviços para corporações que nem sequer necessitam investir em laboratórios e em pessoal qualificado e, ao adquirir um serviço, desembolsar seus próprios recursos, pois os referidos serviços contam com recursos públicos do CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa, atualmente chamado Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), da FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econêmico e Social) …
Há, assim, um novo ethos acadêmico: o do professor-empreendedor, em que a universidade é uma peça na engrenagem do capital. A minha hipótese é que uma das novas funções da universidade é aumentar o exército industrial de reserva.
Explique-nos melhor essa hipótese.
O grande desafio da última década foi a socialização do que os pós-modernos chamam de “excluídos”, os que estão afastados do controle estatal ou de uma socialização que os integre como força de trabalho.
Nos anos 90, o desemprego cresceu muito no Brasil — chegou a 45 ou 50% entre a população jovem mais explorada, tal como hoje em países europeus. A força de trabalho desempregada ou em rotação de trabalhos já mantinha os salários muito baixos, por isso, os jovens das favelas, por exemplo, não se viam como potenciais assalariados e procuravam formas alternativas de vida, trabalhos informais, etc.
Com o ciclo expansivo 2003-2008, foi necessário fazer com que essa juventude das periferias das grandes cidades se percebesse como força de trabalho potencial. Existem “programas focalizados” para cada fracção da classe trabalhadora até então fora do mercado de trabalho: programas de educação para jovens negros e para mulheres jovens da favela – mas, se examinarmos as condições em que acontecem, percebemos que são cursos que asseguram tão somente rudimentos de conhecimentos, em geral, mais ligados à socialização condizente com o “espírito do capitalismo”.…
E a educação joga esse papel com o ensino profissional…
TEXTO-MEIO
Sim. O ensino profissional é estratégico. Para uma grande parte da população, começa a abrir-se a possibilidade de educação superior e de formação profissional pós-ensino médio, pois a taxa bruta de matrículas na educação superior ainda é muito baixa, 28%. Mas, no Brasil, 75% das matrículas na educação superior – e na formação profissional é ainda maior – são privadas e mercantis. A educação superior está sendo ocupada pelos setores com fins lucrativos, e já não são, como até 2005, empresas familiares, agora são setores financeiros, vinculados a bancos que organizam fundos de investimento…
Uma das grandes conquistas da revolução em Portugal foi o ensino unificado, que vem sendo destruído. Nos anos 90, com as medidas chamadas neoliberais, criou-se a via de ensino e a via científica na formação universitária. Observa isto no Brasil?
No processo de redemocratização, lutamos, como vocês, para ter universidades capazes de assegurar uma formação geral, culturalmente ampla e científica, para que todos tivessem uma visão integrada, inventiva e crítica do seu labor. Mas isso vem sendo duramente combatido há muitos anos. Em meados da década de 1990, o presidente Fernando Henrique Cardoso promoveu uma disjunção entre a formação profissional em nível médio e a formação propedêutica, científica, impondo um sistema de educação profissional que não formava os jovens, mas os treinava para o trabalho simples. E é esse o modelo dos atuais Institutos Federais e, sobretudo, do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), um vasto programa de formação utilitarista, voltado para o adestramento dos jovens, ofertado principalmente por organizações de ensino privadas, vinculadas aos sindicatos patronais, mas mantidos com verbas públicas. Quando as entidades patronais reclamam da falta de mão de obra qualificada, em rigor estão reclamando da baixa escolaridade dos jovens que os afasta do exército industrial de reserva, situação que preocupa o patronato, pois o modelo econômico brasileiro tem como fundamento a superexploração do trabalho.
A preocupação com a chamada sociedade do conhecimento é puramente proclamatória. No Brasil foi criado um programa, que seria financiado com verbas do Estado e das empresas, chamado “Ciência sem Fronteiras”, para que jovens fizessem parte da graduação em universidades na Europa e Estados Unidos. O programa foi criado, mas as empresas não cumpriram sua parte, colocando recursos para ampliá-lo!
Por que?
Não está na estratégia empresarial organizar um setor de pesquisa e desenvolvimento próprio. A associação com o imperialismo permite que as frações burguesas locais tenham lucros exorbitantes. O Brasil, hoje, regride na sua base produtiva. Tem uma industrialização importante, mas de menor sofisticação tecnológica. Mesmo a agricultura possuiu hoje uma base tecnológica muito mais subordinada do que a dos anos 70. A chamada revolução verde exigia domínio da genética e de estudos sobre evolução e ecologia, pois as sementes híbridas tinham de estar adaptadas aos ecossistemas brasileiros. Mas hoje, o padrão dos transgênicos da Monsanto não exige isso! A simplificação da formação universitária não é um problema geral para o setor produtivo.
O aumento do exército industrial de reserva com formação precária é estratégico para a organização do capital ou é consequência de uma educação mercantilizada? Pergunto isto porque, em Portugal, vemos empresas a pedir engenheiros pré-Bolonha…
Aqui, a Petrobras também não aceita candidatos para as engenharias vindos desses cursos aligeirados. É uma contradição que não deixa de ser irônica. O sistema de pós-graduação existente nas áreas consideradas prioritárias cumpre esse papel de fornecimento de força de trabalho com maior sofisticação em áreas muito específicas.
Em relação ao grosso da força de trabalho, a formação é precária e brutal mas funcional ao capital. No Brasil, mais de 1 milhão de jovens – 16% das matrículas no ensino superior, sendo 84% em organizações privadas – são feitas em cursos a distância, sem presença em laboratório. Teremos químicos que nunca viram uma pipeta, biólogos que nunca viram um microscópio!
Mais do que o interesse pragmático de formação da mão-de-obra para postos de trabalho x, y ou z, a preocupação parece ser a governabilidade. A preparação da força de trabalho é construída a partir de uma plataforma de socialização para o ethos capitalista. A partir daí, constroem-se competências mais específicas para padronizar a força de trabalho e facilitar a mobilização do capital.
O que acha dessa palavra, “competências”?
À medida que foram feitas algumas teses de doutoramento e estudos mais sistemáticos sobre esta questão, tornou-se claro que a noção não tem origem na educação. Ela surge nos processos de reestruturação produtiva, na Europa e Estados Unidos, a partir dos anos 70 e, mais nitidamente, nos 80. Surge vinculada à fragmentação do trabalho e da identidade do trabalhador, para destruir o conceito de carreira, de categoria profissional, que sustentava a organização sindical..
Mas a mente humana não opera por meio de “competências”! Isto não tem suporte científico! É ideológico. Diz-se que o manejo do conhecimento se dá por via de “competências” que devem ser aferíveis e quantificadas por testes como o PISA ou, aqui no Brasil, o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). O objectivo é definir mundialmente por meio do Projecto Tunning o que os organismos internacionais desejam de um curso universitário, quais as “competências” básicas que deve garantir.
Não é também uma forma de criar mão-de-obra flexível?
Sim, o salário do trabalhador já não depende do contrato, varia de acordo com o desempenho. E como se afere desempenho? Em alguns setores, se um trabalhador produziu 20 mercadorias e outro 25, então, este merece gratificação. Mas noutros é mais difícil. No setor de serviços, e mesmo na área das indústrias que não pertence à parte final da produção, foi necessário criar descritores aferíveis. Aí surgem as “competências”. É o mesmo movimento que o capital vem fazendo com os professores, o de passar de uma subordinação formal a uma subordinação real do Trabalho ao capital, de alcançar uma expropriação sem precedentes.
Na educação básica, isso é feito com o uso de cartilhas, livros aligeirados, materiais pedagógicos que o professor repete. Nesta situação, o docente não é protagonista das suas aulas: só aplica cartilhas. E quem as produz são as corporações. Aqui, no Brasil, é um grupo chamado Grupo Pearson, dono das maiores editoras do mundo, do Financial Times e The Economist.
Hoje, o que fazemos na universidade?
É uma pergunta constrangedora. Há muitas formas de fazer universidade. E acho que há uma forma dominante, hegemênica, que está socializando a juventude para o capitalismo. A universidade está sendo direcionada para a formação da força de trabalho que o capital precisa. Existem contradições, com mediações específicas, mas é essa a tendência geral, e parece-me que foi naturalizada, legitimada.
Que papel devia cumprir a universidade numa sociedade desejável?
Historicamente, a função social da universidade foi constituída num processo de lutas em defesa de uma universidade que produzisse ciência e tecnologia, não que prestasse serviços. A maior preocupação, hoje, é a mudança dessa função social em prol da pesquisa e desenvolvimento, da inovação, algo que deveria ser realizado nas empresas.
Numa sociedade socialista, a universidade deveria ser espaço de convergências de movimentos sociais e pesquisadores. Se queremos uma agricultura agro-ecológica, temos de produzir e socializar conhecimento científico rigoroso sobre ecologia, sobre os solos, o uso cuidadoso das reservas aquíferas, trabalhar em prol da soberania alimentar, conhecer as sementes crioulas (nativas), e isso exige conhecimentos produzidos em conjunto com os camponeses, os povos originários. São desafios epistemológicos e epistêmicos.
A pesquisa sistemática, livre e em prol do bem viver dos povos é indispensável em todos os domínios. A humanidade está desafiada a produzir um outro horizonte civilizatório que não o da barbárie do capital. A universidade deveria ser uma instituição para isso!

Saberes indígenas, muito além do romantismo

outras palavras
http://outraspalavras.net/mundo/america-latina/os-saberes-indigenas-muito-alem-do-romantismo/

Saberes indígenas, muito além do romantismo

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150513-Reciprocidade
Enawenê Nawê pescando, Terra Indígena Enawenê Nawê, Mato Grosso.
Não se trata de opor um fantasioso “espiritualismo” a um materialismo ocidental. Mas de desafiar nosso regime de sociabilidade com outras ideias, disposições e possibilidades
Por Ricardo Cavalcanti-Schiel
Houve um tempo em que falar de índios no Brasil era um exercício romântico. Tão romântico quanto fantasioso.
No começo do século XX, alguns doutos paulistas saíram pelo seu estado batizando os lugares com nomes tupi, do Anhangabaú a Araçatuba, movidos por ímpetos eruditos, não necessariamente por remissões mais escrupulosas à realidade. Quando a região de Guaianases, na cidade de São Paulo, foi batizada com esse nome, havia centenas de anos que os Guainá, que ali teriam sido aldeados à força no século XVI, já não mais existiam para contar qualquer coisa a respeito da sua história. Os índios daqueles eruditos paulistas, cultores do “tupi antigo”, eram algo bastante postiço. Realizando com perversa ironia os ideais antropofágicos dos mesmos tupi, que séculos antes iam à guerra, entre outras coisas, para caçar, para seus futuros filhos, os nomes daqueles que comeriam, acabaram eles agora transformados em não mais que nomes, desta feita como que nomes em conserva, para serem usados nessa curiosa salada toponímica.
Enquanto isso, no oeste paulista, a partir de Bauru, travava-se uma guerra pela expansão da fronteira agrária, empurrada pela ferrovia. Era um legítimo cenário de bang-bang, e as principais vítimas do extermínio, operado por “bugreiros” e outros agentes, eram os Kaingang e os Xavante, genericamente chamados de Coroados, gente da família linguística jê (muito diferente da família tupi, portanto); extermínio que a história oficial paulista fez questão de sepultar sob a tampa de concreto do silêncio, escrevendo, em seu lugar, o relato fantasioso de uma simples saga de imigrantes. Assim, Araçatuba, por exemplo, terra kaingang, hoje capital do boi gordo, no extremo-oeste paulista, pôde, também ela, ganhar seu bucólico nome tupi: bosque de araçás.
Note-se: não estamos nos confins selváticos e geograficamente obscuros de uma imensa Amazônia; uma Amazônia quase que alheia e que nem parece ter fim (e que daí, pela “lei” da oferta e da procura, se presuma como tão… barata). Estamos no hoje pujante e urbanizado oeste paulista, há não mais que cem anos atrás, apenas vinte anos antes de São Paulo embarcar em uma aventura militar contra um incipiente governo nacional antioligárquico.
De romantismo em romantismo, chegamos aos anos 80, em que os índios, eternos candidatos a nobres selvagens, passam a ser agora heróis ecológicos. Esses, pelo menos, ainda estavam vivos. É bem verdade que a relação dos índios com aquilo que chamamos “natureza” é muito diferente da que a nossa sociedade tem, a começar pelo fato de que, como nos ensina a antropologia amazonista hoje, eles não a reconhecem como “natureza” ― como objeto exterior e à parte, feito para ser usado, apropriado e apenas eventualmente “preservado” como coisa patrimonializada ―, mas como “gente”, como uma multiplicidade de sujeitos imprescindíveis de uma relação sem a qual o mundo habitado não é compreensível nem poderia existir. No entanto, transformar os índios em heróis da “nossa” natureza, incorporados como parte daquele objeto à parte, e igualmente alheio a nós, pode não ser mais que uma dessas nossas projeções, tão românticas quanto utilitárias, de ver Peri beijar Ceci… e morrer em seguida. Parará tim bum bum bum.
TEXTO-MEIO
Se o novo romantismo ecológico ao menos chamou os índios para a agenda enquanto eles ainda estão vivos, sua tônica acanhadamente preservacionista os fez equivaler, mais uma vez, ao passado; a um passado de aparente pureza florística e faunística que precisaria ser sempre revivido ― ou “resgatado”, como gosta de usar a terminologia patrimonializadora em voga ― de forma idealmente imutável. Mais uma vez, os índios parecem entrar na (nossa) dança sob a clave do embalsamamento, mesmo que, agora, sob a agenda de uma patrimonialização talvez tão fetichista quanto a toponímia mítica dos velhos eruditos paulistas.
No entanto, nos últimos tempos, os últimos lastros românticos que ainda pareciam nos avalizar a existência dos índios parecem estar ruindo, o que não nos augura necessariamente algo virtuoso, porque ficamos mal-acostumados a depender dos romantismos para assegurar uma (traiçoeira e manhosa) legitimidade simbólica desses Outros Nacionais (como os chamou a antropóloga Alcida Ramos) e, por consequência, garantir as bases institucionais da sua existência enquanto povos acolhidos e protegidos ― não falemos sequer ainda de “respeitados”, porque o respeito à diferença não é algo que se aprenda por meio de projeções românticas.
Não é preciso lembrar, para as pessoas razoavelmente informadas, o estado de coisas em que andam as políticas de governo… e os horizontes obscuros das políticas de Estado… com relação aos povos indígenas. Também já é quase ocioso lembrar o quanto um e outro (políticas de governo e projetos de política de Estado) têm se estimulado mutuamente, para promover o etnocídio indígena por meio do solapamento dos direitos. Seja para quem for, qualquer solapamento de direitos é sempre um sequestro da cidadania. Daria até para lembrar, parafrasticamente, aquele poema de Brecht: “primeiro levaram os índios…”.
O que alenta e justifica essa marcha implacável nós também já sabemos o que é: a velha ideologia desenvolvimentista repaginada pelo avatar inquestionável do consumo como critério, seja de teórica “inclusão” seja de teórico “bem-estar”. Assim, no coração dessa nova ideologia desenvolvimentista encontra-se uma operação utilitarista singela: trocar a cidadania pelo consumo. E, nela, o único lugar para os índios ― uma vez corroídas, por esse realismo neoclássico rasteiro, as amarras românticas que os sustentavam ― é o de se tornarem, eles também, modestíssimos consumidores, apoiados por programas assistenciais do governo, depois de entregarem seus “meios de produção” a quem realmente interessa, como aqueles que, vencidos, entregaram outrora o que são hoje terras de boi gordo.
Claro que os que já se renderam inteiramente à coisificação utilitarista do consumo (e provavelmente se esqueceram até de ser gente) vão dizer: melhor boi gordo do que índio ― e no estado em que chegamos, isso é exatamente o que muitos pensam, sem que tenham a necessidade de pronunciá-lo. No entanto, a troca utilitarista, na sua racionalidade de meios e no seu afã predatório, quer apenas ganhar hoje, para a aventura de uns quantos, o que o bem comum poderia, de outra forma, ganhar multiplicado amanhã, se sobreviver até lá. E é aí que a equação que move as curvas de utilidade se alarga para variáveis e horizontes impensados pelos mecano-economistas.
No atual estado de coisas, entretanto, parece haver apenas duas alternativas para salvar a (potencialmente subversiva) diversidade existencial dos Outros Nacionais da sanha desenvolvimentista de moê-la e transformá-la em salsicha: ou reciclamos as projeções românticas em algum novo (e duvidoso) feitiço encantatório das nossas narrativas nacionais, ou tiramos os índios do alheamento passadista a que sempre foram condenados e os reconhecemos como uma aposta sincera no futuro; num futuro não apenas deles, como também não apenas nosso, mas num futuro de diálogo, para além do alheamento, no qual eles também são, necessariamente, sujeitos de fala ― não “eles” a pessoa x ou y, ou a “representação” w ou z, mas, ainda mais radicalmente, as suas visões de mundo. A primeira alternativa, a da reciclagem das projeções românticas, sempre foi aquela imediatamente sedutora, e, com ela, chega-se até mesmo a lançar mão de alegados exotéricos. A segunda, por sua vez, é a que reclama uma reflexão antiutilitária, mas estratégica, que talvez seja exatamente aquilo pelo qual muitos de nós, antropólogos, trabalhamos.
Em 1952, num texto escrito para a Unesco, Lévi-Strauss defendia que as sociedades só sobrevivem porque aprendem umas com as outras. Uma sociedade que se isola na certeza das suas verdades fenece diante dos problemas para os quais sua visão de mundo não alcança soluções. As “soluções” de grande alcance, portanto, não são meramente tecnológicas, mas conceituais. São as ideias que dimensionam a técnica e que dão uso às ferramentas, ou, segundo a fórmula famosa do epistemólogo Georges Canguilhem: o microscópio não é a extensão da vista, mas a extensão da inteligência. Sem o conceito de micro-organismo, o que se veria pelas lentes de um microscópio seria apenas um conto de fadas.
Evidentemente que as tecnologias ajudam, mas o que está sempre por detrás delas são as ideias. De pouco adiantaria, para a expansão europeia dos séculos XV e XVI, o astrolábio que os europeus aprenderam dos árabes, se alguns deles não dispusessem do novo e herético conceito de uma Terra redonda. Descobrir a América, nesse sentido, foi a consagração de uma grande heresia, frente a uma doxa tão potente à sua época quanto os mitos econômicos atuais e suas leis inquestionáveis. E as coisas não pararam por aí, evidentemente, porque, como também nos lembrava Lévi-Strauss, isso é a história, e os europeus, casualmente, não se encontravam na situação dos Mayas em torno do ano 1.000, quando, orgulhosos e isolados, viram suas opulentas cidades colapsarem por conta de uma crise ecológica, por eles mesmo provocada, e para a qual nem o refinamento do conhecimento dos seus astrônomos e sacerdotes tinha uma solução a dar.
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Ainda assim, um milênio após o fim do período Maya Clássico, o muralista Diego Rivera pintaria em uma das paredes do Palácio Nacional do México a lista do que a tradição ameríndia mexicana havia legado ao mundo: uma lista de cultivos alimentares que, além de cacau, tomate e feijão, é encabeçada, evidentemente, pelo milho, cuja notável diversidade genética dos cultivares meso-americanos a Monsanto está tratando hoje de eliminar, por meio de seu milho transgênico com patente “made in USA”. Não apenas o milho, mas sobretudo a batata, levada dos Andes pelos europeus, produzem muito mais calorias por hectare plantado que o trigo, nascido na Mesopotâmia e levado para a Europa. O cultivo desse tubérculo, rapidamente estimulado e expandido no Velho Continente, foi responsável por eliminar a fome endêmica e medieval da Europa, e constituir a base demográfica sem a qual a Revolução Industrial não teria sido possível e, com ela, a nossa arrogante modernidade.
Por trás da domesticação dos tubérculos nos Andes há um enorme conjunto de ideias sobre como a mãe-terra gera seus frutos, como o trabalho comum os recolhe, como eles podem ser acumulados e conservados, e como devem ser distribuídos. À época da Conquista, os indígenas dos Andes eram muitíssimo mais bem nutridos e saudáveis que os europeus. Diante dessa diferença evidente, estes últimos aproveitaram apenas um produto específico, o que, para eles, já foi muito. Há quem acredite que o socialismo e o Estado do bem-estar social teriam sido inventados alguns séculos antes se os europeus, além das batatas, tivessem levado as ideias.
Apostar nos índios, e portanto na diversidade cultural, como nosso futuro comum de não-alheamento, não significa meramente apostar que a erva de algum pajé possa trazer a cura para o câncer. Expor nossas ideias ao contato com outras visões de mundo pode nos curar de coisas muito piores: nossos próprios e mesquinhos limites.
Quando comentávamos antes que o militantismo ecologista, ao trazer intuitivamente os índios à baila, acabou descuidando do que eles poderiam pensar a respeito da “nossa” natureza ― apenas para servirem ao que nós continuamos a pensar dela e da sua “preservação” enquanto objeto ―, sugeríamos também que a recusa, por parte dos índios, à sumária objetificação dessa “natureza” corresponde ao reconhecimento dela, por eles, como sujeito de uma relação. Conceitos como animismo, perspectivismo e multinaturalismo (por oposição a multiculturalismo) vêm sendo testados pelos antropólogos para descrever o sentido da socialidade indígena na Amazônia e a sua maneira de reconhecer os agentes das relações. Esse fenômeno, no entanto ― como tentamos demonstrar em nossas pesquisas nos Andes ―, pode, na realidade, se constituir como um traço ameríndio generalizado, continental. E o que ele desafia não é apenas a nossa forma de relação com uma “natureza” dada, mas sim a forma como nós a conceituamos, para, em seguida, nos sentirmos à vontade para subjugá-la, a partir de uma relação sujeito-objeto em que a extensão do uso e da posse (a simples destruição incluída) se define pelos casuísmos de uma racionalidade instrumental.
Se aquele tipo de perspectiva sobre a socialidade tem uma incidência efetivamente ameríndia, continental, e se a dimensão do seu desafio pode e deve ser posta em larga escala, então quem nos manda o recado político é o movimento indígena equatoriano, que inspirou em boa medida a elaboração da última Constituição do país, referendada em 2008. Nela, pela primeira vez no mundo, a Natureza foi reconhecida como sujeito jurídico de direito, para que em seu nome e da sua integridade, seja defendida como parte interessada em qualquer ação judicial visando garantir sua “existência, manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos” (Art. 71). Talvez seja ocioso se prender a emblemas ou ressentimentos étnicos: se essa Natureza corresponde tão somente, ou não, à Pachamama, a mãe-terra dos andinos, tal como explicitamente a nomeia o mesmo artigo 71… Estamos, antes, em um terreno de fecundas heterogeneidades discursivas, no terreno do desafio das ideias. E é aí que se fazem as grandes apostas no futuro, porque é isso que, para o bem ou para o mal, com a lista de Diego Rivera e muitas outras, e também com toda a precariedade das experiências, constituiu o Novo Mundo.
O desafio posto pelo pensamento ameríndio de reconhecer a socialidade como espaço de interação necessária de muitos sujeitos, que faz o mundo girar não por conta de alguma hierarquia natural ou do imperativo de marcas de origem que definem privilégios, mas por conta das diferentes maneiras de vê-lo e de tecer acordos, nos sugere que viver em não-alheamento significa reconhecer que o Outro é, inescapavelmente, parte de qualquer consideração que se faça sobre si mesmo. Como já o enunciava, bela e sinteticamente, o professor Eduardo Viveiros de Castro, “para os ameríndios, o Outro não é apenas pensável, ele é indispensável”. Talvez não tenhamos lição melhor, para começarmos a repensar seriamente o que possamos entender por cidadania, em um contexto flagrado por iniquidades; um contexto que não será reformado se se insistir apenas no polo da objetificação alheadora, no fetiche da mercadoria e, em último termo, na dispensabilidade dos outros.
Não se trata de opor um fantasioso “espiritualismo” indígena a um materialismo ocidental “realista”. Trata-se de desafiar um certo regime de socialidade (o nosso, ocidental e moderno) com outras ideias, disposições e possibilidades. Algumas delas é bem provável que até já tenhamos aprendido inconscientemente, ao longo de nossa história cultural, afinal o território mais largo da cultura, a parte submersa desse iceberg, é, como também dizia Lévi-Strauss, esse inconsciente. Os índios que os portugueses aqui encontraram, com quem conviveram e que permanecem no (apenas aparente) subterrâneo das nossas mestiçagens, não legaram aos brasileiros de hoje simplesmente tapioca, rede de dormir e outras coisas. Legaram-nos também um modo de nos relacionarmos quotidianamente, que, muito diferente dos europeus, não parte do princípio do reconhecimento do lugar social e pertencimento de alguém sempre e necessariamente pelas suas marcas de origem ― algo que tanto prezam nossas elites senhoriais, que se querem mais “europeias”. Se os brasileiros aprenderam a se abrir cordialmente aos outros, digeri-los e abrasileirá-los como parte de um nós possível (ainda que muitas vezes perverso e hierárquico ― mas a hierarquia não é, com certeza, um legado indígena), isso seguramente não foi aprendido dos europeus.
E se se trata ainda de desafiar um certo regime de socialidade com outras ideias, disposições e possibilidades, então, levar a sério o não-alheamento diante da diversidade significa garantir aos muitos da cidadania um lugar ativo, ouvi-los mais detidamente e deixar-se desafiar pela possibilidade da invenção, pela potencial complicação do que parece já estar dado pelas nossas formas institucionais, recusando a simples tentação de domesticá-los às formas prévias, a uns quantos programas assistenciais, quotas e representações de fachada. Afinal de contas, o que é, por exemplo, o ideal político do “Buen Vivir” (ou, em quéchua, “Sumaq Kausay”), alentado pelas novas disposições constitucionais do Equador e da Bolívia, senão uma enorme complicação para a planura desenvolvimentista; uma complicação ainda a reclamar um ou vários Amartya Sen para lhe inventar indicadores por agora imponderáveis? Mas, e o que é também o ideal político do “Buen Vivir” senão um desafio em nome da “imanência da suficiência”, dos índios, contra a voraz e predatória “transcendência da necessidade”, do Ocidente capitalista, de que nos falava Eduardo Viveiros de Castro [1]?
Talvez seja também preciso dizer que encarar seriamente a opção do não-alheamento significa, com bastante probabilidade, molestar alguns lugares comuns tidos hoje como “politicamente corretos”, e que são aqueles tributários do multiculturalismo neoliberal, quais sejam, suas obsessões com fronteiras bem acabadas, identidades amuralhadas e os contratos de patrimonialização. Os verdadeiros diálogos não se realizam sobre a prévia domesticação dos seus termos por gramáticas unilaterais ― ou uma pretensa universalidade habermasiana. Eles não são uma mera exibição de emblemas, para marcar posição dentro de um mercado contratualista ― ou uma economia contratualista da alteridade. Os verdadeiros diálogos são aqueles em que nos “contaminamos” e nos arriscamos com as razões de ser dos outros. Os pós-estruturalistas talvez tenham nisso razão ao usarem o termo “devir”.
A Constituição brasileira de 88 consagrou os direitos coletivos indígenas como base positiva do direito à reprodução cultural. Sequestrar os primeiros é também sequestrar este último. O que perdemos todos com isso é mais do que uma diversidade meramente nominal, a diversidade passiva do multiculturalismo objetificador. Estaremos perdendo possibilidades de cidadania. E estaremos perdendo possibilidades de futuro. Pois é aí, e não num passado romântico ou instrumentalmente ecológico, que os índios deveriam sobretudo ser vistos.
[1] http://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa/o-brasil-e-grande-mas-o-mundo-e-pequeno

Thursday, 14 May 2015

Comuna de Paris: rebelde, polêmica e… atual

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Comuna de Paris: rebelde, polêmica e… atual

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Livro recém-lançado nos EUA sugere: rebelião antecipou, há 144 anos, visões contemporâneas sobre Arte e Ecologia. Diferenças entre marxistas e anarquistas eram menores que se pensa 
Kristin Ross, entrevistada por Manu Goswami, na Jacobin Magazine | Tradução Vila Vudu
Em 18 de março de 1871, artesãos e comunistas, trabalhadores e anarquistas, tomaram a cidade de Paris e estabeleceram a Comuna. Esse experimento radical de autogoverno socialista durou 72 dias, antes de ser esmagado num massacre brutal que estabeleceu a 3ª República francesa. Mas socialistas, anarquistas e marxistas nunca deixaram de discutir o significado daquela ação.
Kristin Ross, em seu novo livro, o poderoso Communal Luxury: The Political Imaginary of the Paris Commune [O luxo da Comuna: imaginário político da Comuna de Paris], expõe com máxima clareza os debates acumulados sobre a Comuna, os quais, como ela diz, calcificaram falsas polêmicas: anarquismo versus marxismo, camponês versus operário, terrorismo jacobino revolucionário versus anarco-sindicalismo e assim por diante.
Agora que a Guerra Fria acabou e o Republicanismo francês está exaurido, argumenta Ross, podemos afinal livrar a Comuna dessa esclerose. Essa emancipação pode, por sua vez, revitalizar a esquerda contemporânea para agir e pensar sobre os desafios de hoje. Nenhum trabalho especifica mais completamente o que disse Marx, para quem a maior conquista da Comuna de Paris foi sua “existência real em operação”. A seguir, sua entrevista.
Seu livro reencena a Comuna de Paris para nossos tempos. Por que o movimento é um recurso para pensar as demandas do presente?
Kristin Ross – Fico contente que você tenha escolhido “recurso”, em vez de “lição”. Em geral as pessoas insistem em que o passado nos daria lições, ou ensinaria que erros evitar. A literatura em torno da Comuna é cheia de palpites, de engenheiros de obra feita, de gente que goza ante a lista de erros: ah, se os Communards tivessem feito isso ou aquilo, saqueado dinheiro do banco, marchado sobre Versailles, feito a paz com Versailles, se se organizassem melhor, aí, sim, teriam sido bem-sucedidos!
TEXTO-MEIO
Para mim, esse tipo de superioridade teórica post-fato é, ao mesmo tempo, estúpida e profundamente a-histórica. Nosso mundo não é o mundo dos Communards. Quanto mais cedo compreendermos esta diferença, tanto mais fácil será perceber os pontos nos quais o mundo deles é, de fato, muito próximo do nosso – mais próximo de nós, talvez, que o mundo da geração dos nossos pais.
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O modo como vivem hoje as pessoas, particularmente os mais jovens, assemelha-se muito à instabilidade econômica enfrentada pelos operários e artesãos do século 19, que fizeram a Comuna. Muitos deles passavam mais tempo em busca de trabalho do que propriamente trabalhando.
Depois de 2011, com a volta virtualmente em todos os lugares, de uma estratégia política baseada em tomar espaços, ocupar locais e territórios, converter cidades inteiras – de Istanbul a Madrid, de Montreal a Oakland – em teatros para operações estratégicas –, a Comuna de Paris voltou a ser visível, como se recebesse nova iluminação, entrou novamente na figurabilidade do presente.
Suas formas de invenção política tornaram-se novamente viáveis para nós — não como lições, mas como recursos, ou como o que Andrew Ross, ao comentar meu livro, chamou de “um arquivo usável”. A Comuna tornou-se imagem para uma história, e talvez para um futuro — diferente dos rumos que a modernização capitalista tomou; e, por outro, dos caminhos que o Estado socialista utilitário seguiu.
É um projeto que, creio, muita gente partilha hoje, e o imaginário da Comuna é central para aquele projeto. Por essa razão, tentei, no livro, pensar sobre a Comuna ao mesmo tempo como pertencente a nosso passado e como uma espécie de abertura do campo dos futuros possíveis, em meio a nossas atuais lutas.
O luxo comum (fr. le luxe communal) foi slogan da seção dos artistas da Comuna e dá título ao seu livro. Você pode nos falar sobre a gênese dessa expressão?
Diferente de “a república universal”, “o luxo comum” não foi um dos slogans retumbantes da Comuna. Encontrei a expressão metida na última frase do manifesto que artistas e artesãos produziram sob a Comuna, quando se auto-organizavam numa federação. Para mim tornou-se uma espécie de prisma pelo qual refratar várias invenções e ideias chaves da Comuna de Paris.
O autor da expressão, o artesão de artes decorativas Eugène Pottier, é mais conhecido até hoje como autor de “A Internacional”, composto ao final da Semana Sangrenta, antes de o sangue dos massacres ter secado nas calçadas. O que ele e outros artistas queriam dizer com “luxo comum” era alguma coisa como um programa de ação para “beleza pública”: melhoria de vilas e cidades, o direito de todas as pessoas viverem e trabalharem em ambiente agradável.
Pode-se ver aí uma demanda pequena, talvez mesmo só “decorativa”. Mas de fato implica não só completa reconfiguração da nossa relação com a arte, mas também com o trabalho, as relações sociais, a natureza e o ambiente vivido. Significa mobilização total na direção das duas palavras de ordem da Comuna: descentralização e participação. Implica arte e beleza desprivatizadas, plenamente integradas na vida diária, não escondidas em salões privados ou centralizadas numa monumentalidade nacionalista obscena.
Os recursos e realizações estéticas de uma sociedade não mais tomariam, como osCommunards mostraram em atos, a forma do que William Morris chamou de “aquela peça básica da estofaria napoleônica”, a Coluna Vendôme. Na pós-vida da Comuna, no trabalho de Elisée Reclus, Morris e outros, mostro como a demanda de que a arte e a beleza florescessem na vida quotidiana continha as ideias chaves do que hoje chamaríamos de desejo “ecológico”, e que pode ser percebido na “noção crítica de beleza” de Morris, por exemplo; ou na insistência de Kropotkin sobre a importância da autossuficiência regional.
Nas suas fronteiras de alcance mais especulativo, “o luxo comum” implica um conjunto de critérios os sistemas de valorização diferentes do que o mercado fornece, para decidir o que uma sociedade valoriza, o que considera precioso. A natureza é valorizada não como um estoque de recursos, mas como fim em si mesma.
Seu livro estende a vida da Comuna aos trabalhos de Kropotkin e do socialista britânico William Morris, dentre outros.
É muito fácil deixar-se tomar, num transe de horror, pelo que Flaubert chamou de a “goticidade” da Comuna, expressão pela qual espero que ele tenha querido referir-se aos horrores da Semana Sangrenta, ao massacre de milhares que levou ao fim da Comuna. De modo algum minimizo o significado do massacre. De fato, vejo aquela espantosa tentativa, pelo Estado, de exterminar um a um e em massa seus inimigos de classe, como o ato de fundação da 3ª República.
Mas me ocupei mais em documentar o que, para mim, seria o prolongamento da Comuna – o modo como o pensamento communard continuou a ser elaborado depois do fim da Semana Sangrenta, com sobreviventes da Comuna exilados reunindo-se e trabalhando juntos com os apoiadores que você mencionou – camaradas de uma mesma viagem, para quem os eventos da Comuna haviam alterado profundamente o que Jacques Rancière chamaria de “a distribuição do sensível”.
Descrevo como a onda de choque produzida pela Comuna e as discussões e a sociabilidade que se seguiram, com os que sobreviveram à Comuna, mudaram os métodos desses pensadores, as questões sobre as quais se debruçavam, os materiais que selecionavam, a paisagem intelectual e política que mapearam para si mesmos – em resumo, o caminho deles. Essas ondas imediatas de pós-choque são a continuação da luta, por outros meios. São parte do excesso do evento, e são tão absolutamente vitais para a lógica de qualquer evento, como as ações iniciais pelas ruas.
Talvez a maior modificação possa ser detectada na trajetória de Marx, depois da Comuna – uma mudança que assume a forma paradoxal tanto de um fortalecimento de sua teoria como de uma ruptura com o próprio conceito de teoria. A Comuna mostrou muito claramente, aos olhos de Marx, que as massas não só modelam a história como também, ao modelá-la, transformam o presente e também transformam a própria teoria. Isso, de fato, é o que Henri Lefebvre tinha em mente, quando falou da “dialética do vivido e do concebido”.
O pensamento e a teoria de um movimento só são desencadeados com o movimento e depois do movimento. São as ações que criam os sonhos, não o contrário.[1]
Piotr Kropotkin, Elisée Reclus e William Morris estavam, como você argumenta em seu livro, preocupados em mobilizar as “energias do antigo”, associadas a formas pré-capitalistas e não capitalistas, com o potencial radical de práticas emergentes
Não só esses, mas também Marx era preocupado com a existência, “anacrônica” em seu próprio tempo, de formas e modos de vida pré-capitalistas.
O destino das obshchina, aquelas formações agrárias comunitárias russas, que perduraram por séculos, foi importante foco das preocupações dos socialistas ocidentais. O desafio teórico que tomou forma depois da Comuna girava em torno da questão de uma forma-comuna revitalizada: como pensar juntas (a) a espantosa insurreição que aconteceu numa grande capital da Europa e (b) a persistência daquelas antigas formas comunistas no campo.
Esses pensadores eram todos extremamente atentos ao que se pode chamar “fissuras no tempo” – momentos nos quais a ininterrupta continuidade da modernidade capitalista parece rachar-se e abrir-se como um ovo. Historiadores em geral temem o anacronismo como o maior erro possível. Tendem, por exemplo, a desconsiderar o interesse de Morris pela Islândia de seu tempo, e pelo passado medieval da Islândia, como se fosse nostalgia obcecada. Morris foi, realmente, capaz de ver formações pré-capitalistas e modos de vida como os que haviam florescido na Islândia medieval como  passados, parte da história, e, ao mesmo tempo, como figuração de um futuro possível.
Isso é sinal, na minha opinião, não de nostalgia, mas de um modo de pensar profundamente historicizado. Sem isso, não temos como pensar a possibilidade de mudança, nem de viver o presente como algo contingente e sem desfecho conhecido.
__________
* De um artigo sobre o mesmo livro, pela autora, em francês, no Le Monde Diplomatique, maio 2015.  As duas epígrafes foram acrescentadas pelos tradutores [NTs].
[1] O prof. Mangabeira Unger, em Conhecimento e Política, ensina que “a esperança é consequência da ação, não é causa dela”. A mesma lição-recurso de pensamento aparece em entrevista que concedeu à Revista Caros Amigos em 1999. É a mesma ideia progressista que se lê acima [NTs].

Wednesday, 13 May 2015

Destrinchando Liu Arruda e o Gambiarra

http://www.tyrannusmelancholicus.com.br/cronicas/5764/destrinchando-liu-arruda-e-o-gambiarra


DOUTOR IVAN

Destrinchando Liu Arruda e o Gambiarra


Uma performance teatral bem humorada evocou as estripulias do espevitado Liu Arruda e do Grupo Gambiarra
O grande amigo e parceiro de trabalho de Ivan Belém era uma daquelas “pestes” que vivia pregando peças no companheiro de palco teatral. Certo dia aquela pessoa talentosa que marcou a história de Cuiabá e a vida de Ivan ficou doente e morreu. Todos os dias quando Ivan estacionava seu carro na garagem de casa, se preparava para o susto que poderia vir ao descer e ser surpreendido com mais uma peça que Liu Arruda lhe pregaria.

“Porque ele não era desse mundo, e agora literalmente, ficava pensando que se vivo me dava cada susto, imagina se viesse em espírito, então eu já estava preparado”, contou Ivan, com nostalgia e gargalhadas que marcaram a apresentação da tese de Doutorado na Academia Mato­Grossense de Letras (AML) na noite da última terça­feira (12/05).

Liu Arruda e Meire Pedroso em ação nas ruas cuiabanas, nos anos 80. Uma foto embaçada pelo tempo... e pela precariedade deste fotógrafo
Com uma plateia de mortais e imortais, o ator, historiador e agora doutor, Ivan Belém, imortalizou a memória do “bufão” cuiabano Liu Arruda por meio de um trabalho de pesquisa que resultou na tese “Liu Arruda: A travessia de um bufão cuiabano sob inspiração de Augusto Boal”, orientado pela professora Michèle Sato do Programa de Pós Graduação em Educação Ambiental da UFMT.

Além de trazer uma análise sobre o trabalho de Liu Arruda nos palcos e nas ruas com sua sátira a aspectos da cultura local, Ivan ainda apresentou um registro histórico sobre a trajetória do Grupo de Teatro Gambiarra o qual foram, ele e Liu, fundadores. A apresentação foi marcada por intervenções teatrais de alguns nomes de peso para as artes cênicas de Mato Grosso, como: Vital Siqueira, Luiz Carlos Ribeiro e Meire Pedroso.

O sentimento e o conceito da expressão “cuiabania”, seja ele da parte da elite cuiabana, ou das populações menos abastadas - como os ribeirinhos, permeou a fala de Ivan que, ao final, respondeu inúmeras perguntas da plateia. Não faltou o toque emocional que deve ter acometido a todos os presentes. Alguns se manifestaram com espontaneidade, destacando o amor à terra e evidenciando orgulho de ser e/ou estar cuiabano.

Foi um momentos histórico para a Academia Mato-grossense de Letras, assim como também na UFMT – outra Academia, quando a tese ali foi defendida. Quando uma manifestação popular que teve seu embrião nas ruas invade as portas de academias com a devida licenciosidade, quem ganha é a população e a cultura de uma sociedade secular. Valeu, Ivan!!!
Ao final, muitas e muitas fotos e alegria. O evento não deixou de ser também, uma ação entre amigos
O presidente da AML, Eduardo Mahon; Teresinha Arruda, autoridade cultural de MT... e Ivan
Um bom público compareceu e tudo leva a crer que quem foi, curtiu bastante



ABAIXO, imagem e chamada publicadas na capa na edição original deste texto

uma noite agradável e cheia de emoções, para além das quatro paredes que qualquer academia sugere. Foi assim que os escritos acadêmicos para a UFMT, desse sujeito ao lado, o do centro do trio, foram apresentados numa segunda academia, a de Letras de MT, na terça-feira. E o Tyrannus estava por lá em dose dupla, o que quer dizer que a crônica desta edição foi escrita a quatro mãos. E registramos com gosto o lance de uma manifestação artística popular, que se tornou uma tese acadêmica...
Lúcia Palma, Ivan Belém e Luís Carlos Ribeiro... Os Crônicos, grupo teatral capitaneado pela imortal Marília Beatriz