Sub-projeto 5.1.3 – Avaliação Ecossistêmico do Milênio
A TEMPORALIDADE PANTANEIRA
Relatório de Campo: Lucia Shiguemi Izawa Kawahara
Atualmente, a formação de uma consciência da intrínseca
relação que o ser humano tem com o seu habitat e o impacto desta interligação
na qualidade de vida das pessoas e do ecossistema tem sido buscado no mundo
inteiro. Tais conexões são objetos de
pesquisas e debates socioambientais consistindo em pauta das principais
discussões políticas em âmbito global. Como
exemplo, podemos citar a Avaliação Ecossistêmica do Milênio – AEM coordenada
pela Organização das Nações Unidas – ONU, publicada em 2005, cujos resultados
demonstram a preocupante situação da degradação ambiental e os riscos aos seres
humanos.
Neste abril de 2013 o Grupo Pesquisador em Educação
Ambiental, Comunicação e Arte da Universidade Federal de Mato Grosso
(GPEA/UFMT) retornou ao Pantanal de São Pedro de Joselândia, tendo a
oportunidade de experienciar momentos de significativa aprendizagem sobre a
importante relação que o ser humano tem com o seu habitat e a qualidade de vida
que esta interligação proporciona aos seus habitantes.
Figura
1
– “Menino Pantaneiro” (fotos do arquivo GPEA – Lucia Kawahara)
Exatamente há um ano, em março de 2012, pudemos participar da
expedição de pesquisa neste mesmo grupo e agora, eis que voltamos às mesmas terras
pantaneiras e desfrutamos de momentos de reflexões sobre a diferença de temporalidade
que constrói hábitos em diálogo com o habitat, influenciando os habitantes de
forma indissociável.
O presente relatório se ancora na minha própria vivência como
moradora de um centro urbano, acometido por todos os percalços das reformas de
uma cidade que se prepara para a Copa do Mundo e simultaneamente, a experiência
desta pesquisadora que vivenciou a imutável tranquilidade de São Pedro de
Joselândia. A narrativa buscará
apresentar que, no exato período de um ano, existe de um lado, os desajustes causados
pela temporalidade dominante do capital na cidade de Cuiabá que se prepara para
a imanente festa do futebol e, do outro, o cotidiano da vida dos moradores da
comunidade pantaneira que revelaram a serenidade do conhecimento tradicional para
organizarem também uma grande festa, do santo padroeiro que dá nome ao lugar,
mas estes sabem dialogar com o ambiente em que vivem sem agredir o seu bem
estar.
O indicador de tempo passado, um ano, é uma mensuração que
nos servirá de base para construir e compreender esta diferente temporalidade
que nos fez entender as principais marcas da distinção entre a vida urbana e a
pantaneira. Esta delimitação temporária nos serve de base para narrarmos a
compreensão da importância de alguns valores que perdemos na frenética vida
citadina. Comungando com Ricoeur (2010), o período de um ano facilitará a
reflexão sobre os aspectos que nos fazem apreender algumas importane dimensões
esquecidas na vida moderna, pois o tempo só se torna humano através da
narrativa.
A capital de Mato Grosso foi eleita como cidade-sede dos
jogos da Copa do Mundo de Futebol 2014, com a bandeira “Copa do Pantanal”.
Atualmente, Cuiabá está se preparando para mostrar-se ao mundo e atender às
exigências das instituições organizadoras como forma de expressar o sucesso e a
prosperidade desta cidade. Pela mídia, principalmente, ouvimos muitos cidadãos
cuiabanos acreditarem que tal oportunidade em mobilizar recursos poderá
desencadear transformações e crescimento econômico na urbe. No entanto, a mídia
não dá oportunidade para grupos de cidadãos pronunciarem sobre as questões socioambientais
derivadas dessas transformações. A maioria dos moradores está cega às injustiças
socioambientais e assim, continuamos aceitando as mazelas da reforma do redesenho
urbano.
Figura 2 - Obras da Copa em Cuiabá (fotos
do arquivo GPEA – Lucia Kawahara)
Não cabe neste relatório discutirmos sobre os conhecidos problemas
causados pelos megaeventos como as Copas e Olimpíadas, ou ainda sobre as
violações dos direitos humanos das populações mais carentes, bem como os
impactos que sempre recaem com maior carga sobre os excluídos da nossa
sociedade. No entanto, ressaltamos que o
presente contexto tem causado extremo desgaste e desconfortos diários aos
moradores desta cidade, certamente atingindo a qualidade de vida de todos os moradores
de Cuiabá. Sem mencionar a incerteza e
insegurança de que tais transtornos não terão resultados almejados para a data
da referida Copa, em junho de 2014.
Ao retornar às terras pantaneiras, percebemos que São Pedro
de Joselândia também está se preparando para o maior evento coletivo desta
localidade: a Festa de São Pedro. No entanto, nesta comunidade observamos que continuava
reinando a mesma tranquilidade e segurança sentida no ano anterior. Este contexto nos levou a refletir o quanto na
cidade de Cuiabá nos tornamos escravos da lógica do mercado, patrolados,
esmagados e sujeitos à nos submetermos à temporalidade ditada pelo
desenvolvimento econômico (PASSOS, 2005) que impõe limites cronológicos alheios
às necessidades reais, anseios locais e participação coletiva para a edificação
de sociedades democráticas e sustentáveis.
Longe de estabelecer o juízo comparativo entre a cidade
(lócus onde moram os pesquisadores deste grupo) e o pantanal (lócus onde mora a
comunidade de São Pedro de Joselândia), teceremos reflexões sobre a
aprendizagem da importância do respeito à temporalidade local que pode apontar identidade
e cultura reveladoras de possíveis alternativas de sustentabilidade (SATO,
2002).
Nosso roteiro de pesquisa nesta viagem além da observação
participativa, incluiu também uma participação na oficina da “Formação Continuada: Educação do Campo e
Educação Ambiental” da Escola
Estadual Maria Silvina Peixoto de Mouranos nos dias 05 e 06 de abril, no
qual pudemos estabelecer uma conversação com os moradores sobre a nossa
pesquisa. Além da oficina, realizamos
entrevistas com ex-festeiros que nos revelaram como se preparam para o grande
evento anual de São Pedro de Joselândia. Apresentamos aos educadores da
escola sobre a Avaliação Ecossistêmica do Milênio - AEM e realizamos um
exercício com a metodologia da AEM para avaliar quais relações existiriam entre
as Festas Santas e os Serviços Ecossistêmicos.
Figura
4
–reunião com os professores (fotos do arquivo GPEA – Lucia Kawahara)
A Festa de São Pedro pode ser avaliada como um grande
evento, considerando o porte desta comunidade, pois reúne nestes três dias, um
número aproximado de visitantes dez vezes maior do que o número de seus
moradores. Apesar de alguns itens da gastronomia ser comprada na cidade, toda
infraestrutura e a maior parte da alimentação procede diretamente das terras de
São Pedro de Joselândia. A festa,
portanto, no nosso entender, consiste em um Serviço Ecossistêmico Cultural
pelas características da indissociabilidade do ritual com o ambiente local
(AEM) como podemos conferir na tabela que se segue.
Tabela 1 - Lista de Serviços
Ecossistêmicos utilizadas nas Festas Santas
Organização e Estrutura
|
Serviços de Provisão, Suporte, Regulação
|
|
Gastronomia
|
REFEIÇÕES
(Quebra
Torto, Almoço, Churrasco, janta)
pão,
biscoito, francisquito, leite, café, queijo, guaraná, sarapatel, revirado de
carne, arroz, chá, bolo (milho, polvilho)
bolo
de arroz, arroz, feijão, mandioca, macarrão, salada de repolho com tomate,
vai-vem de carne, ossada, rabada, costela, churrasco, farofa, maionese, etc)
|
1.
Água
2.
Arroz
3.
Carne de vaca (miúdos para o café da manhã; menos nobre picado para o
almoço; parte nobre assado para o churrasco)
4.
Carne de porco
5.
Carne de galinha
6.
Feijão
7.
Leite
8.
Mandioca
9.
Ovo
10. Farinha de mandioca
11. Manteiga/margarina
12. Queijo
13. Polvilho
14. Milho
15. Vinagre caseiro
|
Doces (leite,
mamão, laranja, caju, goiaba, figo, rapadura)
|
leite
16. Mamão
17. Laranja
18. Banana
19. Limão
20. melado
21. goiaba
|
|
suco
|
Água
(existem diversas frutas,
no entanto não são utilizados nas festas)
|
|
Licor
|
Leite
|
|
Ritual Religioso + Baile
|
Mastro/
Bandeira
|
22. Pau de Formigueiro
|
Procissão,
missa, reza com Cururu
Viola de cocho, Ganzá, Mocho
|
23. Madeiras
24. Taquara
25. Couro
|
|
Estrutura/decoração
|
Churrasqueira
|
26. Lenha
27. Suportes
28. Espetos
29. Cobertura da palha de Acuri
30. Base da churrasqueira e
forno- buraco na terra e argila/barro
|
Forno
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Argila da estrutura
Lenha
|
|
Mesas e
bancos
|
31. madeira
|
|
Fogão
|
Lenha de catingueiro
32. Argila para estrutura
33. Tacuru
|
|
Pia e
banheiro
|
Agua
|
|
Alojamento,
barraquinhas, empalizado , Xaria (almoxarifado),rancho
|
34. Taquara,
35. Cipó – Tripa de Galinha
Palha de Acuri,
Madeira
|
|
Bandeirolas,
flores, fitas
|
36. Palmeiras decorativo
37. Bananeiras
38. Flores
|
Além
do diálogo coletivo com os educadores que elaboraram a lista da tabela acima,
realizamos entrevistas com alguns ex-festeiros da comunidade. A organização da festa é realizada em
consonância com o tempo das águas e da seca, uma aprendizagem coletiva alcançada
há gerações. O Sr. Benedito Paulino da
Silva (86 anos) é um exemplo da tradição mantida por três gerações de festeiros
em sua própria família, o seu pai e seu filho, tal qual ele próprio. O Sr. Benedito afirma orgulhosamente que
quando ajudou o seu pai a organizar a festa, já desejava ser festeiro:
“O meu pai já foi festeiro e eu já era casado
e eu tinha já uma filha e pensei: quando afirmar minha casa, eu quero fazer a
festa para São Pedro.” (Sr. Benedito Paulino da Silva, 86 anos,
ex-festeiro).
Figura
5
- Sr. Benedito Paulino da Silva, 86 anos, ex-festeiro (fotos do arquivo GPEA – Lucia
Kawahara)
A organização das festas em São Pedro de
Joselândia é uma das formas diferenciada da lógica globalizada do capitalismo, distinta,
por exemplo, da organização de uma Copa que ocorre em Cuiabá. As festas tradicionais do pantanal possuem uma
estrutura sociocultural de solidariedade, coletividade, honra e cumprimento dos
compromissos. Em São Pedro de
Joselândia, o acordo social e as
práticas organizacionais das festas revelam um tradicional laço pantaneiro de
fundamental importância na manutenção do orgulho e das relações comunitárias da
localidade (GEERTZ, 2001; PASSOS, 2010).
Figura 6 - Sr. Gonçalo e D. Maria festeiros
tradicionais de São Pedro (fotos do arquivo GPEA - Lushi)
“Aqui
sempre foi assim. É a tradição. E tradição do lugar tem que fazer. É assim, São
Pedro já ganhou vinte bezerros, aqui é assim, tudo é de graça. O importante é o
povo ser bem tratado sempre.” (Sr. Gonçalo dos Santos – 52 anos,
festeiro da Festa de São Pedro de 2013).
Apesar de alguns
moradores começarem a fazer respeitáveis ponderações sobre a necessidade de
repensar o exagero no consumo de alimentos e bebidas durante as festas, muitas
vezes, acarretando em desperdícios que precisam ser discutidos no bojo da
comunidade, todos concordam que a festa é uma forma de manter a alegria e
garantir a continuidade das bênçãos de São Pedro sobre a comunidade.
Segundo
os entrevistados, as festas de São Pedro de Joselândia concebem uma identidade
cultural comunitária, pois elas representam a coletividade, constitui ritual em
que gerações foram e são envolvidas. Neste
aspecto, portanto, concordamos com Hall (2006, p. 71): “Todas as identidades
estão localizadas no espaço e nos tempos simbólicos.” (2006, p. 71). Aprendemos
que as festas significam momentos de confraternização e fortalecimento dos
laços comunitários e assim, reafirmando a importância da valorização da
identidade e da cultura local como requisitos necessários à construção do
orgulho e da vontade de conservar a territorialidade. Percebemos que tais momentos estão
enfraquecidos, por exemplo, na atual preparação da Copa em nossa capital.
CUIABÁ, 14/04/2013
4 comments:
Parabéns pelo belo relato Lushi!
Aprendo muito com vc!!!
grande beijo
Parabéns Lushi
gostei muito!
um beijo grande
Parabéns Lushi,
Lendo e aprendendo... Bjs!
Rita Aleixes
Parabéns Lushi,
Lendo e aprendendo com vc. Bjus
;)
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