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http://acasadevidro.com/2012/06/05/so-morto-nao-tem-outro-reflexoes-antropologicas-de-eduardo-viveiros-de-castro/
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“Só morto não tem outro” – Reflexões antropológicas de Eduardo Viveiros de Castro
QUER MAIS? >>> No Depredando o Orelhão, leia o que diz Viveiros de Castro sobre cibercultura e criação, Creative Commons e copyright, Robin Hood e Antropofagia… Aqui.
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“Pôr em xeque a supremacia do pensamento ocidental-moderno fazendo-o experimentar outras ontologias, outras epistemologias e também outras tecnologias.” Esta é, segundo Renato Sztutman, organizador do excelente livro Encontros (Azougue Editorial, 254 pgs, R$29,90), uma das intenções das reflexões antropológico-sociológico-políticas de Eduardo Viveiros de Castro. Inspirando-se em fontes tão variadas como o Movimento Tropicalista dos anos 1960, a Antropofagia de Oswald de Andrade, a literatura de Guimarães Rosa, a análise filosófica de Deleuze e Guattari, as teorias revolucionário-baderneiras de Hakim Bey, sem falar num punhado de outros antropólogos (Lévi-Strauss, Roy Wagner, Marilyn Strathern…), Viveiros de Castro é um dos estandartes na resistência atual “contra a sujeição cultural na América Latina aos paradigmas europeus e cristãos” (Sztutman).
Mais de 30 anos atrás, quando começou a estudar antropologia, Viveiros de Castro rememora: “naquela distante época estávamos sendo acuados pela geopolítica modernizadora da ditadura – era o final dos anos 1970, que nos queria enfiar goela abaixo o seu famoso projeto de ocupação induzida (invasão definitiva seria talvez uma expressão mais correta) da Amazônia”. Um dos esforços deste antropólogo, desde então, foi revelar a complexidade e riqueza dos povos indígenas latino-americanos, com a constante preocupação em “conceber todo nativo em sua capacidade de fabricar teorias sobre si e sobre outrem”, como diz Sztutman. O conceito de “perspectivismo ameríndio”, que caracterizaria o jeito indígena de conceber a realidade, visa nos abrir os olhos para outro modo de perceber o real, uma perspectiva nas antípodas do cartesianismo/positivismo tão típico do nosso Ocidente.
Por ”perspectivismo ameríndio” ele se refere à “concepção indígena segundo a qual o mundo é povoado de outros sujeitos, agentes ou pessoas, além dos seres humanos, e que vêem a realidade diferentemente dos seres humanos” (p. 32). “Uma das teses do perspectivismo é que os animais não nos vêem como humanos, mas sim como animais” (p. 35), aponta Viveiros de Castro. Por exemplo: para os homens, as onças no mato são apenas animais, “bestas”, “feras”; mas para as onças no mato, os homens é que não passam de bichos (e de carne sedutoramente suculenta). E na perspectiva dos urubus, a carniça… é um delicioso peixe-assado. Viveiros de Castro, com aquilo que aprendeu morando e convivendo com os índios da Amazônia, nos convida a olhar o mundo como eles o fazem: concebendo uma multiplicidade de consciências que se esparramam por toda a paisagem do real, sendo que cada animal teria uma tendência a fazer de sua perspectiva uma espécie de “centro-do-mundo”, de conceber-se como “subjetividade” e objetificar o outro.
Em muitos mitos indígenas, deparamos com a noção de que os animais são criaturas que foram humanas um dia. “Tal humanidade pretérita dos animais nunca é esquecida, porque ela nunca foi totalmente dissipada, ela permanece lá como um inquietante potencial – justo como nossa animalidade “passada” permanece pulsando sob as camadas de verniz civilizador” (p. 36). Donde emergem frases, aparentemente absurdas, altamente poéticas, inspiradoras de reflexões altamente interessantes, como “onça também é gente” ou “a oncidade é uma potencialidade das gentes” (p. 38).
Com muito senso de humor, Viveiros de Castro aponta: “considerar que os humanos são animais não nos leva necessariamente a tratar seu vizinho ou colega como trataríamos um boi, um badejo, um urubu, um jacaré. Do mesmo modo, achar que as onças são gente não significa que se um índio encontra uma onça no mato ele vai necessariamente tratá-la como ele trata seu cunhado humano. Tudo depende de como a onça o trate… E o cunhado…” (p. 38)
Este pensamento antropológico, decerto, tem todo um impacto político, todo um “ideal” de diversidade socioambiental, todo um plano de resistência ao que Raul Seixas chamaria de “alugar o Brasil”, toda uma revolta contra os desenvolvimentismos ecocidas, destruidores não só de ecossistemas que sustentam a biodiversidade, mas desrepeitosas afrontas à outridade de outros cujas perspectivas poderiam ampliar as nossas. Olhem só o pesadelo que faz Viveiros de Castro despertar em pânico em algumas madrugadas:
“O Brasil do futuro: como diz Beto Ricardo, metade uma grande São Bernardo, a outra metade uma grande Barretos. E um punhado de Méditerranées à beira-mar plantados, outro tanto de hotéis de eco-turismo em locais escolhidos dentro do Parque Nacional “Assim Era a Amazônia”, criado pela Presidente Dilma Roussef (em segundo mandato) no mais novo ente da federação, o Iowa Equatorial, antigo estado do Amazonas. Bem, esse é só um pesadelo que me acorda de vez em quando…” (p. 252)
Em tempos como os nossos, em que a terceira maior usina hidrelética do mundo (Belo Monte) está sendo construída pelo Governo Federal, e em que o Novo Código Florestal gerou legítimos protestos por parte de ambientalistas e ecologistas, é bom lembrar, como faz Viveiros de Castro, que a ditadura no Brasil agia em prol de um “projeto de desindianização jurídica”. Ela consistia na presunção do Estado autoritário de que podia impor à força o estatuto de “cidadãos brasileiros” (logo, de “súdito” sob a tutela e com dever de obediência ao Estado nacional) aos indígenas. “Índio” (ao menos era o que queria a ditadura…), era “atributo determinável por inspeção” e “tratar-se ia apenas de mandar chamar os peritos”… Viveiros de Castro sugere ainda que “des-indianizar” o Brasil servia para que os militares pudessem dizer: “Esse pessoal não é mais índio, nós lavamos as mãos. Não temos nada a ver com isso. Liberem-se as terras deles para o mercado; deixe-se eles negociarem sua força de trabalho no mercado.”
Em levante contra isso, Viveiros de Castro comenta: “Nosso objetivo político, como antropólogos, era estabelecer definitivamente que índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco-e-flecha, algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de ‘estado de espírito’. Um modo de ser e não um modo de parecer. A nossa luta, portanto, era uma luta conceitual: nosso problema era fazer com que o AINDA do juízo de senso comum “esse pessoal AINDA é índio” (ou “não é mais índio”) não significasse um estado transitório ou uma etapa a ser vencida. A idéia, justamente, é a de que os índios “ainda” não tinham sido vencidos, nem jamais o seriam. Em suma, a idéia era que “índio” não podia ser visto como uma etapa na marcha ascensional até o invejável estado de “branco” ou de “civilizado”.
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Abaixo, leia mais alguns instigantes trechos do livro:
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“Uma combinação perfeitamente equilibrada de sedução afetiva pelo concreto e amor intelectual pela abstração não existe, e, se existisse, geraria resultados provavelmente muito pouco interessantes.
Minha imersão no “vivido” dos povos junto a quem vivi (e pensei) sempre esteve acompanhada de um forte e primordial interesse pelo “pensado” destes povos, pelo modo como o seu vivido era igualmente e inevitavelmente um pensado. Nunca tomei como real a oposição – tão tomista, tão cristã – entre viver e pensar; e jamais acreditei que para afirmar o pensamento fosse preciso negar a vida, ou experimentá-la negativamente, isto é, vivê-la no sofrimento e como sofrimento. Ao contrário, faço minhas as palavras da sutil escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol: “Creio que onde há prazer, o conhecimento está próximo”.
Viver é pensar: isso vale para todos os viventes, sejam eles amebas, árvores, tigres ou filósofos. Não é isso, afinal, o que afirma o perspectivismo ameríndio, a saber, que todo vivente é um pensante?
Se Descartes nos ensinou, a nós modernos, a dizer “eu penso, logo existo” – a dizer, portanto, que a única vida ou existência que consigo pensar como indubitável é a minha própria -, o perspectivismo ameríndio começa pela afirmação duplamente inversa: “o outro existe, logo pensa”.
E se esse que existe é outro, então seu pensamento é necessariamente outro que o meu. Quem sabe até deva concluir que, se penso, então também sou um outro. Pois só o outro pensa, só é interessante o pensamento enquanto potência de alteridade. O que seria uma boa definição da antropologia. E também uma boa definição da antropofagia, no sentido que este termo recebeu em certo alto momento do pensamento brasileiro, aquele representado pela genial e enigmática figura de Oswald de Andrade: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.” Lei do antropólogo.
Minha história de amor e ódio se resumiria então assim: ódio ao preceito que ensina que é preciso negar o outro para afirmar o eu, preceito que me parece (com ou sem razão) emblemático do Ocidente moderno; e amor pelo pensamento indígena, pensamento de um outro que afirma a vida do outro como implicando um outro pensamento, e que é capaz de pensar sem puritanismo intelectual (quero dizer, sem hipocrisia) a identidade profunda e radical entre antropologia e antropofagia.
[...] Eu diria que minha interpretação do perspectivismo indígena é talvez mais nietzschiana do que leibniziana. Primeiro, porque o perspectivismo indígena não conhece um ponto de vista absoluto – o ponto de vista de Deus, em Leibniz – que unifique e harmonize os potencialmente infinitos pontos de vista existentes. Segundo, porque as diferentes perspectivas são diferentes interpretações, isto é, estão essencialmente ligadas aos interesses vitais de cada espécie, são as “mentiras” favoráveis à sobrevivência e afirmação vital de cada existente.
[...] Vejo o perspectivismo como um conceito da mesma família política e poética que a antropofagia de Oswald de Andrade, isto é, como uma arma de combate contra a sujeição cultural da América Latina, índios e não-índios confundidos, aos paradigmas europeus e cristãos. O perspectivismo é a retomada da antropofagia oswaldiana em novos termos.”
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
Entrevista à revista Amazonía Peruana, 2007
A foto de abertura do post é do próprio: índios Arawetés, 1991.
Entrevista à revista Amazonía Peruana, 2007
A foto de abertura do post é do próprio: índios Arawetés, 1991.
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